Girândola de Amores/VIII
Não trocaram uma palavra durante a viagem. Clorinda, a um canto da carruagem, resfolegava dos sobressaltos que sofrera essa tarde; o Dr. Trovão meditava sobre o que lhe dissera a viúva; e esta, concentrada e triste, perdia-se a contemplar silenciosamente o rosto desfeito e sombroso da outra.
Não era somente o desejo de fazer bem a Clorinda o que a levara a oferecer-lhe serviços com tanta solicitude; havia nisso também uma parte de interesse próprio: a viúva precisava ouvir falar de Gregório.
O leitor, se algum dia se deixou absorver por um amor sem limites, e se, depois de haver resignado no objeto dessa paixão todos o condutos da felicidade e da paz, se viu constrangido a consentir que ele fugisse e que o deixasse, só, a braços com o desejo, que consome, e a braços com a saudade, que alimenta, deve ter notado que a essa dolorosa ruptura lhe sobreveio ao coração um desejar constante de ver e ouvir tudo aquilo que lhe recordasse o ente fugitivo e saudoso.
Nesse estado passamos a descobrir grande interesse naquilo que há pouco nos era alheio e indiferente. Parece que o coração, não podendo possuir inteiro o objeto amado, quer reconstruí-lo pelos fragmentos do seu ser espalhados pela natureza. E assim vamos apanhando, aqui e ali, tudo que lhe diz respeito, tudo o que o recorde, tudo o que revele um sinal da sua passagem. As palavras de alguém que o conhece e que teve ocasião de lhe falar, dão-nos um prazer extraordinário. A simples presença de alguma pessoa que nos lembre a mulher amada, faz-nos pulsar com mais força o coração. A cadeira em que ela se assentava quando estávamos juntos, o espelho em que se mirava, endireitando os cabelos antes de partir, tudo isso nos fala do nosso amor e da nossa saudade, tudo isso nos transporta para as épocas felizes em que a possuíamos.
Júlia, com respeito a Gregório, estava justamente nesse caso. Desde que ele se ausentara, a desditosa viúva principiou a sentir-se atraída para tudo aquilo que lhe recordava o amante. Gostava de encontrar-se com o Dr. Roberto, procurava relacionar-se com alguns outros amigos de Gregório.
E nestas circunstâncias bem se pode calcular o interesse próprio que a levou a socorrer Clorinda.
Todavia, estava bem longe de imaginar a verdadeira situação da pobre menina. Ao ver de perto a dura miséria que a cercava, sentiu-se deveras comovida.
A casa parecia abandonada; não se ouvia ali o menor rumor. Salas sem trastes, paredes nuas, armários vazios, cozinha fria; tudo lhe dava o melancólico aspecto de uma velha casa sem dono.
Os três subiram afinal e foram encontrar a velha Januária estendida no chão do mesmo quarto em que a deixara a filha adotiva.
Estava imóvel, com a cabeça pendida para o lado esquerdo e com os braços cruzados sobre o peito, apertando contra ele a caixinha das jóias. Descobria-se-lhe a vida somente por um esforço, quase imperceptível, que fazia o corpo para respirar.
Os três aproximaram-se dela, e a velha, ao sentir o médico segurar-lhe um dos pulsos, tentou gritar e apertou mais a caixinha contra o seio.
Clorinda contou as circunstâncias que precederam àquela crise.
— Compreendo! disse o facultativo, não resistiu à provação! Pobre criatura!...
E, depois de examiná-la por algum tempo, declarou que só um tratamento muito sério a podia salvar.
Clorinda não respondeu, e as lágrimas correram-lhe dos olhos.
— E se fossem lá para minha casa?... lembrou a viúva com muito interesse.
— Iríamos incomodá-la, respondeu Clorinda no auge da aflição.
— Aqui é que ela não se poderá curar, observou o Dr. Trovão, se não vier alguém ao seu auxílio.
— Eu ficarei com ela... disse Clorinda.
— Mas V. Exa. não precisa menos de tratamento. Se não tomar cuidado não lhe dou muito tempo para cair de cama.
— Nesse caso aceito, pelo menos até que mãezinha se restabeleça, concordou afinal a menina, com o ar acanhado de quem se vê na dependência dos obséquios de um estranho.
— Pois a mudança se fará hoje mesmo, e o doutor irá visitá-la com regularidade.
O Dr. Trovão receitou, tomou nota do número da casa da viúva e saiu, prometendo mandar imediatamente alguém que se encarregasse de transferir para lá a doente e cuidar do mais que fosse necessário.
Nesse mesmo dia D. Januária e a filha ficaram aboletadas no pitoresco chalezinho da Tijuca em que morava Júlia.
Clorinda comunicou o ocorrido ao Dr. Roberto e pediu-lhe que aparecesse para ver a enferma. D. Januária só no dia seguinte voltou a si, mas ainda com muita febre e fraqueza de razão. Uma semana depois apareceu João Rosa; Clorinda o recebeu com frieza. Falaram vagamente sobre vários assuntos, mas, logo que a conversa se encaminhava para o casamento, ela a desviava como por instinto. João Rosa, porém, não desistia e continuava de pé firme no seu propósito.
Júlia, considerando o estado desvantajoso de Clorinda, achava aquela insistência extraordinária em um homem que não parecia talhado para os sacrifícios e para a dedicação. O ar aventureiro de João Rosa, o seu olhar cobiçoso e móbil, a sua boca apertada e quase sem lábios, o seu todo furão, seco, inquieto, não podiam esconder um coração terno e generoso.
A viúva desconfiou dele, foi talvez a primeira que se atreveu a suspeitar das intenções de João Rosa. Até aí, à exceção do Dr. Roberto, todos os mais censuravam a rapariga por não aceitar o novo partido que se lhe oferecia.
— Mas, que levará este homem a desejar com tanto interesse a mão de Clorinda?... pensava a viúva. Por que a ama?... não é possível; aquele tipo não ama senão o dinheiro! Será por capricho? Não! porque os entes tacanhos não têm caprichos!...
E Júlia, por mais tratos que desse ao espírito, não conseguia descobrir coisa alguma.
Uma vez, sem querer, ouviu na própria casa, o seguinte diálogo, travado entre ele e Clorinda:
— Posso então ter ao menos uma esperança? perguntava João Rosa.
— Mudemos de conversa... respondeu ela.
— Não! A senhora hoje vai dar-me uma resposta. Já esperei por muito tempo.
— Pois a resposta é que não. Não o aceito para marido!
— Mas reflita um pouco, D. Clorinda... Lembre-se da posição falsa em que se acha... Não seria melhor que, em vez de chegarem as coisas a este extremo, tivesse a senhora resolvido a casar comigo e assim evitado vir morar aqui nesta casa por obséquio?... Não lhe parece que eu lhe poderia proporcionar uma existência mais segura e mais definida?...
— Mas é que eu não quero casar com o senhor!
— E por quê? Por que me não ama?!
— Não é só isso. Tenho-lhe amizade, mas não me posso casar com o senhor.
— Mas por quê?...
— Porque já estou comprometida. Meu noivo desapareceu, mas, enquanto não me constar a sua morte, só a ele pertenço.
— E se nunca lhe constar semelhante coisa?!
— Paciência!...
— Pois eu não desanimo! Esperarei! esperarei sempre! retorquiu João Rosa com firmeza.
— É o que digo! considerou a viúva. Anda nisto qualquer segredo, que obriga aquele homem a perseguir Clorinda.
E a viúva tinha razão. João Rosa era muito da casa de D. Januária e fazia o possível por agradar a Clorinda, quando apareceu Gregório e com este a sua completa derrota.
Se até aí a rapariga pouco se lhe mostrava propensa, quanto mais depois da chegada do novo pretendente; virou-lhe as costas por uma vez, voltando-se abertamente para o outro. João Rosa ficou furioso; mas, como não era homem de desistir ao primeiro obstáculo tratou de retirar-se e preparar traiçoeiramente as armas para um combate sem tréguas.
Gregório mal podia desconfiar de semelhante coisa, e continuava a cultivar a flor, donde esperava colher o fruto saboroso da sua felicidade. Não faltava uma noite à casa da noiva e aí passava horas da mais doce e tranqüila esperança.
Clorinda agradava-lhe por todos os motivos. Era bonita, simpática, tinha bom coração e parecia muito inteligente; não seria por conseguinte de esperar que desse de si uma dessas mulheres caprichosas, cheia de exigências, sequiosas de luxo e atrofiadas pela vaidade. Uma vez colocada no lar, daria com certeza um belo modelo de virtudes domésticas e conjugais.
Afinal pediu-a, e, como D. Januária guardasse sobre a procedência da filha adotiva o mais rigoroso sigilo, ele por seu lado se absteve de indagações, e guardou para mais tarde qualquer deslindamento. Sabia, entretanto, que a noiva não era filha de D. Januária e sim de uma senhora de Pernambuco, cujo nome nunca lhe disseram.
Ora, o motivo daquelas reservas da velha, já o leitor sabe qual é, nada mais, nada menos, que a bigamia do Leão Vermelho, isto é, do pai de Clorinda e de Gregório, como bem se viu pelas confidências que a este fez o conde no seu palacete da Tijuca.
Ficou todavia marcado o casamento, e os noivos pareciam nada mais esperar do que o dia feliz da sua união.
Amavam-se e amavam-se deveras. Mas, João Rosa não dormia; a princípio lançara mão de meios pequeninos para afastar Gregório de Clorinda; escrevia cartas anônimas, metia em circulação certas notícias escandalosas, que pudessem provocar a desconfiança da parte de D. Januária e mais tarde da noiva. Mas nada disso produziu efeito.
Os dois moços continuavam a amar-se mutuamente, alheios a tudo que se agitava em torno deles; tinham os olhos cravados no disco luminoso da sua felicidade, e o clarão que daí vinha os ofuscava tanto que lhes não deixava perceber mais nada.
João Rosa estudou com paciência o talho da letra do rival, e com tal jeito se houve em falsificá-la, que conseguiu enganar à própria polícia, e, o que é mais extraordinário, à própria viúva Júlia, que de muito se havia já familiarizado com as cartas de Gregório.
O leitor deve lembrar-se daquela carta amorosa, dirigida fantasticamente por Gregório à Menina do Bandolim, e que mais tarde figurou nos autos policiais. Pois essa carta era produto daquela espécie.
Gregório nunca dispensara à Menina do Bandolim mais do que certa simpatia respeitosa, inspirada pelo desejo de perseguir o barão, que a requestava, e talvez um tanto pelo seu espírito romântico, sempre propenso a intervir no que tivesse ressaibos de fantasia. A João Rosa não escaparam as poucas vezes que ele se encontrara e conversara com tal menina, e procurou tirar disso algum partido. Daí a carta; carta, que nunca chegou às mãos da pessoa a quem era dirigida, mas que foi maquiavelicamente parar em poder do chefe de polícia.
Nada disso, porém, tem valor algum ao lado do que ainda produziu o espírito perverso e ambicioso de João Rosa.
Antes do aparecimento de Gregório em casa de D. Januária, já ele o conhecia de vista no comércio e sabia de seus negócios; de sorte que, começando depois a persegui-lo na sombra, sabia perfeitamente o rumo dos passos do inimigo e fazia com mais segurança as pontarias do seu ódio.
Mas, ainda assim, nada conseguiu; Gregório parecia protegido por mão misteriosa que o afastava de todos os perigos. Nestas circunstâncias viu João Rosa chegar a véspera do casamento e teve ímpetos de cometer tudo para destruí-lo; lembrou-se dos maiores disparates, pensou em assassinar Gregório, mas faltou-lhe para tanto resolução e coragem.
Na impotência suprema deste desespero, o vaso veio protegê-lo, permitindo que fosse ele um dos primeiros contempladores da vítima assassinada perto dos armazéns de rapé de Paulo Cordeiro. João Rosa sabia perfeitamente que Gregório estava muito a par do dinheiro, que na véspera entrara para aquela casa, dando lugar ao crime; e, como pouco antes havia intencionalmente subtraído o anel de Gregório, sem contudo saber ainda que partido tiraria dele, colocou-o ao lado do morto e tratou em conversas de encaminhar as suspeitas para o dono da jóia.
E, como isso talvez não chegasse a tempo de transformar as núpcias, enviou logo uma denúncia ao chefe de polícia, e correu para a casa da noiva com a idéia de preparar por lá o terreno.
Calcule agora o leitor qual não foi a princípio o seu contentamento, quando viu que Gregório não aparecia, e depois qual não foi a sua surpresa, ao saber que o rapaz não fora apanhado pela polícia e que desaparecera, sem que ninguém soubesse explicar por que e para onde.
Mas qual era o motivo que levava João Rosa a desejar com tanta insistência unir-se a Clorinda?!
O amor não podia ser! como observou já a viúva. Que seria pois?
Eis o que convém quanto antes pôr às claras:
João Rosa, de seu natural curioso e bisbilhoteiro, logo que se deu em casa de D. Januária, ficou mordido de interesse por descobrir donde vinha aquela estranha e gorda mesada, com que ela e a pupila subsistiam tão decentemente. E desde então não descansou. Era preciso descobrir a fonte daquele mistério ou ele ficaria devorado pela curiosidade. Mas o pior é que a velha, por mais que fizesse o bisbilhoteiro, nunca deixava escapar uma única palavra que o encaminhasse no segredo.
João Rosa indagava para todos os lados, espiava de esguelha as gavetas, apanhava sorrateiramente os fragmentos de papéis que caíam no chão, quando em sua presença D. Januária abria qualquer carta. Mas nada conseguia. Afinal, depois de muito excogitar, chegou a descobrir o portador da mesada: era um português velho e gordo, proprietário de um pequeno armazém de secos e molhados para os confins da rua da Quitanda. Meteu-se de amizade com o homem, e tanto fez, tanto virou, que conseguiu enfim saber que aquele dinheiro era enviado pelo próprio pai de Clorinda, que vivia em Portugal e passava por morto no Brasil, em virtude de umas tantas coisas que ele narrador ignorava.
E terminou declarando que esse tal sujeito de Portugal era homem de grande fortuna e havia naturalmente de legá-la à única filha que possuía — Clorinda.
Tanto bastou para acender no onzenário coração de João Rosa a cobiça daquela menina, E, quando mais tarde veio a saber que o Leão Vermelho falecera em Portugal com o nome de João Brasileiro, deixando um único herdeiro existente no Brasil, justamente como disse o conde a Gregório, João Rosa, que ignorava a relação deste com o falecido, guardou o seu segredo contra D. Januária e Clorinda, e tratou de, a todo transe, apoderar-se da suposta legatária.