Grammatica Analytica da Lingua Portugueza/Proemio
Posto que o termo grammatica, no seu sentido stricto, conforme á palavra grega de que deriva e ao seu radical (γραμμα), se refira á lingua escripta, todavia, como esta he a imagem da lingua oral, dá-se o nome de Grammatica á collecção de preceitos para fallar, escrever e ler huma lingua correctamente, isto he, conformando-se ao que o uso dos doutos tem estabelecido.
As linguas, ainda antes de serem escriptas, tem regras invariaveis, as quaes derivão da relação natural que existe entre as nossas sensações, ideias e pensamentos, e por conseguinte entre as vozes com que os exprimimos. Por isso, a pezar da immensa diversidade de linguas que são ou forão falladas no globo, nota-se entre as mais d’ellas grande conformidade de structura, ainda quando os seus radicaes são inteiramente differentes. Em todas se encontrão os mesmos elementos intellectuaes, e a differença em geral consiste na maneira de dispôr e collocar estes elementos. A intelligencia humana he essencialmente semelhante em todas as regiões do globo habitado, e forçosamente ha de adoptar hum dos systemas de linguagem natural que serve de base ás diversas familias de linguas conhecidas. Estes systemas são pouco numerosos, e ainda os que á primeira vista parecem differir mais entre si, tem numerosas semelhanças e analogias. Isto se verifica, comparando as linguas da familia arabica com as sanscriticas, e as dos indigenas de quasi toda a America com as precedentes. Em humas apparece como desinencia o que em outras he huma palavra inteira e não contracta, posta antes ou depois do vocabulo ; em outras o artigo he comprehendido no nome, e não separado delle e anteposto ; mas todas as linguas tem em commum regras ou principios que constituem a grammatica geral analytica.
A grammatica particular de huma lingua he mais ou menos regular, isto he, fundada em principios fixos, segundo ella he primitiva ou derivada. Se bem que ignoremos a historia da formação das linguas, chamamos primitivas aquellas cuja origem ignoramos, e de que sabemos derivarem muitas outras. A lingua portugueza he derivada da latina, mas formou-se em tempos em que o latim já tinha soffrido grande corrupção, e vem realmente, assim como o castelhano e os outros dialectos hispanicos, o francez e o italiano, de dialectos mais ou menos regularmente derivados do latim, e dos quaes he o principal e o mais perfeito o chamado Langue roman ou romane em francez, ou lingua roman em portuguez. Delle nasceo o francez, o siciliano, o italiano, o catalão, etc. He mui provavel que este dialecto não foi senão a lingua latina rustica fallada pelo povo nos paizes sujeitos ao dominio de Roma, e cujos habitantes tinhão perdido o uso das suas linguas primevas.
Desta exposição se segue que para bem conhecer a origem e caracter da lingua portugueza, não basta recorrer ao latim classico ; he indispensavel examinar o que nella he tirado do idioma ou idiomas que a aparentão com o latim, mãi commum d’elles e d’ella. Por ignorarem esta verdade, ou por não attendérem a ella, se com effeito a conhecêrão, tem os nossos grammaticos commettido tantos erros na orthographia e syntaxe da nossa lingua, e alguns dos nossos melhores escriptores do XVI seculo e muitos dos modernos tem, pela mesma razão, abusado da origem latina do portuguez, para o latinisar contra a sua propria indole.
Se a lingua portugueza he essencialmente latina nas vozes ou vocabulos, he por certo bem distincta nas desinencias dos nomes e verbos, e na construcção, no valor e funcções das particulas. Não he menos differente na prosodia e na versificação. Errárão pois os autores que para a grammatica portugueza tomárão por base a latina ; e trabalhárão ás cegas os que pertendêrão tomar por unico guia os principios da grammatica geral, como se o portuguez fosse huma lingua primitiva. Os criticos rigoristas que tanto tem declamado contra os gallicismos modernamente introduzidos em portuguez, parecem ignorar que desde a sua origem elle está cheio de palavras e locuções francezas. Sem duvida não se devem adoptar sem necessidade termos estranhos ; e quando seja indispensavel a sua admissão, devem poder accommodar-se ás analogias da lingua que os recebe : em muitos casos he o termo francez mais analogo que hum termo alatinado e cunhado de proposito. Por exemplo, a palavra franceza détail, com o seu derivado détailler, não tem em portuguez equivalente, a não ser esmiuçar, e tampouco o tem em latim : ora, porque se não dirá detalhe e detalhar em portuguez, como em inglez se diz detail, igualmente tirado do francez? Nenhum d’estes termos he contrario ao caracter da nossa lingua, nem em quanto ao som, nem pelo que pertence á structura da palavra.