Girândola de Amores/IV

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Entre a cena pitoresca das cócegas e a sensaborona e triste cena do frustrado casamento de Gregório, medeia o período dos amores deste com a simpática viúva da Tijuca. Foram dois belos anos, durante os quais o amor teve tempo para percorrer toda a órbita do seu caprichoso sistema planetário, fazendo, já se sabe, as cabriolas que o endemoninhado costuma dar sempre que se apanha em revolução.

Dois anos! Oh! nesse lapso o amor tem tempo para muita coisa! Com as asas de que dispõe, pode ir ao zênite da paixão, pairar um pouco no espaço e precipitar-se afinal no pélago morno da indiferença e do tédio.

Todavia, se isto era aplicável a Gregório, não o era certamente à outra parte interessada — a viúva. Em questões de amor é com efeito muito difícil encontrar dois partidos iguais; em geral, um quer e o outro apenas consente.

E o mais curioso é que a mulher é quase sempre quem representa a parte mais ativa e mais importante no conflito.

Entre o amor da mulher e o amor do homem há uma diferença capital: o amor do homem tende a diminuir com o tempo; e o da mulher, quanto mais vive, mais avulta e mais espalha e aprofunda as suas raízes pelo coração. É que em geral o homem, à semelhança do fogoso corcel, que dispara na arena com todo o fogo da carreira, gasta logo no princípio do tiro a melhor parte da atividade de que dispõe, e começa a minguar de forças; ao passo que a mulher, partindo vagarosamente, vai pouco e pouco se animando na luta, e deixa-se afinal arrebatar pelo ardor e pelo entusiasmo.

O homem, à proporção que desvenda os mistérios do coração da sua amante, à proporção que lhe vai devassando a alma e penetrando familiarmente por todas as sutilezas e todos os esconderijos do seu caráter, do seu gênio, do seu temperamento e da sua ternura, sente desfalecer-lhe no sangue o primitivo impulso, e só continua a amar por hábito ou por gratidão. Violada a última gaveta da alma de uma mulher, o homem cai prostrado pela indiferença.

Doces e apaixonadas Margaridas! se quiserdes conservar a adoração de vossos inconsistentes sacerdotes, correi duas voltas à fechadura e guardai bem convosco as preciosas chaves!

O homem gosta de ser iludido: meia verdade o prende, a verdade inteira o repele. A mulher, ao contrário, só chega a amar deveras depois de muito conviver, depois de muito se identificar com o homem a quem se deu. E se alguma grande desgraça os torna solidários das mesmas dores e das mesmas lágrimas; se ela tem ocasião de pôr à disposição do amado a meiga substância da sua abnegação, do seu sacrifício e do seu heroísmo, então o que era amor se converte em fanatismo, e a mulher deixa de ser amante para ser escrava submissa.

O homem principia sempre por dar o seu amor e acaba, quando este se esgota, por oferecer a sua amizade. A mulher, não! a mulher começa por estimar, e a sua estima vai se consolidando, vai se encarecendo, até que se transforma em amor veemente, fecundo e duradouro.

Foi isso justamente o que sucedeu com a viúva a respeito de Gregório — partiram do mesmo ponto, ela a passo, ele a galope; mas, quando a primeira se sentia arrebatada pelo ardor da carreira, já o outro jazia prostrado de cansaço, a suplicar, por amor de Deus, que o deixassem em repouso. E daí as conseqüências — o ciúme, o despeito, a raiva, o desespero, a sede de vingança.

Mas a mulher, coitada! parece que veio ao mundo predestinada para o sacrifício e para a dedicação. Uma vez presa pelo sentimento, ou pela sensualidade, quanto mais a fazem sofrer, quanto mais a pisam e maltratam, tanto mais ela estremece e adora o objeto do seu amor.

Cimo certas plantas aromáticas, que mais recendem quanto mais são trituradas, a mulher que ama, se logra uma folga no cativeiro com que se oprime o seu verdugo, não é para gemer, é para beijar-lhe os pés e repetir-lhe que o adora.

Júlia, nestas condições, soube que Gregório ia casar. Seu ímpeto instantâneo foi correr ao primeiro homem e oferecer-se para ser amada aos olhos do ingrato que assim tão cruelmente a apunhalava. Esqueceu-se de tudo, posição, interesses, tranqüilidade, para só pensar nessa vingança absurda, que lhe parecia tão necessária à sua cólera como o vinho a um ébrio.

E cega, desvairada, às tontas, queria deixar bem patente que a traição de Gregório não a atormentava, e que ela se sentia, como nunca, feliz e indiferente.

— Sofrer?... mas por quê?! monologava a infeliz, a rir forçadamente, com a voz entalada na garganta. Acaso não previa eu tudo isto?... não é ele moço, livre e cheio de esperanças? A mim que importa pois seu casamento? Que se case quantas vezes quiser! Que faça o que entender!

Mas os soluços rebentavam com explosão, e a mísera deixava-se cair sobre o divã, a chorar apaixonadamente, sacudida por um formidável desespero.

Depois, sem que ela as chamasse, vinham de enfiada as recordações dolorosas do seu amor. Os episódios felizes de outrora lhe enchiam agora o coração com uma argamassa de desgostos. Via Gregório em todas as situações venturosas de outro tempo; sentia-lhe perfeitamente o cheiro dos cabelos, a luz dos olhos e a doçura embriagadora dos seus beijos. E perseguida, aguilhoada por estas idéias, queria fugir de si mesma, escapar à própria memória, esconder-se das reminiscências que lhe rugiam de dentro; mas todo o seu passado, em alvoroço, se enroscava por ela, a chupá-la para si, como um enorme polvo. Definitivamente era indispensável uma vingança! Era preciso inventar um cúmplice, um instrumento, uma arma, com que pudesse fulminar o infame!

Pobre visionária! Não calculava que o verdadeiro amor só sabe perdoar e não conhece os segredos do ódio e da maldade. Não sabia que o lábio que conserva o calor dos beijos que o aqueceram, não se pode converter rapidamente em lâmina fria de vingança. E tanto assim, que foi bastante lhe constar um mês depois desse desespero, o crime de que suspeito o objeto do seu amor, para esquecer-se dos planos de vingança e só se lembrar de correr a prevenir Gregório e afastá-lo de qualquer perigo.

Foi nessa resolução que a vimos partir rapidamente da polícia para a casa de Clorinda. Sabia a viúva que era naquela tarde o casamento; Gregório estaria lá com certeza... Que lhe importava o desespero de ver a mulher que a preterira? que importava o espetáculo de uma felicidade que a humilhava e enlouquecia de dor? que lhe importava tudo isso, contanto que o seu Gregório não sofresse coisa alguma, contanto que ele fosse prevenido a tempo do grave perigo que o ameaçava?

O carro de Júlia parou à porta da noiva. A viúva conchegou para o colo as pontas do seu mantelete de seda preta, e subiu resolutamente as escadas da rival.

— A noiva?! perguntou ela à primeira pessoa que encontrou. Não se queria entender com Gregório, por um natural impulso de ressentimento.

A noiva estava no quarto e não podia receber ninguém.

— Mas é também para o interesse dela que lhe desejo falar. Trata-se de Gregório!

— Como?! Do noivo?!

— Sim.

— Oh! nesse caso, entre!

E a pessoa gritou logo para os que estavam na sala de jantar:

— Temos notícias do noivo!

Júlia foi conduzida para a alcova de Clorinda, enquanto os outros curtiam de fora a mais impaciente e viva curiosidade. Ao encarar a noiva do amante, sentiu a viúva percorrer-lhe no corpo um vivo estremecimento de ódio, mas a idéia do perigo em que estava Gregório, acalmou-lhe o sangue.

Clorinda, entretanto, a quem disseram que a recém-chegada trazia notícias de seu noivo, precipitou-se ao encontro de Júlia, exclamando aflita:

— Que sucedeu com Gregório?! Diga-me por piedade!

— Como?! Pois já sabe que lhe ia suceder alguma coisa?!...

— Mas o que é?! Diga! diga depressa!

— Ele então não está cá?!...

— Não! Ainda não apareceu!

— Não apareceu?! exclamou a viúva, empalidecendo. Oh! Nada consegui evitar! Foi preso!

— Quem?! interrogou a noiva. Quem? Gregório?! Gregório preso! mas por quê, senhora?! Explique-se! explique-se, por amor de Deus!

E Clorinda, vendo o abatimento em que caía a outra, sacudiu-a com força:

— Então, senhora?! Que há?! Diga!

Mas a viúva continuava na sua prostração e repetia como num delírio:

— Preso! Nada consegui!

— Ó senhora! explique-se por uma vez! Não vê o estado em que me acho? Não vê que tenho olhos cheios d’água? não vê como tremo? não vê como sofro?!

— E que me importa a mim o seu sofrimento?! também eu sofro e já padeci bastante! Sua mágoa tem saída; a minha não. Se Gregório voltar, é para os seus braços e não para os meus!... Que vale por conseguinte a sua tristeza de criança, comparada à dor enorme que neste momento me dilacera o coração?!

— Eu não a compreendo! observou a noiva.

— Nem se pode compreender nada disto na sua idade, como também na sua idade ainda não se pode avaliar a força indominável e fatal de um verdadeiro amor! Criança! O amor nos quinze anos é pouco mais que o último folguedo da meninice, atrás dele não existe um passado, existe quando muito uma boneca!

— Senhora!

— Oh! Não vim cá para disputar seu noivo; vim com a intenção de salvá-lo; nada consegui. Paciência! Volto resignada com a vontade de Deus!

Clorinda segurou-a pelo braço.

— Mas, por piedade, explique-me o que há? diga-me o que foi feito de Gregório!

— É acusado de roubo e assassinato! declarou a viúva, finalmente.

— Ah! gritou a outra, como se só esperasse por aquela frase para ter a confirmação de uma terrível suspeita.

E caiu de costas.

O quarto encheu-se logo. Todos queriam saber o que havia. D. Januária correu a apoderar-se da filha, e os mais principiaram a cruzar entre si olhares interrogativos e desconfiados.

Júlia, sem dar mostras do que se passava em torno de si, afastou-se distraidamente e saiu a dizer entre dentes:

— Preso e acusado! Preso talvez para sempre!

E ao entrar no carro que a esperava na porta, abriu a soluçar com desespero.

Recolheu-se a casa, mas não pôde sossegar. A dúvida sobre o destino de Gregório trazia-lhe o espírito em doido sobressalto. Era urgente obter notícias dele naquela mesma noite, fosse de quem fosse, custasse o que custasse, contanto que Júlia soubesse o que era feito do seu Gregório!

E nesta impaciência percorria toda casa; ora ia à janela, ora de um quarto para outro. Chamou duas vezes a criada para mandar à polícia, mas, receando complicar ainda mais a situação, resolveu nada fazer. Afinal pediu a capa e o chapéu, e deliberou sair. Eram já oito horas da noite.

— Lá embaixo talvez conseguisse saber alguma coisa a respeito de Gregório... calculava a viúva, descendo comovida a escadinha do chalé. Mas ao chegar ao jardim, soltou um grito: pareceu-lhe haver distinguido, encostado ao muro e meio escondido na sombra, o vulto de um homem que a observava atentamente.

— Ângela! bradou ela para dentro da casa. Ângela! traze luz!

E não pôde acrescentar mais nada, porque as pernas lhe tremiam já e a voz se lhe embaraçava na garganta.

A criada, também, já possuída de susto, apareceu com uma lanterna.

Júlia não se havia enganado. Escondido nas moitas do jardim, estava um homem, que logo se dirigiu humildemente para ela, com o chapéu na mão.

— Ah! interjeicionou a viúva, recuando aterrada.

— Não se assuste, minha senhora, disse o desconhecido, com muita brandura. Eu não faço mal a ninguém... Sou um pobre velho inofensivo...

E Júlia, ainda não de todo calmada, viu-lhe com efeito as longas barbas e os cabelos brancos.

— Mas o que fazia você aí? perguntou ela com dificuldade. Fiquei sobressaltada deste modo!...

— Perdoe, minha senhora, foi sem sequer... respondeu o velho.

— Mas, enfim, que deseja?

— Eu vinha dar um recado de certo moço que foi preso agora à noite...

— Gregório?! exclamou a viúva, perturbando-se toda. Oh! fale! fale! Diga o que é!

— Mas ele me recomendou que só desse o recado a certa moça, com quem tem relações há coisa de dois anos...

— Sou eu mesma! Fale!

— A senhora então é a viúva Júlia Guterres, a mesma que esteve na secretaria de polícia hoje à tarde?...

— Sou. Pode dar o seu recado!

Mas o velho, em vez de obedecer, endireitou o corpo, avançou dois passos, e soprou em um apito que trazia consigo.

— Que é isto?! perguntou Júlia, de novo aflita.

— A senhora está citada para depor hoje mesmo na polícia o que sabe a respeito de certa pessoa!

E o falso velho dirigiu-se a um soldado, de quatro que acudiram ao seu apito, e ordenou-lhe que acompanhasse aquela senhora à presença do chefe na secretaria de polícia.

— Sim, Sr. delegado! respondeu a praça.

— Bom! agora vamos nós à casa da noiva! acrescentou o disfarçado às praças que restavam, tirando as barbas e a cabeleira.

E seguiram para a casa de Clorinda.

Júlia entretanto, caminhava resignadamente para a polícia. Não proferiu durante o caminho uma única palavra. Aquela situação, se por um lado a constrangia, por outro lhe alegrava o espírito, prometendo pôr a limpo tudo o que havia a respeito de Gregório.

O chefe recebeu-a em um gabinete onde já esperava por ela; fê-la assentar-se, disse-lhe que podia descansar, e, depois de chamar o escrivão e ordenar que se preparasse, principiou O seguinte interrogatório: