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Grammatica Analytica da Lingua Portugueza/II/1

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Strictamente fallando, todas as palavras de huma lingua qualquer primitivamente exprimîrão objectos sensiveis, sensações directas, individuos considerados no seu todo ou concretamente. Por conseguinte não existe distincção essencial entre as diversas palavras de que se compõem as linguas ; as divisões em substantivo, adjectivo, verbo, etc., são puras invenções dos grammaticos, e inexactissimas expressões.

Depois dos sons instinctivos pelos quaes o homem exprime os seus affectos antes de possuir huma lingua, como os vagidos e gritos das crianças, e dos sons imitativos, as primeiras vozes significativas, que são a base de toda a linguagem, pertencem todas á mesma ordem, e indicão percepções collectivas e complexas, como cabeça, , mão, sol, lua ; e outras simples, mas communs a muitos individuos, como côr, branco, preto, doce, amargo, alto, baixo, redondo, forte, frouxo, macho, fêmea. A unica differença real consiste na individualidade de humas ideias, e na communidade das outras. Sem duvida a côr branca, azul, verde de certo objecto, a altura de outro, etc., foi o typo dos primeiros nomes dados a estas propriedades dos corpos, mas depois se applicárão os vocabulos a todas as outras cousas em que se observou analogia de propriedades. A principio, o que nós chamamos attributos ou qualidades dos corpos, de que são inseparaveis fazendo parte de cada hum, não tiverão denominação especial, e para designar estas apparencias variaveis se escolherão individuos em que ellas erão mais constantes, e em que predominavão a ponto de formarem o caracter saliente do individuo. Por exemplo, para expressar a côr branca escolhêrão muitas nações a neve, a lua, a escuma da agua, etc. ; para expressar o preto, servio de typo a noite escura, para o vermelho o sangue, para o azul a côr do céo estrellado. Para designar o que era alto e superior, tomou-se por typo a cabeça ; para o baixo e inferior os pés. Para caracterisar o movimento de transição foi escolhida a ideia e expressão de pernas, de pennas, de azas ; para o movimento ou acto de prehensão no homem com relação aos seus orgãos, e considerado como exercendo acção sobre outros corpos, tomou-se a mão, etc. Por este systema natural e instinctivo foi-se extendendo a applicação de ideias e vocabulos a muitos individuos, e d’esta diversa applicação resultou ir-se esquecendo o sentido primitivo de cada voz, que vindo a ter hum valor particular, fez crer serem palavras de especie primitivamente differente. Assim de cara-noite ou —amora fez-se cara nocturna ou preta ; de mel fez-se doce; de cabeça fez-se altura, elevação, alto ; e de mão, junto a outro vocabulo, nascêrão, em certas linguas, os verbos tomar, fazer, obrar, dar.

A verdade do que acabo de dizer ainda hoje he patente em muitas linguas, em que certas palavras são ao mesmo tempo o que os grammaticos chamão substantivo, agente ou sujeito, adjectivo ou attributo, verbo, preposição e conjunção. Entre as linguas antigas nenhuma offerece provas mais evidentes d’esta verdade que o egypcio, de que o coptico he imagem fiel; mas limitando-me a linguas modernas, basta citar alguns exemplos tirados do inglez, dialecto do antigo saxão, e da nossa propria lingua, dialecto da latina. Em inglez head significa cabeça, chefe, parte superior ou primeira, primeira pessoa, parte anterior ; conduzir, capitanear, governar ; e superior, anterior, principal. Drink significa bebida, beber; round significa cousa redonda, redondo, arredondar, de roda, á roda.

Em portuguez todos os verbos no modo a que chamão infinito ou infinitivo, são substantivos, e muitos tem ainda o valor de substantivo com plural, como haver, haveres ; ser, seres ; comer, comeres. O chamado participio he substantivo, adjectivo e supino ; por exemplo : gasalhado, descampado, coutada, apontoado, enfiado, enfiada. Doce he substantivo, adjectivo e adverbio. He portanto incontestavel que não existe differença entre estas partes da oração, senão aquella que resultou da applicação de certa ordem de termos a certas concepções syntheticas ou analyticas da intelligencia.