Galeria dos Brasileiros Ilustres/Visconde de Cairu

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José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, comendador da Ordem de Cristo e oficial da do Cruzeiro, desembargador aposentado

Supremo Tribunal de Justiça, e senador do Império, nasceu na cidade da Bahia em 16 de julho de 1756. Seu pai foi Henrique da Silva Lisboa, natural da cidade de Lisboa, de profissão arquiteto; sua mãe, Helena Nunes de Jesus, natural da Bahia. Desde os seus mais tenros anos, destinguiu-se pelo seu ardente amor às letras, de maneira que entrou aos oito anos de idade para a gramática latina, estudando depois filosofia racional e moral no convento dos frades carmelitanos da mencionada cidade, tendo aprendido música e a tocar piano.

Concluídos estes estudos, seu pai o enviou para Lisboa, onde se aplicou à retórica na aula do insigne professor Pedro José da Fonseca, partindo em 1774 para a Universidade de Coimbra, a fim de matricular-se nos cursos jurídicos e filosófico.

Voltando a Lisboa, procurou entrar no serviço da magistratura; mas sendo-lhe necessário tornar para sua pátria, obteve, em resolução de consulta da mesma censória, ser provido na cadeira de filosofia racional e moral da mencionada cidade da Bahia, onde criou também a cadeira da língua grega, que exerceu por cinco anos, com o título de substituto, até chegar o proprietário. Nesse tempo, casou-se com D. Ana Benedita de Figueiredo, senhora virtuosa e dotada de grande penetração de quem teve 14 filhos dos quais ainda vivem cinco.

Depois de ter ensinado, por vinte anos, com geral aplauso, as matérias próprias de sua cadeira, dirigiu-se novamente a Lisboa em 1797, obtendo ser jubilado, e fazendo-lhe então o príncipe regente, depois o Sr. D. João VI, a mercê de deputado e secretário da Mesa da In-speção da cidade da Bahia, lugar onde criou e prestou os mais valiosos serviços à agricultura e comércio da província.

Desde esse tempo, principiou a trabalhar na sua obra Princípios de Direito Mercantil que publicou em Lisboa no ano de 1801 em oito tratados elementares. Esta obra, a primeira que se deu à luz na língua portuguesa sobre semelhante matéria e que fez conhecer os profundos conhecimentos do seu autor no direito civil, marítimo e das gentes, adquiriu tanto crédito e celebridade que teve reimpressões em Lisboa, e até uma em Londres, sendo citada com louvor no Foro pelos mais hábeis advogados.

Encantado com a leitura da obra que o celebrado Adam Smith publicou em 1775, intitulada Inquirição sobre a riqueza das nações, es-forçou-se em propagar os princípios por ele empregados sobre a franqueza da indústria, abolição de monopólio e, especialmente, sobre a liberdade de comércio. Para este fim, deu à luz em Lisboa em 1804 os seus Princípios de economia política, que teve geral aceitação e serviu de estimular aos estudiosos aplicarem-se a uma ciência que tanto contribui para a prosperidade e grandeza dos povos.

Os grilhões coloniais, que pesavam sobre o Brasil e embaraçavam o comércio estrangeiro, retardaram por longo tempo as esperanças que Silva Lisboa nutria de ver em breve o seu país engrande-cer-se, podendo livremente vender os seus variados produtos a todas as nações.

A invasão de Portugal feita pelos franceses no ano de 1807, que obrigou ao príncipe regente a passar para o Brasil, proporcionou uma ocasião favorável a Silva Lisboa para fazer executar-se o que seu ardente patriotismo e luzes aconselhavam a bem da sua pátria. Aportando aquele soberano à Bahia, Silva Lisboa aproveitou-se da amizade que tinha com D. Fernando José de Portugal, depois marquês de Aguiar, para lhe indicar a necessidade de abrir os portos a todas as nações amigas da coroa de Portugal; e, apesar da forte oposição que então se fez, tal foi a força dos seus argumentos que aquele fidalgo cedeu a suas persuasões, e fez com que o príncipe regente publicasse a carta régia de 24 de janeiro de 1808, que liberalizou aquele máximo benefício à nação.

Tão salutar medida, que ainda hoje nos salva no meio das crises políticas que atormentam ao império, longe de ser apreciada no seu justo valor, mereceu pelo contrário a maior desaprovação da parte dos negociantes portugueses; pois que, acostumados a ter unicamente comunicação com as praças de Lisboa e Porto, não podiam sofrer idéia alguma de concorrência, e, por isso, não se pouparam a esforços e diligências para que se revogasse a carta régia, que, segundo proclamava, aumentava os males que a nação sofria e privava o Estado de suas rendas; e não faltavam pessoas influentes, e até estadistas, que esposassem a causa dos ditos negociantes, os quais seguramente haveriam alcançado o que desejavam se Silva Lisboa, que havia acompanhado a el-rei, sendo nomeado professor de economia política, não lançasse mão da pena e, em uma frase cheia de fogo, em que se mostrava vastíssima erudição, não pulverizasse os argumentos dos seus adversários, dando à luz em 1808 a suas Observações sobre o Comércio Franco partes 1ª e 2ª, em que provou, com o exemplo dos Estados Unidos da América, quanto aquele comércio contribuíra para curar os males que a Guerra da Independência por sete anos havia produzido. E aqui seja-me permitido narrar um fato que demonstra quanto um homem ilustrado que procura destruir prejuízos populares é exposto às setas da calúnia e intriga. Certo censor, tendo lido a citada obra, pôs à margem do exemplar as seguintes notas: — É réu de Estado, merece pena capital, — e outros termos desta natureza.

A criação do Tribunal de Junta do Comércio, Agricultura, Fabricas e Navegação deste império, deu lugar a que Silva Lisboa fosse nomeado deputado, sendo encarregado das mais difíceis comissões, e entre elas a de apresentar um projeto do Código do Comércio, trabalho em que assiduamente se empregou, mas que não pôde completar por causa do seu falecimento. Também organizou o regimento para os nossos cônsules, que muito serviu para se concluir aquele que se acha hoje em execução.

Quando rebentou a revolução do Porto em 1820, e que seu eco repercutiu em todo o Brasil, tendo-se visto o senhor rei D. João VI na necessidade de jurar em 26 de fevereiro de 1821 a Constituição que as Cortes Constituintes em Portugal fizessem, era tal o crédito de que gozava Silva Lisboa, que foi nomeado inspetor dos estabelecimentos literários, emprego sumamente espinhoso, pois que tinha a censurar todas as obras que se publicassem; mas que ele satisfatoriamente desempenhou, não se esquecendo, no meio das suas graves ocupações, de aconselhar a concórdia e harmonia entre os cidadãos, publicando o jornal Conciliador do Reino-Unido.

Resolvendo o Sr. D. João VI voltar para Portugal em abril de 1821, deixou, com sabedoria política, como regente a seu filho o príncipe D. Pedro, pois que era claro a todas as luzes que o Brasil só se poderia conservar unido àquele reino não perdendo nenhuma das vantagens de que já estava de posse. Logo porém que pelo decreto das Cortes Constituintes se determinou a retirada do príncipe regente, a abolição dos tribunais e remessa de tropas para o Brasil, Silva Lisboa foi com os seus escritos, principalmente com as suas — Reclamações — um dos mais extremosos antagonistas dos refalsados constitucionais e facciosos da cabala antibrasílica, procurando encaminhar o espírito público para resistir à arrogada supremacia metropolitana e defender os direitos do príncipe regente, conforme aos princípios do verdadeiro liberalismo, sempre em justo meio entre os extremos do poder despótico e furor popular; expondo as vantagens da monarquia constitucional segundo os atuais modelos de Inglaterra, França e Holanda, que tinha por si a experiência dos séculos.

Estes princípios foram por Silva Lisboa sempre energicamente sustentados, tanto na Assembléia Constituinte do Brasil, onde foi deputado pela Província da Bahia, como depois na qualidade de senador do Império. Os seus êmulos, apesar de se oporem às suas opiniões políticas, nunca deixaram de reconhecer o seu profundo saber e de admirar a independência e firmeza de caráter com que Silva Lisboa sustentava a sua doutrina, como se manifestou em todas as circunstâncias críticas em que se tem achado a Nação; especialmente quando na primeira fusão das câmaras em 1830, ele, à semelhança do varão constante descrito por Horácio, desprezando todas as contemplações humanas, e só firme em cumprir com seus deveres, entrou com toda a coragem na discussão, sem que lhe incutisse o menor susto o aspecto aterrador que apresentavam então os partidos. Existem impressos os seus discursos, em que se conhecem a eloqüência e energia com que sustentou os seus argumentos, sendo em verdade espantoso que em uma idade quase octogenária aparecesse tanto calor e valentia de frase.

Voltado inteiramente ao bem da pátria, procurou ilustrá-la com as continuadas obras que foi dando sucessivamente à luz, a expensas próprias, sobre economia, política, religião e moral.

Esses escritos mereceram o apreço e estimação das sociedades nacionais e estrangeiras, que não duvidaram inscrevê-lo no número dos seus sócios, a saber: — a Sociedade Promotora da Indústria Nacional do Rio de Janeiro; da Agricultura da Bahia; Filosófica de Filadélfia; de Agricultura de Munique; da Propagação das Ciências Industriais; do Instituto Histórico de França; e do Instituto Real para a Propagação das Ciências Naturais de Nápoles.

Apesar de ser dotado de uma constituição robusta, contudo, continuado estudo e trabalho principiaram a debilitar as suas forças, e depois de uma prolongada moléstia de três meses, faleceu aos 20 de agosto de 1835, deixando a seus filhos o exemplo de um homem justo e religioso e aos seus concidadãos o de um magistrado probo, e patriota genuíno.

Rematarei esta memória, transcrevendo tanto o decreto pelo qual o Governo Imperial concedeu uma pensão às filhas de Silva Lisboa, como a resolução da assembléia provincial da Bahia ordenando que se colocasse na Biblioteca Pública o seu retrato, enquanto não se fizesse o seu busto. Estes documentos eretos à memória de Silva Lisboa, mais duradouros do que o bronze


MONUMENTUM AERE PERENIUS

DECRETO

O regente interino, em nome do Imperador o Sr. D. Pedro II, tomando na devida consideração os distintos e mui importantes serviços do Visconde de Cairu, prestados pelo longo espaço de 57 anos, não só na simples carreira de empregado público, bem como na magistratura em alguns tribunais e em muitos outros cargos e empregos, em todos os quais fez conhecer e admirar a sua vastidão de conhecimentos, que tornaram distinto e até respeitável o seu nome entre as nações estrangeiras; e sendo não menos atendíveis os seus serviços como escritor público e incansável, em cujos trabalhos não cessou jamais de propagar as suas luminosas idéias com utilidade pública e de propugnar por meio da pena e da tribuna pela dignidade e honra nacional e pelo respeito à constituição e ao trono, que sempre soube sustentar; em consideração pois de tão prestantes e valiosos serviços, que constituíram ao dito visconde um dos varões beneméritos em subido grau e um dos sábios mais respeitáveis da época atual, cuja memória será indelével para os vindouros, há por bem conceder às suas três filhas D. Joana da Silva Lisboa, D. Eufrosina da Silva Lisboa e D. Isabel da Silva Lisboa a pensão anual de um conto e quinhentos mil-réis repartidamente, em plena remuneração dos seus serviços: ficando porém esta mercê dependente da aprovação da Assembléia Geral. Bernardo Pereira de Vasconcelos, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Justiça, encarregado interinamente dos do Império, assim o tenha entendido e faça executar com os despachos necessários.

Palácio do Rio de Janeiro, 9 de maio de 1838, décimo sétimo da Independência e do Império — Pedro de Araújo Lima — Bernardo Pereira de Vasconcelos.


RESOLUÇÃO DA ASSEMBLÉIA PROVINCIAL DA BAHIA

Francisco de Sousa Paraíso, presidente da província da Bahia. Faço saber a todos os seus habitantes que a Assembléia Provincial decretou, e eu sancionei a lei seguinte:

Art. 1º O Governo da Província fará colocar no salão da Biblioteca Pública desta cidade o retrato do visconde de Cairu, tendo por inscrição o seu nome e o lugar do seu nascimento.

Art. 2º A disposição do artigo antecedente terá vigor enquanto não houver um busto de metal ou de bronze.

Art. 3º Ficam sem efeito quaisquer disposições em contrário.

Mando, etc.

Palácio do Governo da Bahia, 13 de março de 1837, décimo sexto da Independência e do Império — Francisco de Sousa Paraíso.

(Da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.)