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Guerra dos Mascates/I/III

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Debalde a faceira veio estouvadamente debruçar-se à janela; debalde começou a espantar os passarinhos com um certo chó dos lábios que riam-se arremedando um psiu; debalde contrariada pela impassibilidade do rapaz, tirou do peito uma tosse fingida, que, se não me engano, acabou por um suspiro mavioso.

Não se abalava o rapaz, que era pirracento, senão ardiloso. Mas que bigode, quando mais buço a pungir, há aí que vença em manha e teima a um narizinho retorcido? Mostrem-mo, se são capazes.

Acaso tocara a menina com o cotovelo na ruma de bagaços de cana, que alinhara sobre o peitoril, e dos quais se esquecera um instante. Segurou o primeiro na ponta dos dedos, e zás, fez alvo no rapaz que não se mexeu. Ao quinto ou sexto tiro todavia, o inimigo incólume, pois nenhum dos projéteis acertara nele, deu sinal de baleado, tombando de repente para trás.

Rodar sobre o galho como um corrupio, virar no ar uma cambalhota, e cair de pé, em frente da janela, foi para o rapaz negócio de esfregar um olho. Quando a travessa o procurava no ar, já estava ele quase embaixo da janela, fazendo-lhe por despique um momo de simulado espanto.

— Hã!...

Já era tarde para fugir, se é que ela nunca teve tal idéia, e não se deixara muito de propósito apanhar dessa calculada surpresa. Contudo fez menção de hesitar, enleada no melhor partido; e foi ela soltar a risada gostosa que lhe estavam provocando os gatimanhos do moço.

Começou então o desafio das risadas e das ligeirezas; porque ela procurava acertá-lo com o bagaço de cana, que ele evitava com saltos e furtadelas de corpo; daí as negaças e os enliços de parte a parte, até que partia o tiro; se errava o alvo, como quase sempre acontecia, Nuno fazia uma careta:

— Uh! Uh!...

E eram gargalhadas da menina e trejeitos do moço, que se divertia com aquele folguedo apto ao seu gênio trêfego e petulante.

Acabados os projéteis, meteu a menina a mão no bolso e tirou um gomo de cana, mas em vez de o jogar, começou com ele a fazer foscas ao moço, ora fingindo que o chupava, ora acenando que lho queria dar em mão.

— Quer? perguntou afinal.

— Atire!

— Lá vai!

Aparou o moço nas mãos o gomo de cana e chupou-o logo: depois outro e outro até o último.

— Não tem mais! dizia a menina virando os bolsos.

— Que pena!

Desde que não havia mais travessuras, sentiam-se os dois enleados; já não se animavam a olhar um para o outro, nem a trocar palavra.

O rapaz estendia os olhos para o caminho e suspirava; a menina já não se debruçava à janela, e de vez em quando voltava-se para dentro.

Desse lado da casa havia um tapume tosco e em muitos pontos aberto pela gente que, para encurtar caminho, atravessava os terrenos da quinta, na direção dos Mogados. Favorecido pelos hábitos dos moradores que deixavam essa parte da habitação deserta naquelas horas, Nuno se aproximara sem despertar a atenção, e como cada tarde ia conquistando mais terreno, estava então junto ao tronco de uma pinheira que lançava os galhos para o telhado.

Lembrou-se de trepar; era uma travessura. Nisso uma voz aguda chamou do interior:

— Marta!

Correu para dentro a menina, e com pouco voltou, comendo uma cocada que a mãe lhe dera, e com a qual se preparava para fazer figa ao camarada; mas não o viu. Cansada de procurá-lo entre as árvores e despeitada da peça que lhe pregara, ia retirar-se murmurando: guerra dos mascates 171

— Deixa-te estar, marotinho!

Eis que surge-lhe pela beirada do telhado a cabeça do estouvado rapaz, trepado na pinheira, donde conseguira alcançar com a mão as travessas ou cachorros, como lhes chamam os carpinteiros. Com o susto que sofrera e o receio de que descobrissem o rapaz naquela posição, Marta acenou-lhe com a mão que descesse:

— Um ninho! disse Nuno olhando pelo interstício das telhas.

— Aonde? perguntou a menina já picada pela curiosidade.

— Aqui. É o da carriça!

— Tem ovos?

— Dois!

— Ah!...

— Quer?

— Não!

Esse não, disseram-no vivamente os lábios de Marta, mas os olhos a desmenti-los estavam morrendo de desejos de ter o ninho com os ovos dentro. Já este passara do vão da telha para a mão do rapaz que o mostrava:

— Olhe!

— Que bonito! exclamou a menina com o prazer supremo da criança, que se atira para o brinquedo e parece meter-se por ele para melhor o possuir. É talvez por essa veemência do gozo infantil, que os meninos quebram logo as tetéias de que mais gostam.

— Tome! disse Nuno fazendo menção de levar-lhe o ninho.

— Não, não! respondeu Marta com espanto, querendo fugir da janela.

— Então levo para Isabel.

— Pois sim!

Desconsolado metia Nuno o ninho no peito da véstia, e preparava-se para descer, enquanto de seu lado Marta arrufada consigo mesma, olhava à sorrelfa o camarada, com sorriso insosso. O rapaz cogitava um pretexto para ficar; a menina tinha medo que ele o achasse, mas sentia que se fosse tão depressa.

De repente uma voz de tom imperioso soou perto, que produziu nos dois o natural espanto e soçobro de se verem surpreendidos em flagrante delito de travessura:

— Que fazes tu aí, garoto?

Com estas palavras, ressoou também o estrépito de uma brilhante cavalgata, que se aproximara sem rumor por causa da areia, e estava agora parada na rua, aquém do canto da casa, onde passava a cena anterior.

A figura proeminente do troço era um cavaleiro de grande porte e alta estatura, que então ocupava o centro na testa do primeiro grupo. Orçaria pelos quarenta anos; tinha olhos pequenos e ornava-lhe o rosto alvo densa barba cinzenta, fina e macia, que disfarçando a aspereza das linhas inferiores, corrigia-lhe o oval do semblante.

De perfil, porém, acentuava-se a projeção do queixo, bem como a proeminência da fronte, que se distinguia sob a aba do chapéu de castor, guarnecido a cairel de ouro. Nessas duas saliências da fisionomia estava, como em relevo, desenhado um caráter.

A pertinácia, não a da perseverança como a praticam os ânimos robustos que sabem querer, e sim a da obstinação própria de naturezas tímidas, que se aferram ao pretexto; a resistência da dúvida, alimentada pela índole da contradição; o molde da parte posterior do rosto o estava retratando.

Anunciava inteligência a fronte aberta; e todavia a testa bombeada acusava nesse contorno arredondado do crânio um traço feminino. Via-se aí a fôrma do talento do detalhe, ou melhor, da maleabilidade do engenho, que se presta a vários misteres ao mesmo tempo, contanto que todos calhem na bitola.

Era nobre e viril o parecer do cavaleiro, especialmente em repouso; mas desde que se punham em ação suas faculdades, desprendia-se delas um prurido de atividade sôfrega e volúbil, que desconcertava a compostura do semblante, como do talhe. Falava rápido, com a palavra difusa e a voz estridente; demasiava-se no gesto; e em todos os seus modos punha tal alacridade, que devia-lhe algumas vezes o espírito titubear, enleado naquela meada de idas e vindas, de passos e voltas, em que se comprazia o seu gênio infatigável.

Casaca de veludo castanho com mangas de bota e guarnecida, como o chapéu, de cairel de ouro; volta de renda, laçada ao pescoço, e da qual lhe caíam as duas pontas largas sobre o peito da véstia de cetim azul com ramagens brancas estampadas; talim de veludo que suspendia a rica espada; broches de pedraria na presilha do chapéu, nos punhos do camisote e na atadura dos calções de brocado amarelo: assim vestia o cavaleiro.

Trajo esse para fidalgo de grande estado, novo e aprimorado da fazenda como do feitio, bem longe de sobressair na compleição bem proporcionada do cavaleiro, parecia, pelo desleixo com que o trazia ele, já amarrotado do muito uso.

Tal era Sebastião de Castro Caldas, governador e capitão-general de Pernambuco.

À direita ficava-lhe o Capitão Barbosa de Lima, secretário do governo; à esquerda o Capitão Negreiros, primeiro ajudante-de-ordens. Seguia-se o Tenente Bernardo Alemão, segundo ajudante-de-ordens, com o alferes André Vieira, que mandava o piquete de cavalaria da guarda do governador; por último quatro criados em libré de seda amarela com forro verde dobrado nas golas, no canhão e ponta das abas, tendo as armas dos Castro Caldas bordadas no alto da manga do gibão à guisa de dragona.

Eis a cavalgada que parara no canto da casa, com espanto do Nuno, que lá de cima da sua pinheira, quase encarapitado no telhado, esgazeava uns olhos donde coava-se através do susto o chasco ardiloso do brejeiro.