Guerra dos Mascates/I/XII
Era noite caída.
Iluminou-se a rua com o clarão dos fachos agitados pelos pajens, que precediam os nobres cavaleiros e suas damas.
Das bandas da Misericórdia e Varadouro, retroava o chão com o estrupido de animais que se aproximavam; e com pouco levantou-se debaixo das sacadas o burburinho que produz o vozeio soturno de muitas pessoas.
Eram bandos de cavaleiros, que chegavam acompanhados de seus pajens, e alguns precedidos de palanquins, onde vinham as donas e filhas dos nobres moradores de Olinda, para o serão quotidiano das casas do Capitão-Mor João Cavalcanti.
Ficavam estas casas à direita e parede-meia das outras em que morava o Capitão André de Figueiredo; eram, porém, mais vastas e avantajadas, assim na forma da construção, como no custo das alfaias e móveis que a adereçavam.
Ocupava dois terços da frente a peça principal, a casa do sofá, larga sala em quadro, com as paredes revestidas no terço inferior de almofadas de brasilete e o resto de colgaduras de pano de rãs.
De meia volta em abóbada, era o teto pintado a fresco, com tarjas douradas que cercavam os vários painéis ovais dispostos em simetria pela precinta e representando episódios guerreiros da descoberta de Olinda, ou frutos e aves de Pernambuco.
No centro do teto, em obra de talha, via-se enroscada uma serpente, mastigando nas presas a corrente donde pendiam uma grande lâmpada de prata cinzelada com sete luzes, que bastavam para esclarecer o vasto aposento.
Às quatro janelas rasgadas para a rua correspondiam três portas de comunicação interior, sendo a entrada pela câmara da direita donde se descia ao vestíbulo, e ficando à esquerda, ao longo da parede, o sofá.
À noite de ordinário conservava-se fechada a porta larga do fundo, que era do oratório; salvo quando se tinha de festejar algum santo de particular devoção da casa, como era o Evangelista, seu padroeiro; ou quando celebravam-se casamentos e batizados de pessoas da família.
Nos quatro ângulos da ampla sala desciam até a meio da parede troféus com lambeis volantes, em cuja apiciadura ressaltavam suspensos à cornija quatro escudos em metal com os brasões de aliança que o capitão-mor tinha o direito de trazer e eram os dos Coelhos, Barros, Sousas e Bezerras.
De jacarandá preto, trabalhado a torno, e de sola vermelha com pregaria de metal amarelo, era toda a mobília. Nos espaldares das cadeiras coroados pelo elmo aberto em obra de talha, esculpira destro artífice o escudo das armas do capitão-mor.
A essa casa concorriam regularmente todas as noites os moradores principais de Olinda, parentes pela maior parte ou aderentes do capitão-mor, para colher informação das cousas da governança e andamento da república; e também combinarem os melhores alvitres na estreiteza em que se achavam, com os negócios da terra bem intrincados, e o governador tão desviado do bom caminho pelo mau conselho dos que o cercavam.
Era João Cavalcanti naquele tempo o chefe da grande família Cavalcanti, que em Pernambuco data da fundação da colônia, e provém de troncos nobilíssimos; pela linha materna saíram da estirpe dos Coelhos e Albuquerques, flor da fidalguia portuguesa, e pela linha paterna remontam a Arnaldo Cavalcanti, que se aliou na casa dos Médicis, a mais ilustre de Florença; de cuja linhagem nasceu Filipe Cavalcanti que se passou a Pernambuco, nos primeiros tempos da povoação.
De grandes posses, senhor de muitos engenhos, vivendo à lei da grandeza, com todos os regalos da vida; bravo, cortês e generoso, embora presumido de sua fidalguia; liberal até à prodigalidade, de bolsa aberta sempre para quem a ele recorria: era de razão que tivesse o capitão-mor grande séquito não só entre os moradores nobres, como na gente miúda da terra.
Não havia, entre os mazombos insignes daquele Pernambuco, outro mais acatado do que este, e tão poderoso; pois só com os seus escravos e os acostados de seus engenhos, sem falar das suas ordenanças e dos inúmeros sequazes que tinha pelos povoados, podia levantar da noite para o dia um bom terço de tropa mais decidida, senão melhor armada, do que a milícia do governador.
Mazombo era o título popular que tinham naquela época os principais, entre os nobres pernambucanos. A história, que nos conservou o vocábulo, hoje caduco, descuidou-se de transmitir a origem; de modo que, a não ser o precioso manuscrito desta crônica, não poderia o Instituto Histórico, apesar de profundas e sábias investigações, assentar opinião segura em tão escabroso assunto.
Tinha a destruição dos Palmares divulgado boa cópia de nomes africanos, empregados pelos negros na sua república. Zambi chamavam ao cabo supremo, a quem todos obedeciam; e muzambi, eram os grandes oficiais, do serviço do maioral, e seus ministros.
Por desprezo, entraram os mercadores portugueses a alcunharem os nobres pernambucanos de mazombos, como para inculcá-los de cabecilhas de negros, querendo com isso lançar-lhes o labéu de gente de cor. É peco esse de nossos irmãos, tine mais tarde inventaram com a mesma intenção o epíteto afrontoso de pé-de-cabra.
Repetiu-se o que sempre sucede em tais casos. Os filhos de Pernambuco, e especialmente a gente de cor, trocando em honroso mote o nome que lhes haviam lançado os contrários como afronta, timbravam em designar por mazombos as pessoas principais da nobreza pernambucana; e tornou-se o titulo de mazombo insigne a maior glória a que poderia aspirar um fidalgo na terra de seu nascimento.
Quando entrou a família de André de Figueiredo, já achou a sala povoada dos parentes e vizinhos que eram certos ao serão.
Atravessando por entre as mais pessoas, que se moviam no aposento para tomar lugar, ou recostarem-se às sacadas das janelas, o bando chegado por último aproximou-se do sofá.
Não era qualquer sofá o da casa do capitão-mor, nem se parecia em nada com o móvel tão conhecido e corriqueiro, que hoje em dia trasteja a mais pobre das salas de visitas, ou alfaia o rico palácio, com a diferença apenas da madeira e da forma elegante.
Naquele tempo esse requinte de luxo oriental, que os portugueses trouxeram de seu comércio das Índias, poucos se animavam a gozá-lo; e não tanto pelo custo das alfaias, como pela espécie de pompa real, que tal uso comunicava ao aposento. Nas colônias, porém, nunca as pragmáticas foram tomadas ao sério; os ricos moradores ou fidalgos das capitanias zombavam dos ciúmes da majestade e de suas leis suntuárias.
Corria no fundo e ao longo da parede um largo estrado, com alcatifa de veludo escarlate e ressalto de dois degraus sobre o soalho da casa, guardado todo ele por um esparavel de brocado azul, que se elevava em cúpula suspensa à parede com um florão de bronze.
Na face exterior dessa cúpula apainelava-se o escudo oval dos Cavalcantis, com as armas de prata coticadas de negro, em campo de pala, prata no fundo, vermelho em cima, floreteado também de prata. Por timbre um cavalo com asas, mãos suspensas, pés sobre o elmo, volante por entre chamas.
Sobre o estrado havia uma camilha de couro rendado em arabescos e flores que deixavam coar-se o ar pelos recortes; fresco ripanço que em clima ardente como o de Olinda convidava os lassos membros ao repouso. Era brasil a madeira do custoso móvel, e as pregarias da melhor prata.
Em frente à camilha e tomando-lhe a vista, um bufete coberto por cima de charão da Índia com embutidos ou marchetarias, e fechado dos três lados de fora por bambolins de couro de Moscóvia com iluminações de prata. À volta do bufete, algumas cadeiras e tamboretes rasos ofereciam assentos aos poucos admitidos nesse lugar de honra.
No momento em que se aproximavam D. Lourença Cavalcanti e André de Figueiredo com os de sua casa, achava-se recostado na camilha, com o corpo derreado sobre a almofada de couro, um velho de sessenta anos, alto, magro, de feições descarnadas, olhos vivos e cintilantes, cabelos grisalhos, e tez acobreada que denunciava o sangue americano.
Era o Capitão-Mor João Cavalcanti.
Naquele instante acabava ele de apear-se à porta da casa, donde partira quatro horas antes para acabar a tarefa começada pela manhã de correr os engenhos próximos da cidade: lida com que se entretinha, quando não havia outra cousa em que passar o tempo.
Depois de cinco ou seis léguas a cavalo pelas margens do Capiberibe, pode-se avaliar da boa fadiga e apetite que devia trazer. Assim ia ele acomodando-se na camilha, com as pernas estendidas pela prateleira do bufete, enquanto não lhe punham ali mesmo a ceia.
Nesse intermédio, iam chegando os da obrigação de todas as noites, que logo se encaminhavam para o estrado a saudá-lo e desejar-lhe as boas-noites. Aos parentes mais moços dava ele por antigo costume a mão a beijar; fossem descendentes ou simplesmente colaterais remotos e talvez improvisados, nenhum prescindia de lhe tomar a bênção, e julgariam ter decaído do seu agrado, se lhes ele recusasse aquela mostra de submissão e respeito.
As pessoas mais qualificadas tomavam lugar no sofá, junto ao bufete; e aí durante a primeira parte da noite, praticava-se acerca das novas mais importantes do dia, e preparavam-se os futuros sucessos que deviam perturbar o sossego da capitania.
João Cavalcanti pouca parte tomava nos planos e alvitres; o mais do tempo ouvia, e quando instado para dar seu aviso, sempre eximia-se com a velhice, que já lhe tinha gasto a têmpera. E não era por modéstia, se não por um pressentimento da verdade que o dizia.
De feito, nesse caráter de antes quebrar que torcer relaxara-se a rígida fibra e, quiçá, pela tensão que lhe dera outrora uma vontade impetuosa e o gênio em extremo arrebatado. Chegara a ponto que, fora de seus hábitos inveterados, os quais já tinham adquirido força mecânica e materialidade de instintos, não era mais homem para decidir-se por si, no mais importante negócio da vida.
Não acudisse alguém para incutir-lhe uma resolução, que ele deixaria ao azar o encargo de remover a dificuldade.
É do homem perecer assim aos poucos, à semelhança da árvore, que em se aproximando do termo de sua duração, começam-lhe a tombar as folhas primeiro, após os ramos, e por último fende-se o próprio tronco e esboroa carcomido pelo tempo. Da mesma sorte ao velho, morrem-lhe os cabelos, quando lhe despem a fronte, ou encanecem; despovoa-se a boca, e a obra melhor do Criador não é mais do que uma ruína que de dia em dia se desmorona e desfaz no pó de que se formou.
Conservara o capitão-mor sua integridade física, e aos setenta anos era um velho ainda verde e rijo. A eiva ali penetrara no cerne; fora ao moral, e consumira as poderosas faculdades, que outrora animavam esse organismo, deixando-lhe apenas o exterior.
Com especial demonstração recebeu o capitão-mor a sua sobrinha D. Lourença Cavalcanti; era a pessoa de seus extremos.
Depois que lhe deu a mão a beijar, e a abraçou com muito carinho, sentou-a perto de si na beira da camilha.
— Então, D. Lourença, sempre quereis que se rompa, filha? perguntou a rir e com maneira afetuosa o velho.
— O que eu quero, bem o sabe o senhor tio, que é ver esta nossa terra livre da praga de aventureiros que a infestam, e restituída a seus legítimos senhores.
— Bem falado, D. Lourença! exclamou Leonardo Bezerra.
— Melhor seria para todos que isto se fizesse sem briga, nem contendas. Mas se não pode ser por outra forma, e força é defender e sustentar no campo nossos privilégios e forais, os nobres de Pernambuco devem lembrar-se que descendem dos que restauraram a pátria e à liberdade esta capitania, muitos dos quais ainda aí estão como o senhor tio, e Deus os conserve ao nosso amor por muitos e dilatados anos, para exemplo aos seus e estranhos.
— Lembrem-se também as damas pernambucanas do que devem à terra onde floresceram uma D. Clara Camarão, e uma D. Maria de Sousa, acudiu em tom espevitado D. Severa.
— Ai, que esta ainda é mais guerreira que a D. Lourença, pois não se contenta só com instigar, mas quer ela mesma sair a campo, e batalhar! Assim D. Severa! exclamou o velho capitão-mor galhofando.
— Por mim já teria lançado um cartel a D. Sebastião de Castro; e em vez de estar aqui todas as noites a levantar planos, que é um não acabar, e nunca vão por diante, eu houvera chamado o governador em repto de honra a pé, a cavalo, na estacada, ou em campo aberto...
— Olá de dentro!... gritou D. João; tragam-me já daí sem detença a armadura de meu avô, para esta cavaleira andante. Quanto a nós, senhores. vamos ver se nos dão uma roca ou uns bilros, e nos arrumamos no estrado a dobar o algodão e a fazer rendas. Porque, as cousas da República, cá a D. Lourença as destrinça melhor que um letrado; e no que toca a assunto de guerra, lá a D. Severa com três botes de lança põe tudo em debandada.
Já a esse tempo estavam os assentos próximos ao sofá ocupados pelas pessoas do costume.
Das principais eram, além das já nomeadas, o Coronel Domingos Bezerra Monteiro, o Sargento-Mor Leonardo Bezerra Cavalcanti com os dois filhos, Cosme e Manuel, alferes ambos, o Sargento-Mor Cristóvão de Holanda, o Capitão-Mor Matias Coelho Barbosa e o licenciado José Tavares de Holanda, os quais todos aplaudiram com risadas a saída do velho Cavalcanti e mofaram dos recachos marciais de D. Severa.
Apareceram na sala os pajens, mas não acudindo ao chamado, senão a porem a mesa para a ceia, que estava a pingar a hora canônica.
Estendida sobre o charão uma colcha de damasco de seda franjada, pois o capitão-mor não admitia, como já era uso, comer sobre roupas de linho ou algodão, cobriu-se a mesa da fina louça de porcelana, com ramagens verdes e tarjas douradas. O serviço era todo ele de prata lavrada, com o brasão da casa.
Foi lauta a ceia. Vários assados de vitela, peixe e aves, peças de caça do monte e volateria, carvonadas de carneiro e galinhas, chacinas de porco e uma grande torta de mariscos, formavam a parte suculenta da refeição: o que bem se podia chamar a armação do edifício culinário.
Havia demais, para debicar-se nos intervalos e preparar o estômago para novo assalto, morcelas de Arouca, enchovas, pastelinhos de cabidela, o picante caril, azeitonas, alcaparras, e outras gulosinas naquele tempo inventadas pela arte cibária para regalo dos glutões.
Entre essas iguarias da cozinha portuguesa apareciam os novos quitutes brasileiros, primícias da nacionalidade que já despontava nesse tão importante mister da vida, como em tudo o mais. Viam-se ali os covilhetes de paçoca e inhames, as muquecas enfolhadas, os bolos de cará, acepipes ensinados pelos índios, sem falar das corbelhas de filigrana de prata cheias das mais saborosas frutas do país, ananases, pinhas, mangas e bananas.
Também a par dos bons vinhos das Canárias e do Reino, figurava o mosto do jenipapo e a garapa; assim como não se desmerecia entre os pães de várias formas e receitas quais o mimoso, o sovado e o comum, a nossa farinha d'água, e as alvas tapiocas, em lindas cestas de palha matizada, trabalho dos caboclos.
Acabavam os pajens de pôr a ceia e preparavam-se para servir aos convivas, quando notou-se do lado da entrada certo alvoroço, ainda que mui ligeiro, entre as pessoas ali agrupadas.
Dera causa a essa animação a chegada de um cavaleiro, que reproduzia-se em mesuras a um e outro lado, para logo após desfazer-se em mil abanicos e finezas acompanhadas de partes mágicas. A cada um saudou com apuros de cortesia e umas inflexões de talhe, por modo requebradas, que tinha jeito de se estar enroscando pela gente.
— Ai. chega o Filipe Uchoa! disse o capitão-mor que lobrigara o cavaleiro através de suas floretas. Ainda bem! Cuidei que o não teríamos hoje à ceia!
— Não lhe falta que fazer, acudiu o Sargento-Mor Bezerra; mas de tudo se desempenha a tempo e pelo melhor. Não sei de outro de mais conselho, nem capaz de tanto e em tão poucos anos.
Expandiu-se o Capitão-Mor João Cavalcanti com o elogio feito ao sobrinho.
— Chegais a ponto para a primeira investida, Uchoa, como bom cavaleiro que sois.
— Aprendi em boa escola, como não quero que a haja melhor, em toda a cristandade, respondeu o Uchoa, afagando a vaidade do velho.