Guerra dos Mascates/Advertência
Alinhavou-se esta crônica sobre uma papelada velha, descoberta de modo bem estúrdio.
Ia proceder-se à eleição primária em uma paróquia dos subúrbios do Recife. Desde a véspera que o rábula político do lugar tinha arranjado a cousa a bico de pena e conforme a senha; mas era preciso dar representação e mostra oficial da farsa para embaçar uns escrúpulos ridículos do presidente calouro.
Para esse fim um grupo de governistas, com o competente destacamento policial, acampou na Matriz, onde a oposição, que tivera o cuidado de meter-se nas encóspias, não apareceu.
Na ocasião de começar a encamisada, deu-se por falta da urna de que ninguém se lembrara. Felizmente lá desencavaram no fundo do armário da sacristia um cofre ou arca de jacarandá, que devia ter servido, no tempo de El-Rei Nosso Senhor, para guardar os pelouros da vereança.
Havia dentro da tal arca três antigualhas, dignas de uma memória do Instituto Histórico. Eram: uma cabeleira de rabicho que naturalmente pertenceu ao último juiz do povo; uma liga de belbute com atacadores de prata em forma de corações, adereço casquilho de alguma Egéria dos tempos coloniais; e finalmente um grosso rolo de escrita enleado com um cadarço de Lamego.
Sem o menor respeito atiraram essas preciosas relíquias a um canto, onde as descobriu dois dias depois o sacristão da freguesia.
Era este o Sr. Beltrão, que ao mister de enxota-cães da matriz acumulava o ofício de meirinho do subdelegado, combinação esta que dava boa suma das habilidades do nosso homem. Sentia ele também suas cócegas pela política, e desde certo tempo andava chocando de longe, como jacaré, o lugar de inspetor de quarteirão. Até já lhe passara uma vez pela cachola a idéia de trocar a opa vermelha por uma farda azul de alferes da Guarda Nacional; e saindo-lhe a cousa certa, por que não havia de entrar na lista de eleitores, e pilhar a subdelegacia?
Cometera o governo de então o erro gravíssimo de não prestar a consideração devida ao merecimento de um homem dessa marca e a seus relevantes serviços, como fósforo que era e da melhor fábrica. Justamente ofendido em seus brios, o Sr. Beltrão decidiu virar a jaqueta, pois ainda não se tinha metido em casaca; e desandou em oposicionista de quatro costados.
Achando os objetos no canto, o gírio do sacrista contemplou-os um instante com um sorriso manhoso e deitou-se a passo de rafeiro para a casa do escrivão, que era ali o tombo e conselho do partido. Nesse mesmo dia partiu para a cidade um próprio, levando pesado embrulho e uma carta com endereço ao redator do órgão oposicionista.
O tarelo escritor andava a tinir com o malogro de sua candidatura. Ainda garraio em política, tivera a ingenuidade de tomar ao sério a eleição e concebera a louca esperança de furar a chapa do governo, empresa mais difícil do que a de brocar o Pão de Açúcar.
Foi receber a carta e pular o tarouco do publicista à mesa, onde cortadas as tiras de papel almaço, desandou um artigo em estilo de bomba, no qual trovejava deveras contra o despotismo que oprimia o país.
No outro dia apareceu o presidente com cara de demissão, o que logo se conheceu pelas cerdas revoltas do bigodinho, que o excelentíssimo esmerava-se em trazer sempre com um torcido dos mais elegantes. Pudera não! Logo na cama tomara, à guisa de mingau ou chocolate, a siribanda da folha oposicionista num artigo furibundo, sob a epígrafe - Ubinam gentium sumus!... Era o tal sobre a eleição.
Depois de uns rasgos eloqüentes acerca da depravação do sistema representativo, e da corrupção que lastra como uma lepra oficial (isso é lá do publicista pernambucano), descrevia o retumbante artigo os atentados inauditos praticados pelo partido dominante para tomar de assalto as urnas. Esse partido então dominante, confesso que não indaguei qual seria, mas cada um porá o que for mais de seu gosto; assim ficaremos todos contentes, e não haverá motivo de zanga entre conservadores e liberais.
Aí vai a amostra do tal artigo:
Chegou a ponto a ousadia, a impudência, dessa horda de vândalos que não respeitaram as cousas mais sagradas, a santidade do templo, as cãs de uma velhice honrada e a virtude do sexo frágil!
— O honrado capitão-mor, o Sr. A***, esse benemérito ancião, acatado em todos os tempos como um tipo de sisudez e probidade, foi vitima dos insultos e apupadas dos energúmenos, que depois de tentarem contra sua existência, tiveram a protérvia incrível de calcar aos pés a sua cabeleira, esse venerando símbolo da velhice gloriosa do grande patriota.
Não escapou à sanha dos bandidos a ilustre Sr.a D. B***, essa ínclita matrona pernambucana, digna dos melhores tempos de Roma por sua virtude e austeridade. Talhada no molde de D. Maria de Sousa, a heroína brasileira, é adorada como uma providência daqueles lugares por sua caridade inexaurível. Estando na missa, foi ultrajada sem respeito à santidade do lugar e ao recato do sexo. E por quê... Pelo crime imperdoável de ser mãe de um nosso amigo, o Sr. C***, oposicionista importante. Para se avaliar quanto sofreu a ilustre matrona, bastará saber-se que no meio do tumulto caiu-lhe uma liga de preço, e esse penhor da castidade veio a servir - horresco!... de joguete à canalha.
No dia seguinte o corpo da igreja onde se fez a eleição, apresentava aspecto igual ao teatro de uma bacanal. Rolavam pelo chão, de envolta com aqueles objetos respeitáveis, maços de cédulas arrancados à urna violada, e sobejos da opípara ceia com que banquetearam a seus janízaros.
E o governo, depois de se debochar nessa orgia, ousará ainda com o maior cinismo falar em liberdade de voto e pureza de eleição! Infeliz país, governado por lacaios a quem servem outros lacaios, e outros, desde a antecâmara até a cocheira.
Um esquisitão que havia em Pernambuco, republicano de 1817, convertido em comendador, ao ler aquele trecho saiu-se com estaque não era escrito de pena, mas de chuço.
Tinha uma nota o artigo, e assim concebida:
Ficam em nosso poder, onde podem ser examinados, os objetos a que nos referimos, verdadeiro corpo de delito da saturnal representada pelos esbirros do governo.
Muitas pessoas foram ao escritório da folha ver a cabeleira, a liga e o maço a que aludia o artigo. Entanto era a toda pressa chamado a palácio o chefe do partido. A conferência esteve tempestuosa.
O presidente engrilou-se, declarando que estava disposto a fazer tudo, mas guardadas as aparências. O chefe bateu-lhe o pé; deu-lhe três gritos, e acabou por dizer-lhe que não faltavam presidentes para Pernambuco. Da secretaria ouviu-se a altercação; e horas depois assoalhou-se que as duas potências estavam desavindas.
Por este tempo o capitão-mor e a matrona, sabendo do artigo, quiseram protestar. O primeiro assegurava que sua cabeleira de rabicho há muitos anos fora roída pelos ratos, e lamentava esse desastre. A segunda, furiosa contra o escritor e disposta a não aturar desaforos, jurava que tivera sempre sua perna bem grossa e carnuda para segurar a meia sem necessidade de ligas. Ambos declaravam que não tinham saído de casa no dia da eleição.
Interpuseram-se, porém, os oráculos da oposição, e usaram de todos os meios de influência para obstar à declaração. Exigiam as conveniências do partido não se tirasse a força moral de um artigo, que produzira grande efeito e dera azo ao rompimento do chefe governista com o presidente.
O subdelegado da freguesia, cabo da eleição, desmentiu em oficio e por cartas as acusações do jornal oposicionista; mas ninguém, nem os seus próprios amigos acreditaram nas asseverações do homem, que sabiam capaz de maiores façanhas, useiro e vezeiro nelas. Não obstante, a imprensa do governo desfez-se em elogios à imparcialidade e moderação do prestante cidadão a quem estava confiada a autoridade do lugar.
Um mês depois, cá na corte, o ministro da Justiça voltava do despacho azoado com uma sabatina que sofrera a respeito da eleição da tal paróquia, cuja existência ele ignorava, pois era homem do Sul. O oficial de gabinete ouviu no meio de um solilóquio trágico estas palavras inauditas:
— Não se pode ser ministro assim!...
Tirando então da pasta um caderno de papel com o título de extrato dos jornais, o pimpolho do estadista procurou um lugar marcado à margem com uma cruz sinistra riscada a lápis. Era nada menos do que o trecho elo quentíssimo do publicista pernambucano.
Expediu-se nesse mesmo dia um reservado ao presidente exigindo com urgência informações a respeito dos fatos escandalosos referidos pela folha. A oposição em Pernambuco teve logo noticia do que havia, e compreendendo o partido que podia tirar do incidente, remeteu para a corte os objetos a que aludira o artigo, a fim de serem vistos por ALGUÉM.
Foi portador o nosso jornalista. Chegando à corte fez-me o favor de procurar como colega, e pedir que preparasse a opinião com um artigo de minha lavra, confiando-me para este fim o pacote onde estava o corpo de delito do grande escândalo. Há embrechadas de que ninguém se livra: era esta uma das tais.
Atirei o embrulho a um canto muito resolvido a desculpar-me com as minhas lidas, quando o homem viesse buscá-lo no sábado próximo, para a audiência que esperava. Nesse ínterim, porém, caiu o ministério; e houve mudança na política.
Disseram nas câmaras que, tendo-se agravado os incômodos do ministro do império, este insistira pela demissão, e o gabinete julgando inconveniente uma reorganização, resolvera retirar-se. O público ouviu estas explicações com o mesmo ar do homem da boa sociedade quando o amigo se desculpa de o não ter visitado ainda, por causa de incômodos de saúde. Sabe-se que é uma calva mentira; mas todos a aceitam e agradecem como uma prova de polidez.
A verdadeira causa da queda do ministério só muito depois vim eu a sabê-la; e como não me pediram segredo, aí vai sem tirar nem pôr.
Recebendo o reservado do ministro da Justiça, o presidente de Pernambuco pressentiu que ali andava dedo de mestre; e desenvolveu um zelo digno dos maiores encômios. É preciso notar que nessa mesma ocasião o fedelho administrativo fora honrado com uma particular do ministro do Império, na qual o novo Mazarin insinuara habilmente esta máxima profunda: - Aos reis como às crianças, é preciso enganá-los para seu próprio bem.
Apesar de tão salutar advertência, o presidente porventura já fascinado pelo irresistível prestigio do absurdo, tomou ao sério o reservado. No mesmo dia foi demitido o subdelegado da tal freguesia com todos os seis suplentes; e o chefe de policia recebeu ordem de se dirigir imediatamente àquela localidade a fim de sindicar dos fatos graves ocorridos durante a eleição.
Estes atos foram publicados na folha oficial. O chefe governista, que depois do rompimento resolvera contemporizar, bufou. No primeiro paquete veio o seu ultimato: A conservação do atual presidente é uma calamidade. Meus amigos estão sendo sacrificados ao capricho deste moço enfatuado; e a lealdade exige que eu os acompanhe na adversidade.
Andava o ministro do Império muito desgostoso com os colegas porque não conseguira fazer o genro barão. A carta do chefe pernambucano foi um pretexto magnífico. Instou pela demissão do presidente, o que não obteve, como de antemão sabia; pediu então respeitosamente vênia para retirar-se do poder, e foi-lhe graciosamente recusada. Não havia motivo para separar-se de seus colegas; devia continuar a prestar bons serviços ao país, e juntos deixarem o governo quando lhes viesse a faltar o apoio do parlamento do que não havia receio. A saída de um membro do gabinete isoladamente não era de boa política.
Tais foram pelo menos as palavras que o ministro do Império trouxe a seus colegas reunidos em conferência na casa do presidente do conselho. O secretário da Marinha, grumete de primeira viagem, expandiu-se como uma papoula, convencido de que o ministério estava mais firme que rocha, e tinha vida para cinco anos, senão dez.
Qual não foi seu pasmo, vendo que o matreiro do ministro do Império apesar daquelas palavras graciosas, insistia calculadamente pela retirada, mas a pretexto de moléstia; e que o presidente do conselho anunciava com um riso jâmbico a resolução de acompanhar seu colega: "Estava cansado e velho; devia passar o fardo a ombros mais robustos."
A bom entendedor meia palavra basta. A trempe do gabinete manobrava para alijar o colega do Império; mas aquela augusta solicitude manifestada pela solidariedade ministerial, abriu-lhe os olhos. Soara o buona sera; cumpria se despedirem logo, para não representarem o papel de D. Basílio.
Assim operou-se a mudança política. Mal sabia a essa hora o maroto do sacristão que ele tivera a honra de servir de pretexto a um acontecimento tão importante! Se o adivinhasse, não limitaria suas ambições ao modesto lugar de inspetor, que arranjou-lhe o escrivão, e à patente. de alferes que o novo presidente prometeu-lhe.
Decorreram oito ou nove meses.
A câmara fora dissolvida. O jovem escritor tinha sido eleito deputado, e estava com assento na câmara. Um domingo por manhã recebi sua visita, em retribuição do cartão que lhe deixara à chegada. Conversamos a respeito de política; o autor do artigo sobre a cabeleira do capitão-mor pensava que tínhamos demasia de liberdade; a imprensa especialmente carecia de um corretivo salutar.
Trouxe-me à memória o embrulho que ainda atravancava uma gaveta de minha papeleira. Sem advertir que fazia um epigrama ao Cícero pernambucano, perguntei-lhe:
— Que destino devo dar aos objetos que 1'. Ex.a me confiou? Quer que os envie à sua residência?
— Oh! não vale a pena! respondeu com um rubor de primeira legislatura. A mudança, que se operou na política, tirou a estes objetos sua importância.
Ao sair encontrou-se a visita com um indivíduo esguio, que subia a escada. O feto ministerial não se dignou abaixar o augusto e digníssimo olhar para a zumbaia do desconhecido, cujo ar beguino cheirava de longe a morrão de igreja.
Quem havia de ser o sujeito?
O marreco do sacristão, que já foi encaixado na Guarda Nacional vinha à corte pretender um empregozinho para viver. Servia-lhe até mesmo o oficio de seu amigo, o escrivão, arriscado a perdê-lo por certo desfalque no cofre de órfãos.
— Dizem, acrescentou ele; eu não creio; talvez não passem de calúnias; mas enfim tudo pode acontecer.
Trazia-me o mirífico alferes uma carta de recomendação, que lhe dava o direito de importunar-me uma hora a contar sua genealogia, como prólogo necessário e importante da biografia. Mas nunca um tagarela caiu-me tão a propósito do céu como aquele.
— Sr. Beltrão, meus pequenos serviços estão à sua disposição; mas não tenho valimento. É bom que procure os deputados de sua província.
— Qual, sr. doutor. São uns ingratos; já estou escarmentado deles. Não viu este que saía quando entrei? Depois que se encarrapitou, faz que não conhece a gente. Não gosto de falar... Mas se não fosse eu, ele não estaria hoje - senhor deputado!
— Trabalhou a favor de sua candidatura?
O sacristão olhou-me com um sublime gesto de modéstia:
— Fui eu que derrubei o ministério passado.
— Ah!...
O Sr. Beltrão tinha em um saguão ministerial travado conhecimento com o correio do ex-presidente do conselho, que lhe referiu a verdade verdadeira a respeito da queda do último ministério.
— Ora, concluiu ele; quem meteu o capitão-mor na dança fui eu..
— Então ele não perdeu a cabeleira na igreja?
— Qual cabeleira, sr. doutor. Aqueles cacarecos velhos estavam escondidos numa caixa do defunto vigário, que a tinha metido no armário da sacristia. Eu é que arranje: a tramóia com o escrivão.
— Pois Sr. Beltrão, já vejo que há de ser bem sucedido em sua pretensão. Um homem de seu talento deve ir longe.
Foi-se afinal o sacristão. Tornando ao gabinete, depois de uma manhã perdida, deu-me a curiosidade de examinar as antigualhas do embrulho, antes de mandá-las para o lixo. O rolo de papel, que o escritor pernambucano, jurando na palavra do escrivão, qualificara de maço de cédulas e como tal fora visto por várias pessoas; era nada menos do que um tesouro.
Era o manuscrito de uma crônica inédita da Guerra dos Mascates. Devorei o cartapácio e desde logo fiz tenção de o tirar a lume, espanando-lhe de leve as roupagens do estilo, que me pareceram um tanto poentas. Só agora, no remanso destas férias, à sombra de umas jaqueiras que sem dúvida competem com as faias virgilianas, se pôde levar a cabo a grande empresa; e não sei como, lá se meteram pela velha crônica uns cerzidos ou remendos de estofo moderno, que seguramente lhe tiram seu ar carrança, o melhor sainete do manuscrito.
Esta advertência, bem se vê que era imprescindível, para evitar certos comentos. Não faltariam malignos que julgassem ter sido esta crônica inventada à feição e sabor dos tempos de agora, como quem enxerta borbulha nova em tronco seco; não quanto à trama da ação, que versa de amores, mas no tocante às cousas da governança da capitania.
Pois não lograrão seu intento; que o público aí fica munido do documento preciso para julgar da autenticidade desta verídica história.
Se os tempos volvem como as vistas de uma marmota, e as figurinhas cá do presépio da terra entram para saírem, com os mesmos engonços e geringonças, embora metidas em trajos diferentes; disso não tem culpa o cronista. Lá se avenham com o mundo, que é o titereiro-mor de tais bonecos.
O que se tira agora à estampa forma apenas a primeira parte da crônica, e bem se pode chamar o Prólogo da comédia, que a seu tempo, quando houver folga e pachorra, também virá a lume.
Tijuca, dezembro de 1870.
S.