Flor de Sangue/II/VIII

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Era a primeira de uma revista, feita por um dos mais aplaudidos escritores do gênero. O Recreio Dramático apanhara uma dessas enchentes colossais que não deixam vazio um lugar e transvasam gente até ao fundo do jardim. Jardim sem flores, de cimento, com três ou quatro arbustos tísicos, mal iluminado, borborinhante, tristonho, apesar de tanta animação. Sem flores e sem claridade não há alegria.

Nos intervalos a onda grossa e variegada dos espectadores invadia-o, espalhando-se em todas as direções, dificultando o trânsito, desenvolvendo um calor enorme sob o céu caliginoso, ameaçador de borrasca. Todas as mesinhas de zinco, tanto do jardinete como do botequim, estavam ocupadas por homens e mulheres, bebendo e rindo com estrépito. Os criados corriam azafamados, servindo às pressas.

Era enorme a quantidade de cocotes, em grande gala muitas, algumas vestidas mui ligeiramente. Passeavam a duas e a três, braços engatados, insinuando-se às cotoveladas entre os homens, com ditos, gestos e risos descarados. Alguns beliscavam-nas ou apalpavam-nas, o que provocava uma palavrada ou uma pancada de leque, em meio de gritos e gargalhadas. Garrafas de gasosas e champanha estouravam; tiniam copos. As brasas dos cigarros e charutos vermelhejavam, lembrando pirilampos no sombrio de uma alfombra de relva.

Em uma das mesas estavam três rapazes bebendo cerveja. Eram dos mais conhecidos na rua do Ouvidor e nos teatros pela sua fama literária. Andavam quase sempre juntos; amigos inseparáveis. Um cronista, poeta o outro, romancista o terceiro. Discreteavam com ar de tédio, arrasando a peça e o autor, a quem chamavam de cretino para baixo, quando de repente o cronista, que conhecia todo o demi-monde, exclamou:

— Lá vai a Corina, a heroína da famosa tragédia do ano passado, na rua do Bispo.

— Onde? Qual? - perguntou curiosamente o romancista.

— Vês aquelas duas mulheres que pararam ali ao pé do lampião para falar com o Viana e o Paranhos? É a de vestido claro e chapéu de plumas; está de costas; voltou-se agora.

— Oh! Mas é formosa! Conheço toda a sua história. Daria de certo matéria para um romance de primeira ordem. Talvez que eu o escreva ainda.

Corina passou por eles nesse instante. Estava radiosa de frescura e graça. Engordara um pouco com a vida dissoluta que levava desde alguns meses. Adquirira esse quid especial, indefinível, da mulher que faz do amor profissão; mas, apesar disso, tinha ainda nos gestos, nas palavras, na fisionomia um resto de ar caseiro, do ar honesto da mulher que não ama para viver, por negócio.

— E sabes como eu intitularia esse romance? - perguntou o romancista. E acrescentou logo: - Chamar-lhe-ia Flor de Sangue. Sim, que é essa mulher senão uma flor brotada e desabrochada no sangue de dois homens? O seu batismo para o amor livre foi o sangue do terceiro amante na noite da tragédia. Lembras-te? Toda nua, desmaiada, borrifada por todo o corpo do sangue tépido, rubro, espumante que o marido fazia jorrar das veias do outro?

— Tens razão - observou o poeta. - Ficará sendo conhecida por Flor de Sangue. É um belo nome de guerra.