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Guerra dos Mascates/I/IV

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No momento em que a luzida cavalgada, avançando a passo moderado, defrontou com a janela do sótão, Um ligeiro sorriso perpassara nos lábios do governador, erriçando de prazer o fino bigode, que sua mão branca e esmerada alisou com um gesto rápido.

Tinha percebido o vulto gracioso de Marta, que destacava no vão da janela, como a figura de uma sílfide na tela escura de exímio pintor. Ao sopro da brisa as roupas transparentes de garça verde-gaio lhe flutuavam em torno como asas de gaturamo, especialmente as mangas soltas, donde se lançavam os lindos braços, imitando lírios hasteados entre a folhagem. Um justilho preto, curto e chanfrado, cerrava-lhe a cintura mimosa, que dobrava-se como a haste da flor, com as inflexões do talhe.

Breve se apagara nos lábios do governador o sorriso, percebendo que a menina não estava só, mas praticando com alguém. Ao ver o intruso, a posição em que se achava, e a casta de gente que era, carregou-se-lhe o sobrolho; e por uma leve depressão do lábio superior, dir-se-ia que mordera um fio do bigode.

Todavia não se alterou em geral a calma de seu porte; e a ligeira perturbação passou desapercebida para todos, com exceção dos dois oficiais que ladeavam o governador.

Foi então que o Capitão Negreiros, justamente irritado contra o temerário que ousara cair no desagrado do poderoso governador, não só lançou contra o Nuno aquela apóstrofe acentuada com a mais oca retumbância de sua voz, porém ficou-o fulminando com a sombria catadura.

Como não respondesse o rapaz, e estivesse lá de seu poleiro a mirá-lo com ares de mofa, arremessou-lhe de novo estas palavras:

— Não tens boca, mariola! Que fazes tu ai?

— É um ninho de carriça, sim, meu senhor!... respondeu o menino atarantado.

— Um ninho, grandíssimo peralta! bradou o ajudante com suprema indignação e a mais possante ênfase oratória. Um ninho no telhado!...

No ânimo do nosso ajudante um crime de lesa-majestade dos capítulos de primeira cabeça não produziria tamanho horror, qual mostrava, e devemos crer que às veras, diante da enormidade desse atentado inaudito contra a inocente prole da carriça e a inviolabilidade do telhado do Perereca.

Em verdade era grave o caso; assassinato em massa e invasão na propriedade alheia. Se um rei ou um governador se lembrasse disso para distrair-se, inventando uma guerra ou algum monopólio que dizimasse o povo na vida e na bolsa, avisaria o nosso ajudante a excelência da medida; pois qual é o fim da república senão divertir aos príncipes? Mas quando era um galopim que ousava atacar as telhas e os ninhos!... Oh! protérvia!...

Arremessou o capitão o cavalo contra a cerca no intuito de alcançar o artelho do rapaz e derrubá-lo da árvore; mas este que lhe adivinhou o plano apoiando-se na beirada, galgou o telhado e se pôs a salvo.

— Safa rascada! gritou o brejeiro.

Afastara-se o governador e entretinha-se à parte com o prazenteiro secretário, parecendo de todo alheio à cena que ali se passava. Mas quem o observasse atento, perceberia o olhar rápido que a furto relanceava para a janela do sótão, onde se eclipsara a estrela, com o aparecimento da cavalgada.

— Desce, biltre!... intimava furioso o ajudante.

Mas o marotinho do rapaz gingava no telhado, bamboleando o corpo e fazendo-lhe gatimanhos de zombaria:

— Babau, sr. capitão! Babau!

— Eu te esbandalho, pedaço de um bargante! berrou o ajudante.

— Isca! Isca!.

— Olá, um! Agarrem-me já este espirro de gato.

Apeou-se um dos lacaios para cumprir a ordem, o que compreendendo o Nuno e vendo a estreiteza do caso, lançou em torno uma vista indecisa; nisto sentiu que lhe puxavam a aba do gibão. Voltando-se, deu com a carinha travessa de Marta um tanto amarrotada do susto, a mostrar-lhe a recâmera como um asilo. Não havia hesitar.

Corriam-se as adufas da protetora janelinha, justamente quando aparecia a cabeça do lacaio por cima das telhas. O ajudante estava no delírio da raiva; se a princípio se mostrava irritado por conta do governador, agora era pela sua própria que esbravejava como um possesso.

— Marau, gambirra, fundilho de Judas, lêndea do Cão-Tinhoso, fedelho de Satanás!...

Por este jeito vociferou durante algum tempo o ajudante, notável pela fertilidade dos epítetos mais pitorescos e originais, com que nos seus momentos de sanhuda eloqüência ele enriquecia o idioma das regateiras.

Observando o governador que seu ajudante começava a exceder-se, deu de rédea ao cavalo e passou adiante com o secretário, cujo eterno sorriso se encrespara com um ligeiro tom de ironia ao ver o destampatório do capitão.

Quando passavam pela frente da casa, abriu-se a porta, e saiu um homúnculo, armado com uma cabeça de pitorra e enfaixado em um quimão de primavera. Desbarretando-se até ao chão, desfazia-se em cortesias tão rasteiras, que mais pareciam dirigidas ao cavalo do que ao cavaleiro.

— Boa tarde, sr. almotacé.

— Aos pés da muito alta plosopéia do exmo sl. govelnadol!

A esse tempo por urna fresta da gelosia do meio, a Sr.a Rufina, que empurrara o marido pela porta, espreitava de dentro.

— Não sabe o que acontece? perguntou o governador.

— Sabelei, meu senhol, se a bondade de V. Ex.a concedel-me essa glaça.

— Capitão! disse o governador com os olhos no secretário.

Este, compreendendo a intenção, tomou a palavra:

— Agora mesmo, ao passar, vimos um galopim que trepou no telhado de sua casa e entrou pela janela do sótão.

Ouviu-se o estrépido da gelosia que batera, e logo uma voz correndo para o interior:

— Virgem Santíssima! No quarto de Marta! Acudam, gentes!... Quanto ao Sr. Simão Ribas, ficara estatelado com o caso; mas afinal, pondo as mãos na cabeça, exclamou em tom patético:

— Um sicálio, aflontando a minha autolidade! Que atlevimento!...

Voltando-se depois a custo, porque as pernas lhe fugiam, disse para a casa:

— A minha vala, Senhola Lufina!

Entretanto Nuno e Marta espiavam pelas frestas bem conchegados pelo susto e também por esse gozo inefável de transviver-se em outro, o que já em criança todos pressentíamos com o prazer de inocente folguedo. Qual, no jogo da manja, não procurava de preferência a parceria da menina mais bonita, para atracar-se com ela no cantinho e tão apertados, como se quisessem esconder-se um no outro?

— Que Caifás tão feio que é aquele sujeito! dizia Marta mostrando o ajudante. Cruzes!

— Ah! se eu tivesse já a minha durindana! dizia Nuno com recacho militar; você veria como eu havia de tosar o pêlo àquele barbaças de centurião. Olhe: vá a pequena lá abaixo e busque-me o estoque do pai.

— Deus me livre! Para a mamã ralhar-me!...

— Agora sim! exclamou o rapazinho batendo as palmas de prazer.

— O que é? perguntou curiosa Marta, enfrestando o olhar.

— Cá chega o Vital.

— O primo?

De feito entrara na cena do quintal um novo personagem, bem disposto e elegante cavaleiro, no viço dos anos floridos, pois já andava nos trinta. Sombreavam-lhe o rosto oval fino bigode e pera que ele trazia contra a moda do tempo, e destacavam-se com donaire na tez de suave moreno. Os olhos, tinha-os grandes, cheios de brilho e ardimento, como lumes, que eram, de um coração bravo e generoso. Nos cantos da boca, apagava-se o sorriso em uma plica ligeira, indicio da preocupação constante que absorvia-lhe o pensamento.

Muita louçania dava a essa fisionomia inteligente e ao garboso talhe o apuro das roupas que trazia com especial gentileza o cavaleiro. De lemiste com forro de cetim azul era a casaca bem talhada, que dobrava a gola sobre uma linda almilha de tela alcachofrada, e espalmava as abas pela anca tio brioso cavalo, mostrando os calções estreitos de veludo cereja. Colarinhos e punhos de renda de Veneza atacados com rubis; luvas de pele acamurçada; alva pluma de garça no chapéu de castor pardo; borzeguins altos com rosetas de filigrana de prata, iguais ao tope do chapéu e às borlas do florete, completavam o casquilho vestuário.

Desde algum tempo que o cavalheiro, parado a curta distância, observava oculto pela ramada das árvores, a ridícula cena ali representada pelo Ajudante Negreiros. Aproximando-se afinal, saudou o oficial com um gesto de mofa.

— É certo, pois, sr. ajudante, que afinal romperam os de Olinda?

— Donde o sabe? atalhou o Negreiros tomando a nova ao sério e já alvo roçado com o prazer de espatifar os do levante.

— Agora vejo que me enganei. Ao chegar, dando com toda esta azáfama da gente de El-Rei, devia pensar que os nobres tinham assaltado a casa do meu parente Simão Ribas!

— O caso não é para chascos, nem eu sou homem para eles, bem o sabe o senhor! replicou o ajudante com cenho de ameaça.

— Que se há de fazer à comédia, senão rir dela? Esbarra-se a gente no caminho com um ferrabrás de espada desembainhada, a esgrimir contra os telhados, dando caça a um pirralho: e quer o sr. ajudante que se fique sério como um burlão?

— Sr. Vital Rebelo! exclamou o capitão aceso em ira.

— Sr. Ajudante Negreiros! disse o seu interlocutor sem alterar-se, como se respondesse a uma benévola interpelação.

A ponto sobreveio um lance para atalhar a disputa que prometia azedar-se; e foi que a janela do sótão abriu-se de supetão e dela espirrou o Nuno acossado por um inimigo que lhe tomara a retaguarda. Mal saltara o rapaz no telhado, que a Sr.a Rufina assomara ao postigo, empunhando à guisa de lança um cabo de vassoura, armado da competente broxa de palha.

Convencido de que, na estreiteza do caso, só uma resolução pronta e destemida o podia salvar, o mascatinho atravessara de corrida, mais veloz do que um gato, a aba do telhado até a extremidade da casa, e aí de um pulo, travou os ramos de um cajueiro, donde alcançou facilmente o chão, e desapareceu entre o arvoredo.

Tão rápido foi o incidente, que deixou pasmado o Ajudante Negreiros; mas recobrando enfim o ímpeto, arrancou no encalço do fugitivo, e por certo o alcançara se não lhe atravessasse o passo Vital Rebelo.

— Caminho!

— Não se passa.

— À ordem do sr. governador!

— Da parte de El-Rei!

— E quem, estando eu, fala aqui em nome de El-Rei Meu Senhor?

Pronunciara estas palavras Sebastião de Castro, que se aproximara advertido da altercação.

— Falo eu, disse Rebelo com um tom respeitoso e digno; e falo a V.Sª a quem El-Rei pôs de governador nesta capitania para reger-lhe os povos e guardar-nos os forais; que não para montear os filhos de seus vassalos como caça bravia.

Pareceu o governador um instante perplexo ante aquela resposta, onde ressumbrava não só a altivez dos brios, como a consciência de um direito; logo, porém, replicou em tom moderado e conciliador:

— Talvez tenha razão, Sr. Vital Rebelo; mas se algum excesso houve, que eu não creio, da parte de nosso ajudante, foi somente no zelo com que se emprega no serviço de El-Rei Meu Senhor e da nossa pessoa.

Cortejando com a mão a Vital, voltou-se para a comitiva, com estas palavras:

— Vamos, senhores, que de sobra já nos demoramos.

Desfilou a cavalgada pela frente da casa onde o digno almotacé, ainda engasgado com o caso que lhe acontecera, gritava pela vara para intimar a sua autoridade ao malfeitor.