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Guerra dos Mascates/I/XI

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Um cavaleiro bem parecido e trajado com lindas roupas, que descia a rua na direção da Misericórdia, fora causa do sobressalto da moça.

Quase fronteiro à janela, o fogoso cavalo em que montava caracolou-se voltando rapidamente sobre os pés; e durante um momento lutou o mancebo, que mostrava ser excelente escudeiro, para subjugar o animal. Nesse tempo o tinha visto Leonor, que se lançara para a janela.

Decerto percebera ele o vulto da moça e a reconhecera, porque fitou nela um olhar expressivo acompanhado por um gesto rápido. Entreabrira a mão direita erguida; e um pequeno objeto, mais alvo que as rendas do punho, apareceu na palma. Logo após, dando de rédea ao cavalo, seguiu a passo pela rua adiante.

— Não é nada, tia, disse Leonor ainda trêmula, sem retirar os olhos das restas.

Mas não se é ninfa debalde. A esperta da D. Severa não pudera ver já as feições do cavaleiro, mas admirando-lhe o talhe airoso que moldava a casaca de lemiste, induziu pela perturbação da sobrinha quem era o guapo mancebo.

— Sonsa! Cuidas que não o conheci?

— A quem, senhora?

Já livre da surpresa, a moça volveu os olhos em torno como se procurasse alguma pessoa.

— A quem mais, senão a teu marido que passou neste momento! Pior é se me queres fazer de boneca!

— Bem vi um cavaleiro, mas se era o Sr. Vital Rebelo não digo, porque não reparei; estava olhando para outra cousa.

— E o susto que você teve?

— Ah 1... Cuidei que me tinha caído o fio da seda, respondeu a moça mostrando o novelo.

— Estes olhos não me enganam!

— Está bom!

Dizendo isto com um tonzinho de arrufada, Leonor se absorveu completamente no trabalho, apesar de estar quase escuro. A matrona continuou:

— Agora, porque nega você, não sei. Não é tão natural que seu marido, vencido de saudades, quebre os protestos de esquivança e espie as ocasiões de ver sua esposa e senhora? Assim praticava-se antigamente. As damas encerradas em seu castelo viam às vezes passar um cavaleiro misterioso, de viseira caída; ou então à noite calada, pelo claro da lua, ouviam alguma serenata embaixo da sua torre. Batia o coração à castelã: "Quem será?" perguntava baixinho para a aia. E ficava naquele sobressalto da dúvida, se porventura seria o esposo que tornava, ou algum outro cavaleiro enamorado de sua beleza, que neste vai e vem da esperança é que estava o maior gosto. Qual era naquele tempo o marido que depois de uma ausência entrava em casa, como hoje, tão sem graça, que a gente já sabe o dia e hora em que chegam e a cara que trazem?

— Mas, então, nesse tempo as esposas viviam sempre ausentes, ou ainda pior, desquitadas de seus maridos?

— Pois aí estava a galanteria, menina! Amarrem um ao outro, como uma caçamba na corda, duas criaturas, e agora vejam que aborrecimento não é este de se aturarem a todo o instante, que por fim de contas ambos já se sabem um ao outro de cor e salteado; e de mais a mais, está-se vendo que a gente não pode receber as finezas e requebros dos cavaleiros, mesmo nas barbas do homem?... Não tem jeito nenhum. Como era, sim, que. os maridos nunca perdiam o garbo de namorados, e as damas viviam até morrer sempre requestadas com mil gentilezas. Minha bisavó tinha setenta anos quando D. Jorge de Albuquerque, num torneio aqui mesmo. nesta Olinda, lá no pátio do palácio, com o punhal na gorja, obrigou três cavaleiros a confessarem que ela era um bogarim.

— Por causa dos cabelos brancos? observou ingenuamente Leonor.

— Fosse pelo que fosse. Ainda há quem ouvisse falar do quanto era formosa então; e dizem que em mocinha se pareceu comigo.

As observações sensatas de D. Severa suscitam uma reflexão curiosa a respeito da semelhança entre os costumes cavalheirescos, na parte conjugal, e os atuais costumes realistas. Exceção feita de algumas circunstâncias mínimas, e substituídos os torneios pelos bailes, as serenatas pelos presentes, parece que o fundo é o mesmo.

Escutava Leonor a matrona somente com o ouvido esquerdo, porque o direito o tinha ela alerta ao menor rumor de fora. De repente a conchinha cor-de-rosa, meio oculta pelas madeixas castanhas, ardeu com súbito rubor. O som da pata de um cavalo batera ao longe o chão duro e seco da rua.

— Ai, querida tia, me conte do torneio. Então D. Jorge de Albuquerque... é o donatário, o filho de D. Brites, o que pelejou na Índia, não é, tia?... Mas então ele atirou a luva por minha tataravó!... Não é? Como havia de ficar a dama toda cheia de si!... As cores... Quais tinha D. Jorge?... Eram negras as armas, sem dúvida? E o mote?...

Tais perguntinhas caíram sobre a matrona como um enxame de abelhas, e a atordoaram um instante; recobrando logo seu ar solene e cheio de dignidade, começou D. Severa a narração pitoresca das cenas do torneio, em que fora sua bisavó proclamada o bogarim de Olinda.

Entretanto se aproximara o tropel, que cessou de repente por baixo da janela. Se D. Severa estivesse menos preocupada com as reminiscências cavalheirescas da família, não lhe escapara decerto nem essa circunstância, nem o curioso ponto de malha que a sobrinha apesar do escuro acabava de inventar.

Julgo conveniente dar às minhas amáveis leitoras, se as tiver, a explicação desse ponto elegante, porque estou certo a não encontrarão em nenhum jornal de modas.

Faz-se volta sobre a mão direita, enfia-se a agulha sutilmente pela fresta da rótula; um cavaleiro na rua amarra um bilhetinho na agulha e estica o retrós; colhe-se então docemente a volta, e de novo trançando as malhas, remata-se o ponto de laçada. Há atualmente muitos outros pontos de croque mais em voga; porém nenhum tão elegante como aquele.

Muito antes de terminar D. Severa o episódio da bisavó, tinha Leonor rematado seu ponto; e sentindo a fazer-lhe cócegas no seio um papelzinho dobrado, tornou-se inquieta e desassossegada. Nem mais escutava a narração daquela famosa aventura do bogarim, que tão viva curiosidade lhe despertara pouco antes.

Afinal se não pôde conter:

— Eu volto já, tia D. Severa; um instantinho, enquanto arranjo meu toucado que se desmanchou, não sei como.

— Pois juntas iremos.

— Para que ter esse trabalho? Não me demoro nada. Espere a tia.

— Porventura, Leonor, quer você esconder de mim alguma cousa?

— Eu?.. . Esconder!. .. Ora que lembrança esta agora da tia!

— Pois está você com tantas partes por uma cousa á-toa!

— Já não digo nada; a senhora tia faça como for de seu gosto.

— Venha então para a alcova se compor.

— Não é mais preciso; aqui mesmo arranjarei.

Contrariada, Leonor alisou os cabelos com as pontas dos dedos e deu pelo aposento alguns passos a esmo, indecisa sobre o que havia de fazer, e ao mesmo tempo impaciente de tomar uma resolução.

Soaram passos no corredor; entrou um escravo com uma candeia de garavato para acender o lampião da sala; e logo em seguida o dono da casa, que naquele momento chegara da rua.

Representava o Capitão André de Figueiredo ser homem de trinta e sete anos; toda a sua pessoa respirava exuberância de energia e arrebatamento, que dizia com a organização musculosa e o adunco perfil.

Ao entrar, dardejou um a outro canto da sala, olhos que não buscavam somente, mas iam já cheios de iras para afrontar o objeto procurado. Reconhecendo que estavam sós as duas senhoras, sofreou um tanto os ímpetos; e se dirigiu para elas dando as boas-noites.

— Traz-nos alguma boa nova, Capitão André?

— Nenhuma, senhora prima.

— Disso já eu sabia que era bem escusado perguntar-lhe, porque nada havia de saber. Os homens de agora assim é que nos tratam, de resto. Já se foi o tempo da galanteria, em que as damas eram as primeiras consultadas sobre os negócios; e não se saiam por isso os cavalheiros mal das empresas, antes não sei que diga, que muito melhor do que hoje em dia, e a prova ai está na nossa terra.

Aproveitou Leonor o ensejo para ganhar furtivamente a alcova. Como de costume crepitava na cantoneira aos pés da Virgem a luzinha da griseta de prata, que era a devoção da moça, lá por uma certa promessa que fizera.

O bilhete que tantas cócegas lhe fizera, continha poucas palavras:

Senhora, que esposa não devo chamar quem se roubou ao Juramento que a fizera minha. Forçoso é que vos veja e fale pela derradeira vez. Se de todo ainda não se apagou em vosso coração aquele afeto, que já vos mereci, e antes nunca o merecesse, por vosso bem e meu sossego, interceda ele em meu favor para que obtenha de vossa crueldade, essa mercê.

Devorou a moça com os olhos primeiro, depois com um alívio de beijos, a carta; e cerrando-a entre as mãos cruzadas, levantou para a Virgem uma prece eloqüente, ainda que muda. Outro pensamento, porém, a reclamou; desejava responder; e as dificuldades lhe ocorriam à mente.

Atualmente, não há mocinha de dez anos - outrora se chamavam meninas às de vinte - não há, dizia eu, bonecrinha de carne e osso, que não tenha sua papeterie com papel de vários tamanhos, desde o de palmo para cartas de negócio até o de polegada para os bilhetinhos açucarados. E não só papel como sobrecartas, fechos emblemáticos, lacres perfumados, penas diamantinas, areia de ouro, enfim todo o arsenal de ninharias indispensável à ciência epistolar, a mais transcendente e sublime deste século.

A bem dizer, a carta é a mais poderosa alavanca do progresso: nem o jornal lhe chega. Quem se propusesse a estudar sua fisiologia e sistemar as espécies de que são principais a carta de empenho, a circular dos candidatos, a de crédito, a de namoro, de felicitação, de cumprimentos, a reservada, reservadíssima e confidencial, escreveria uma bela obra, um livro prático, dos mais justamente apreciados na atualidade. E faria fortuna o autor, principalmente se o governo lhe ficasse com a metade dos exemplares, no intuito de promover a colonização.

No tempo desta história, a ciência epistolar estava ainda no embrião. Cada casa, e das fidalgas e abastadas, era mobiliada com um tinteiro único, mas respeitável.

Esse traste importante, acompanhado dos seus acessórios, o areeiro, duas penas de ganso e uma hóstia ou obreia encarnada, estava debaixo de chave e sob a guarda imediata do dono da casa, como o responsável pela honra e segurança da família.

Lembrou-se, portanto, Leonor da resposta por escrito, somente para reconhecer a impossibilidade em que estava de usar dela. O outro meio, mais corriqueiro, o dos recadinhos, bem sabia ser impraticável, assim de repente, em uma casa onde a traziam espiada. Sôfrega, correu os olhos por todos os cantos e móveis do aposento, procurando um meio, ou pelo menos uma inspiração.

Com a cabeça inclinada em atitude pensativa, engastando entre os dentes de pérola a unha rosada do polegar, e estremecendo de impaciência, estava encantadora a donzela. Dir-se-ia que ela esperava tirar da coroa daquele dedinho mimoso o fio do enigma, como costumava puxar com os dentes a ponta da linha para desembaraçar a meada.

Eis que desperta com um pulinho de contentamento. Estende o seu lenço de batista sobre o donzel, e tirando uma agulha de bordar do açafate de costura; picou a veia azul do braço esquerdo.

Uma gota, e da mais fina púrpura, borbulhou na tez alva e acetinada. Aí molhando a miúdo a ponta da agulha, pôde escrever na cambraia estas palavras: amanhã na cerca.

Machucou o lenço na mão, que mal o escondia, e disfarçando esta entre os fofos da saia, voltou à sala onde encontrou ainda em conversa animada D. Severa e o capitão. As outras senhoras da casa estavam sentadas em roda de D. Lourença, respeitável matrona pernambucana, que muito se avantajou nas letras e virtudes. Era irmã de André de Figueiredo, e viúva.

Achando já reunida na sala a família, à qual esperava antecipar-se, hesitou a moça; a resolução porém não se fez esperar. Acercou-se do grupo, dizendo:

— Quem me dá um lugar?

E sem esperar resposta:

— Está bom; tenho meu estrado.

Encaminhou-se então para a janela com o pretexto de arrastar o estradinho em que estivera sentada à tarde. Do primeiro lance viu ela parado em frente da casa um vulto. Observando que não reparavam, abriu rapidamente a aldraba da rótula e arremessou o lenço.

Ao voltar-se de todo para melhor empurrar com o pé o estrado, viu em frente André de Figueiredo, que se aproximava dela:

— Sabe quem andou hoje por Olinda, Leonor?

— Como posso saber, eu que daqui não saio nunca? respondeu a moça trêmula.

— O Vital Rebelo!

— Não disse eu? acudiu D. Severa.

— Bem minha tia teimava que o tinha visto! continuou Leonor.

— Que terá ele vindo buscar? perguntou D. Lourença.

— Não sei; mas queira Deus não seja o que suspeito! replicou o capitão com surda voz de ameaça.

— Que vem fazer? acudiu D. Severa. Pois, Lourença, não tem ele destas bandas a dama de seu coração?

— Tomara eu que me ele deixe sossegada! balbuciou Leonor.

Pálida e demudada, foi a moça tomar lugar na roda das senhoras, disfarçando para esconder seu terror. Mil vezes arrependida do que fizera, bem desejava, se fosse possível, resgatar com um ano de sua vida aquele momento de irreflexão. Quantas desgraças talvez não ia causar a sua imprudência?