Galeria dos Brasileiros Ilustres/Pedro de Alcântara Bellegarde

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Quando os grandes acontecimentos sociais, que enchem as primeiras páginas da história deste século, vieram provar que a vasta América, até então refúgio de obscuros desválidos, devia oferecer nova pátria aos príncipes perseguidos pelas conseqüências da revolução francesa; quando, para nos servirmos ainda de palavras que com sobrada razão para aqui transladamos,[1] a vanguarda do exército francês pisava a terra lusitana, e o príncipe D. João, convencido por uma parte de que toda a resistência seria infrutífera contra o imenso poder de Napoleão, com as poucas forças do Reino, e por outra, cedendo às instâncias de seus conselheiros colaboradores da política inglesa, se revolveu a sair do Tejo e vir buscar asilo no Estado do Brasil; foi a nau Príncipe Real escolhida para transportar à terra de Santa Cruz o regente e a corte.

A bordo desse importante vaso de guerra vinha um destacamento de artilharia, de que era comandante o capitão Cândido Noberto Gorge de Bellegarde. Esse distinto oficial trazia em sua companhia a sua virtuosa consorte Srª D. Maria Antônia de Niemeyer Bellegarde, que, não obstante o estado em que se achava, não quis deixar de segui-lo em uma viagem tão travada de contrariedades.

Ao deixar as águas do Tejo a nau Príncipe Real viu-se salteada por violentos temporais. A despeito da coragem varonil que possuía a sra. D. Maria Bellegarde, e que era realçada por uma resignação verdadeiramente evangélica, tantas e tão veementes comoções não podiam deixar de atuar fortemente sobre o seu organismo, e o resultado foi que no dia 13 de dezembro de 1807 veio antecipadamente ao mundo um menino que, poucos dias depois, e nos braços do príncipe D. Pedro, recebia na pia batismal o nome de Pedro de Alcântara Bellegarde.

Chegando ao Rio de Janeiro o capitão Gorge Bellegarde foi promovido a major e transferido para o corpo de engenheiros; e no ano de 1810 expirou deixando dois filhos confiados aos ternos cuidados de uma mã e, que soube assídua velar sobre eles com solicitude e dedicação nunca desmentidas, e certamente bem dignas do galardão com que a Providência a recompensou, a sincera obediência e o profundo respeito de seus filhos.

No ano subseqüente (1811) ao do passamento do major Gorge de Bellegarde, o munificente Monarca, em remuneração dos serviços do finado, mandou assentar praça de cadetes de artilharia a seus filhos, vencendo desde logo tempo de serviço e soldo.

A sra. d. Maria Bellegarde, que ainda no verdor dos anos trajava o crepe da viuvez, dedicou-se incansável à educação de seus filhos, que sob tais auspícios obtiveram tão rápidos progressos, que, em 1821, Pedro de Alcântara Bellegarde, seu secundogênito, que então contava apenas treze anos de idade, conseguiu matricular-se na Escola Militar, na qual, não obstante ser o mais jovem de todos os seus companheiros, não deixou jamais de ombrear com os mais notáveis, e não raro de excedê-los. No ano de 1827 concluiu ele o curso da Escola Militar, que era então de sete anos, havendo por cinco vezes obtido prêmios.

Foi aí que o jovem Pedro Bellegarde começou a revelar da maneira a mais brilhante a sua já bem culta inteligência.

A lei vigente para as promoções de artilharia no tempo da independência estabelecia os concursos.

O mancebo que tão esforçado se mostrara nas lides da inteligência não podia deixar de apresentar-se na arena; a própria consciência para lá o impelia. Apresentou-se; e o futuro, que tantas vezes implacável dissipa as mais amenas esperanças, encarregou-se desta vez de demonstrar irrecusavelmente quão legítimas eram as aspirações do talentoso mancebo.

Pedro de Alcântara Bellegarde alcançou por concurso os postos de 2º tenente, em 1823, de 1º tenente três meses depois, e de capitão de artilharia em 1824!

Além destas soube ainda merecer outras provas de consideração: antes mesmo de concluir os seus estudos foi pelo governo escolhido para servir sob as ordens dos ilustres engenheiros Cordeiro Torres (depois visconde de Jerumirim) e Andréia (depois barão de Caçapava) nos trabalhos das fortificações das vizinhanças da cidade, e para outras comissões importantes de engenharia; e passou para o corpo de engenheiros.

Concluído o curso da Escola, foi-lhe cometida a direção da obra do Farol da Ilha Rasa; e bem assim o encargo de coadjuvar o plano do canal do rio Guandu à baía do Rio de Janeiro.

No ano de 1828 foi-lhe conferida a graduação de major. Depois esteve por mais de dois anos em Campos de Goitacases, incumbido de fazer os primeiros estudos sobre os canais do Ururaí e do Nogueira, além de outros trabalhos.

Regressando à corte, em 1832, e encontrando os negócios públicos dispostos por forma mui pouco compatível com os seus princípios de fidelidade, hesitou por algum tempo em conservar-se na carreira militar, que lhe parecia haver perdido nessa época o seu mais belo brasão: o da lealdade.

Tentou então estudar Medicina, mas a anatomia se lhe apresentou de uma repugnância invencível; projetou depois estabelecer-se com uma tipografia destinada à publicação de vários trabalhos científicos que encetara: tão persistentes esforços haviam por único escopo abandonar a carreira que abraçara.

Achava-se nestas circunstâncias, quando se anunciou o primeiro concurso para vagas de substitutos da Escola Militar, lugar que se havia recusado sempre a solicitar, por ser cordialmente infenso a um tal sistema de alcançar empregos e posição. Então o seu antigo mestre e prestante amigo Cordeiro Torres veio demovê-lo de seus projetos, e levado mais pela abnegação, toque principal do seu caráter, do que por vontade própria, tal era a relutância que sentia em depender do governo, se inscreveu para o concurso anunciado.

Pelos fins do ano de 1832 teve lugar o primeiro concurso para professores da Escola Militar: seis concorrentes se apresentaram às três vagas de substitutos, e destes somente foi proposto o major Pedro de Alcântara Bellegarde.

Este fato por si só bastaria para fazer crer a quem não houvera o ânimo prevenido, que à nomeação do único candidato aprovado se não levantaria a mais tênue dúvida. Não aconteceu porém assim: nos tempos duros que então corriam o merecimento profissional bem pouco lhe valeu! Antigas relações de amizade que mantinha com pessoas desafetas ao governo, ou antes por este perseguidas, retardaram por seis meses a sua nomeação, e por ainda mais um ano a posse do lugar!

Arrede Deus de nós outros semelhantes tempos de intolerância!

Empossado finalmente em 1834 no emprego de substituto da Escola Militar, exerceu os encargos inerentes a este lugar e ao de lente proprietário pela maneira distinta por que o atestam, além de um bem merecido renome, os seus próprios discípulos e colegas, que vieram sempre crescentes os créditos que granjeara como estudante e engenheiro prático. Lecionou em quase todas as cadeiras da Escola, e não raro em mais de uma ao mesmo tempo. Sem outras interrupções, a não serem as motivadas pelo público serviço, seguiu a carreira do magistério por espaço de vinte anos até o de 1853, em que se jubilou, recusando a graça que o governo lhe ofereceu de continuar no exercício de suas funções, dizendo: "A jubilação dos lentes antigos não é só uma recompensa de serviços, é também uma garantia de progresso; se hei sempre servido bem, outros virão depois e servirão melhor".

No ano de 1836 fundou-se, em Niterói, a Escola de Arquite-tos Medidores, sobre um projeto elaborado pelo então já major efetivo Pedro de Alcântara Bellegarde e apresentado à assembléia provincial por José Clemente Pereira. O autor do projeto foi nomeado lente e diretor da Escola, e sucessivamente regeu todas as diferentes cadeiras do ensino; e como se tanto labor fora ainda insuficiente, compôs e deu à luz da publicidade compêndios apropriados à instrução dos arquitetos medidores;

instituição que, quando começava de apresentar auspiciosos resultados, foi suprimida.

Por esse mesmo tempo o major Bellegarde e o coronel Con-rado Jacó de Niemeyer submeteram à aprovação da assembléia geral o plano de organização de uma companhia para o arrasamento do morro do Castelo.

Esse projeto, por circunstâncias que não cabe aqui aquilatar, não logrou o seu fito, e daí há tão-somente resultado o ir-se de dia para dia tornando mais dispendiosa e difícil uma obra de utilidade real. Parecia que de todo se sumira nos limbos do esquecimento o projeto dos dois hábeis engenheiros, e que o morro do Castelo permaneceria firme em seu posto até que um cataclisma se encarregasse de o derrocar. Alguns recentes estragos vieram porém acordar amortecidos receios, e hoje cura-se de novo da remoção dos perigos que a existência da montanha pode acarretar.

Oxalá que desta vez se leve a efeito a obra, sem aguardar que alguma calamidade nos venha punir de tanta irresolução!

Em 1841 a província de Pernambuco, por intermédio de seu presidente, convidou os dois engenheiros coronel Conrado e major Bellegarde, a fim de darem um plano para o encanamento das águas potáveis do Recife. Pressurosos acederam eles ao reclamo, e no curto período de dois meses de serviço apresentaram o plano completo, acompanhado das plantas, nivelamentos, etc. A obra realizou-se pouco tempo depois, e a província de Pernambuco goza hoje de seus benéficos resultados.

Antes dessa viagem, o major Bellegarde havia organizado o projeto, e dado começo à primeira estrada macadamizada do Império — a do Botafogo.

Ao regressar de Pernambuco foi nomeado chefe de uma comissão novamente criada de instrução prática dos engenheiros, acumulando além disso ao exercício da sua cadeira de construções na Escola Militar as lições de astronomia prática. Empregado sempre em diversas comissões, quer na corte, quer na província do Rio de Janeiro, e prosseguindo na publicação de suas obras científicas e práticas de engenharia; assim lhe correu a vida até o ano de 1848.

Foi então que uma nova carreira se abriu à sua dedicação. Obrigado a aceitar a nomeação de encarregado de negócios no Paraguai, para ali partiu no fim do ano de 1848, e nessa legação permaneceu até 1852. Pouco amigo, por natureza, de fazer valer os seus serviços, não foram eles então devidamente apreciados. Hoje porém que a todos são patentes as dificuldades das negociações com aquela República, e quanto é ali melindrosa a residência de um ministro estrangeiro, pode o público melhor avaliar os óbices que teve o nosso encarregado de superar para celebrar um tratado de aliança, que foi o primeiro sinal da grande cruzada, que deu em resultado a queda de Rosas!

De volta dessa importante missão, foi o então já brigadeiro Bellegarde nomeado diretor do Arsenal de Guerra da corte, que, pouco havia, passara pela desagradável fase, que é geralmente conhecida. Durante a sua administração a repartição mui regularmente funcionou.

A 6 de setembro de 1853 foi convidado para a pasta da Guerra pelo então visconde de Paraná, a quem declarou que, se se tratava do sistema de perseguição e intolerância, não podia assentir; e havendo-lhe o novo presidente do conselho manifestado qual a marcha que pretendia seguir, respondeu por estas palavras, que patenteiam a nobreza de seus sentimentos: "Sendo assim, e V. Exª o presidente do conselho, aceito".

No exercício do seu ministério, que durou de 6 de setembro de 1853 a 14 de julho de 1855, procedeu sempre com toda benevolência compatível com os austeros deveres da vida militar, jamais deixou de prezar e respeitar os seus camaradas, e teve a fortuna de propor e obter galardão para alguns deles, que a despeito de relevantes serviços viviam quase esquecidos.

Criou o batalhão de engenheiros, completando assim a organização do quadro do exército; e a Escola de Aplicação, que seus próprios êmulos (só a mediocridade é que os não tem) não podem deixar de elogiar, e que é por sem dúvida um perdurável monumento alevantado à glória do sábio continuador da grandiosa obra encetada por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o fundador da Escola Militar.

O desprazer que lhe causara o desfecho da nossa missão ao Paraguai (1854-1855), acumulando a desgostos provenientes de incompatibilidades de caráter com o presidente do conselho, inspiraram-lhe a inabalável resolução de insistir por sua demissão do elevado posto que ocupava.

Retirando-se do Ministério, foi poucos meses depois nomeado vogal do Conselho Supremo Militar, e sem mais comissão alguma do governo se conservou durante as administrações dos seus sucessores marquês de Caxias e Jerônimo Francisco Coelho.

Achando-se reduzido a um emprego honroso, porém de trabalho muito inferior às suas habilitações e atividades, depois de haver por algum tempo esperado, tomou o partido de encarregar-se, com permissão do governo, da organização da carta da província do Rio de Janeiro, conjuntamente com o coronel Conrado Jacó de Niemeyer, seu tio e antigo companheiro de trabalho, e neste empenho ainda ambos se conservam.

Havendo chegado a esta corte a infausta nova do falecimento do marechal-de-exército barão de Caçapava, chefe da comissão de limites entre o Império e o Estado Oriental, o dr. J. A. Saraiva, então ministro interino dos negócios da Guerra, o nomeou para substituir ao ilustre marechal-de-exército em tão honrosa comissão. Ele seguiu pouco depois para a província do Rio Grande do Sul, e, decorridos alguns meses, os trabalhos de campo haviam tocado ao seu termo.

Mui deliberadamente nos abstemos de entrar em considerações sobre estes últimos serviços, e por isso, para ultimar, apenas acrescentaremos que o brigadeiro Pedro de Alcântara Bellegarde é atualmente do conselho de S. M. o Imperador, viador de S. M. a Imperatriz, comendador da Ordem de S. Bento de Aviz, doutor em ciências matemáticas, diretor da Escola Central, chefe da comissão de limites do Império com o Estado Oriental, vogal do Conselho Supremo Militar e da Justiça, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e de outras sociedades científicas e literárias.

É que, indefesso no estudo, o fruto de suas lucubrações se acha reunido, não só em luminosos escritos inéditos, mas também nas obras que há publicado, e se compõem de compêndios de Matemática, de Mecânica, Arquitetura Civil e Hidráulica, Topografia, Direito das Gentes, Balística, e vários outros, todos notáveis, na opinião dos profissionais, pela reunião das condições de clareza, concisão, e aplicação prática.

Julho, 1859.

Notas[editar]

  1. As palavras, que acima reproduzimos, são extraídas do Resumo da História do Brasil, do finado major Henrique Luís de Niemeyer Bellegarde, irmão primogênito do conselheiro Bellegarde. Nas Revistas do Instituto Histórico se encontra o seu elogio histórico.