Guerra dos Mascates/Nota
Sai tardio e já fora de sazão este primeiro volume de uma obra que podia bem estar a esta hora no rol dos alcaides de livraria.
Tendo entrado nos prelos em 1871, como se vê do frontispício, só agora 1873 vem a lume, e ainda assim desacompanhado do outro tomo, que lhe serve de parelha.
A culpa é do autor e ele a confessa contrito.
Poderia alegar em seu favor que logo depois de remetido à tipografia o original, teve necessidade de ir a Baependi fazer uso das águas de Caxambu, que lhe eram aconselhadas.
Nem venha o leitor com a sua contrariedade, lembrando que nesse decurso escrevia ele o Til, para o folhetim da República.
É o Til desses livros que se compõem com material próprio, fornecido pela imaginação e pela reminiscência; e que portanto se podem escrever em viagem, sobre a perna, ou num canto da mesa de jantar.
Não sucede o mesmo com um romance histórico, e ainda mais em nosso país onde as fontes do passado nos ficaram tão escassas, senão muitas vezes exaustas.
Para decrever a nossa sociedade colonial é necessário reconstrui-la pelo mesmo processo de que usam os naturalistas com os animais antediluvianos. De um osso, eles recompõem a carcaça, guiados pela analogia e pela ciência.
O escritor que no Brasil tenta o romance histórico, há de cometer antes de tudo essa árdua tarefa de recompor com os fragmentos catados nos velhos cronistas a colônia portuguesa da América, tal como ela existiu, a separar-se de dia em dia da mãe pátria, e já preparando o futuro império.
Imagine o leitor a cópia de livros de que tem de cercar-se o autor; o isolamento a que deve sujeitar seu espírito a fim de identificá-lo com esses órgãos do passado; a leitura incessante que lhe é necessária para saturar-se da antiguidade que se exala dos velhos alfarrábios.
Isto não se faz em viagem, e ainda menos em viagem de terra, pelos caminhos que temos, e com as pocilgas que às vezes servem de pouso aí por esse interior.
Bem saudades levava eu dos meus personagens da Guerra dos Mascates, com os quais me habituara a tratar, e a quem já conhecia tão bem, que os distinguia de longe pelo gesto ou pelo andar.
Quando, de volta de Caxambu, de novo os procurei, já não eram os conhecidos que eu tinha deixado; e custou-me a entrar de novo em sua convivência.
Este inconveniente, eu o noto todas as vezes que interrompo alguma obra. Se ela ganha pela reflexão, perde muito da energia e abundância que tem o primeiro arrojo da concepção.
A idéia de um livro, para aqueles que o escrevem de inspiração, brota de uma ebulição do pensamento, como a planta do germe que fermenta no solo.
Essa ebulição traz consigo toda a seiva do livro como no torrão em que vem o broto há o sal da terra, que deve formar o lenho, as folhas e a flor da árvore.
Uma vez apagada a efervescência d'alma, sem que o livro esteja concluído, é muito difícil reproduzir o fenômeno, e nunca ele volta com a mesma exuberância e o brilho da primeira expansão.
Malfadada nasceu esta crônica, pois quando o autor se julgava tornado a ela, arrancou-o a enfermidade para levá-lo outra vez em triste peregrinação, mas desta vez pelos arrabaldes da cidade.
Cá ficaram as provas a rever, e os materiais do segundo volume outra vez fechados na pasta à espera de uma folga, que só veio decorrido um ano, e depois de profundos desgostos.
Acudirá o leitor com o Garatuja, que há poucos dias foi dado à estampa?
O Garatuja estava feito; faltava-lhe apenas a forma. A cidade colonial de São Sebastião, eu tenho-a tantas vezes estudado e discorrido por ela, que já a conheço melhor do que a cidade imperial em que habitamos.
Foi para mim um anódino ao tédio da moléstia, essa crônica despretensiosa, escrita sem esforço nem cuidado, com o maior desalinho. Outra sorte desejava eu para a Guerra dos Mascates, que todavia sai mau grado, tanto, se não mais, descuidada na composição, como na revisão.
Era minha intenção acompanhar este volume de notas, com referência à parte histórica da obra, mas sobre faltar-me o tempo, careço da paciência para esse trabalho tão fastidioso, quanto em geral desdenhado.
A Guerra dos Mascates é talvez dos fatos da nossa história colonial aquele de que nos ficaram mais copiosos subsídios. Temos acerca dessa grotesca revolução o informe dos dois partidos, os quais, como sempre acontece, exageraram cada um por sua conta.
Dos personagens, que a história memorou, o principal é sem dúvida Sebastião de Castro Caldas, governador e capitão-general de Pernambuco, posto ao qual foi promovido depois que deixou o governo da Capitania do Rio de Janeiro, onde serviu entre os anos de 1695 a 1697.
De seu caráter, como dos fatos que referem os cronistas, não carecemos de ocupar-nos aqui, pois melhor se verão do texto da obra, especialmente do segundo volume, onde a ação se desenvolve.
Foi este governador muito caluniado, em seu tempo, acabando por lhe faltarem os amigos e defensores, em qualquer dos partidos; até mesmo naquele a quem por último se entregara. É a sorte dos caracteres dúbios e perplexos, que dirigindo todo seu esforço a manter-se em equilíbrio entre as idéias e os homens, quando uma vez falseiam, não acham esteio e despenham-se.
Copiando-lhe o vulto histórico, além de vingar sua memória contra a injustiça e o aleive dos coevos, erigi em vera efígie, para exemplo dos pósteros, a estátua dessa política sorna, tíbia, sorrateira e esconsa, que à maneira da carcoma rói e corrompe a alma do povo.
Quanto aos outros personagens, tanto os que vieram à tona da história, como os outros que a onda dos acontecimentos submergiu, não são mais do que os manequins da crônica, semelhantes às figuras de pau e cera em que os alfaiates e cabeleireiros põem à mostra na vidraça roupas e penteados.
Se o leitor malicioso quiser divertir-se experimentando carapuças, o autor desde já protesta contra semelhante abuso e pelos prejuízos, perdas e danos que dai possam provir a seu livro, o mais inocente de quantos já foram postos em letra de fôrma, desde que se inventou esse gênio do bem e do mal chamado imprensa.
12 de maio de 1873.