Guerra dos Mascates/II/I

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Era por noite calada.

A episcopal cidade de Olinda, envolta nas trevas, jazia em profundo silêncio. Desde muito que se tinham apagado os fogos, e apenas de longe em longe, pela praia, tremulava a chama do molho de palhas que servia de farol aos pescadores.

A não ser o rolo das ondas, desdobrando-se ao longo do istmo, o sussurro do coqueiral rugido pela viração da noite, ou o regougo da coruja à caça dos morcegos, nenhum outro rumor quebrava a mudez da metrópole pernambucana.

Todavia, pela volta das nove horas, no alto da subida do Varadouro soaram passos, os quais se diriam de cavaleiro, pelo tinido das esporas batidas nas pedras soltas que lastravam o chão.

Quem era desceu rua abaixo, com o andar rápido, mas parando a trechos, tanto para verificar se porventura o espreitavam como para orientar-se no meio da escuridão.

Chegado ao princípio do muro de taipa, que fechava o quintal da casa de André de Figueiredo, o desconhecido redobrou de precaução até alcançar um ponto em que a copa frondosa do arvoredo, reclinando para a rua, tornava a escuridão ainda mais densa.

Aí, julgando-se ao abrigo do mais penetrante olhar, já apoiava a mão sobre o lombo do muro para formar o salto, quando ouviu um roçar de folhas na cerca fronteira.

Fitando pronto a vista, pareceu-lhe percebido entre a ramagem vulto humano, e sem a menor hesitação, atirando a longa capa em que se envolvia para os ombros, sacou a espada da bainha e pôs-se em guarda.

— Enfim! murmurara então resfolgando à larga.

Como, passado algum tempo, nada aparecesse de suspeito, pensou o desconhecido que ou se enganara na sua desconfiança, ou o vulto não tinha negócio com ele, a quem talvez nem houvesse pressentido; tornando ao primeiro intento galgou com agilidade o muro, e sem dificuldade achou-se do outro lado, dentro do quintal.

Com o perigo cresciam agora as precauções do cavalheiro receoso de dar rebate à gente da casa. Esgueirando-se por entre o arvoredo até o terreiro donde avistava as janelas do oitão e a porta da serventia do quintal, ali ficou oculto pelas folhas e à espreita de alguma cousa de sua muita devoção, pois assim o trazia a afrontar perigos.

Ao cabo de algum tempo dessa espreita, percebeu o desconhecido que a aba de uma janela do sobrado se entreabria e o busto de uma pessoa reclinava-se ao balcão, recolhendo logo após uma rápida pesquisa dos arredores.

Apesar do sobressalto que teve, o cavalheiro não desmentiu sua consumada prudência. Conservou-se imóvel e oculto entre a folhagem, redobrando de vigilância. Somente depois que a oscilação da janela repetiu-se por três vezes, e que na impaciência como na sutileza do movimento ele pressentiu um gesto feminino, foi que o desconhecido resolveu-se a sair da sombra, destacando o vulto no descoberto do terreiro.

Ouviu-se então o soçobro de uma respiração cortada de repente, e que mais parecia o soluço intermitente da aura nas folhas da bananeira. Cerrou-se a janela, mas um objeto caíra aos pés do cavaleiro.

Era um fino lenço de batista, perfumado e ainda tépido das mãos que o apertavam pouco antes; trazia atada a uma das pontas grossa chave de ferro, a qual o desconhecido sem mais demora buscou introduzir na porta fronteira.

Não se logrou da diligência, que a chave não servia e, afastando-se, aguardou que a janela se entreabrisse para obter a explicação de que precisava. Nova esperança frustrada, pois o vulto havia se recolhido de uma vez.

Começava o desconhecido a impacientar-se, quando lhe acudiu a lembrança. que tinha a casa mais de uma porta.

— Em alguma há de servir.

Cosendo-se à parede, foi experimentando a chave em quanta porta encontrava, até que afinal acertou. Ao ranger dos gonzos que obedeciam ao impulso,. escapou-se pela fresta um trêmulo psiu recomendando silêncio.

Adiantando o desconhecido a mão para sondar as trevas do aposento em que entrava, encontrou outra mão, porém pequena, suave, mimosa, que escapou-se arrufada e palpitante como uma rola apanhada no ninho.

— Não tendes que recear-vos de mim, senhora, pois ainda que vosso esposo pela bênção do Senhor e por vossa própria escolha, um irmão não respeitaria com maior desvelo vosso recato.

Nenhuma voz respondeu a estas palavras do cavaleiro, mas ouviu-se distintamente um profundo suspiro que parecia vir do mais recôndito d'alma.

Esta cena passava-se na noite do dia seguinte àquele em que principiou. nossa crônica e para o qual D. Leonor tinha de véspera emprazado Vital Rebelo por um bilhete escrito com o sangue de suas veias.

Dissipada a exaltação de ânimo que a impelira àquela afoiteza, a mísera. moça caindo em si, ficou espavorida com a imprudência que havia cometido.

Como poderia ela, tão guardada de sua pessoa, iludir a vigilância que a cercava, e a defesa das casas de André de Figueiredo, que mais pareciam presídio do que moradia?

Vital acudiria ao emprazamento; não a encontrando, se arrojaria para vê-la a alguma temeridade que o traísse. E ela, esposa a quem traziam viúva do querido de sua alma; ela, que todos os dias rogava a Deus a restituísse aos braços de que a tinham arrancado; ela, encerrada nas paredes de sua recâmera, ouviria talvez o grito de angústia de Vital, sucumbindo aos golpes de inimigos que, por maior infelicidade sua, ela era obrigada a acatar.

Então rezava para que o marido não viesse à entrevista; mas quando enchia-se dessa esperança e achava-se mais animada, a vinha desconsolar a idéia de que essa fria indiferença de Vital seria a prova do pouco afeto que lhe votava: e logo repelia um lenitivo que, se acalentava-lhe os sustos, excruciava-lhe o coração.

Assim nesta cruel absorção passou ela parte do dia, cogitando mil alvitres que a tirassem de tão apertado transe, mas sem ânimo de tomar uma deliberação. Por tarde seus espíritos extenuados caíram em profundo abatimento, e nessa atonia esperou com gélida impassibilidade a catástrofe que via iminente.

Estava a família como de costume reunida na sala principal, quando entrou André de Figueiredo, que dirigiu-se à irmã.

— D. Lourença, mande-me dar as chaves do trem.

Ergueu-se a dama e foi ela mesma tirar de uma arca, na próxima câmera, duas chaves atadas em uma correia, que entregou ao capitão.

— Em tempos como estes, bom é precatar-se cada um para o que pode acontecer. Ninguém sabe o que nos trará o dia de amanhã.

Estas palavras, que André de Figueiredo proferiu à saída, traspassaram o coração de Leonor. Apoderou-se dela um pavor inexplicável.

Havia ao rés-do-chão e para os fundos da casa um vasto armazém onde se guardavam trastes fora do uso, ferramentas, utensílios, mas principalmente armas e petrechos de que todo morador principal daqueles tempos tinha cuidado de prover-se, para acudir, sendo preciso, à defesa da cidade e da própria habitação.

Foi a esse repartimento, chamado casa do trem, que se dirigiu o capitão; ali demorou-se até o escurecer.

Recolhendo-se à sua recâmera, o viu Leonor que voltava. Vinha ele preocupado e distraído a tal ponto que, parecendo não reparar na presença de alguém, guardou as chaves em uma gaveta da mesa de jantar e desceu para a rua.

Sobressaltou-se Leonor e fugiu espavorida com a idéia que a assaltara. Todo o serão correu para ela entre os assaltos da luta obstinada que haviam travado em sua alma a paixão do marido e o terror da família.

Vencera afinal o amor, que depois de mil hesitações a trouxera ao encontre do esposo, por quem se estava ali morrendo de pejo e de afeto.

— Não vim aqui, senhora, em requesta de vossas finezas, como cavalheiro namorado que implora favores à sua dama. Ficai portanto descansada, que não terei palavra, nem ação, capaz de magoar vosso melindre. Se ainda uma vez busquei falar-vos, depois de tantas em que me recusastes esta mercê, foi para decidir afinal de nosso destino, e romper dum golpe, ou a fatalidade que vos arrebata a meu afeto, ou o laço que ainda prende nossas almas. No ponto a que nos trouxe a sorte adversa, ou sois tudo para mim, ou nada sereis; se não vos fala agora, neste momento, o esposo a quem jurastes pertencer e a vos deveis de corpo e alma pela vida e pela eternidade, dizei-o, senhora, dizei-o pronto, que não serei mais do que um estranho que já não vos conhece e fugirá à vossa presença, como um fantasma que volta à catacumba.

Proferidas estas palavras, Vital aguardou um instante a resposta; mas o silêncio que reinava naquela escuridão apenas foi cortado por soluços, cujo tépido bafejo aqueceu a face do cavalheiro.

Este abriu os braços e conchegou ao seio o corpo vacilante da esposa, que se rendia ao seu amor.

— Leonor! murmurou Vital. Ainda me queres? Pensei que já se tinha de todo apagado em teu coração aquela ternura que te mereci, e que tenho pago com tantas desesperanças?

— Mais que as desesperanças doem as injustiças, Senhor Vital, respondeu Leonor tragando o pranto. Que fiz eu para me acusarem de ingrata?

— Ninguém vos acusou; apenas queixei-me eu algumas vezes e a mim mesmo.

— Mas de quê?

— Ainda o perguntais, D. Leonor? Depois deste ano, passado longe um do outro na viuvez de nossas almas, deste ano que devia ser a primavera florida de nosso amor, e que um mau fado transformou em torva borrasca?

— Que podia eu contra a sorte?

— Tudo. Não tínheis um esposo cujo dever era proteger-vos, e cuja maior ventura seria obedecer-vos?

— E minha mãe? replicou Leonor com desalento.

Vital calou-se.

— Bem sabeis que a maldição cairia sobre mim, se eu me revoltasse contra a tirania que nos separou; e por nenhum preço eu, que vos prezo e respeito acima de todos os homens, Senhor Vital Rebelo, vos daria uma esposa maldita e um afeto mal-agourado. Agora mesmo, quem sabe que perigos nos ameaçam e que desgraças não custará esta minha imprudência?

— Não pode ser maldita a esposa que o ministro do Senhor uniu em face do altar pelo próprio voto e com o consentimento dos seus; nem será mal-agourado este afeto porque desarrazoada obstinação de parentes se opõe à sua felicidade.

— Consentimento dos seus, dizeis; mas eles afirmam que esse consentimento o deram iludidos, e logo o retiraram, antes que deixasse eu a casa paterna para pertencer-vos, pelo que...

— Prossegui, D. Leonor! acudiu Vital, percebendo a hesitação da moça.

— Não vos queria afligir; porém melhor é saberdes logo, pois não tenho esperança de falar-vos outra vez.

— Assim é este o momento de nossa eterna despedida, senhora? tornou Rebelo com um termo grave e triste.

— Ah! se soubésseis!...

— Sei tudo.

— Sabeis que mandaram a Roma para dissolver o nosso desposório e que esperam receber o breve pela primeira embarcação do reino?

— Sabia-o, sim, D. Leonor, respondeu o cavalheiro com a mesma grave placidez. O que não sabia, e preciso ouvir de vossa boca, é se destes a isso vosso consentimento.

— Eu?... balbuciou a dama.

— Falai sem receio. De mim não tendes que temer maldições, nem ameaças. Vosso querer é a minha lei; eu, que zombo das fanfarronadas de vossos parentes e da bula que mandaram comprar a Roma, obedecerei submisso a uma palavra proferida por vós, contanto que essa palavra seja a voz d'alma; porque, se me eu curvo ante vosso desejo, não terei, ficai certa, a mesma docilidade com as vontades alheias que abusam de sua posição para insinuarem-se em vosso ânimo tímido e ingênuo. Pois que é esta a última vez que nos vemos, abri-me vosso coração. Tivestes parte nesse trama da dissolução de nosso casamento?

— Eu assinei um papel, que me apresentaram, mas não o li.

— E não vos disseram o que ele continha, nem o suspeitastes vós?

— Minha mãe tinha-me prevenido.

— Portanto não ignoráveis de que se tratava, nem que influência devia ter em vossa existência aquela assinatura. Quando escrevestes ali vosso nome, renegastes o esposo que havíeis escolhido.

— Obedeci à minha mãe! soluçou Leonor com a voz dilacerada.

— Vossa mãe andou bem-avisada em vo-lo ordenar, D. Leonor.

— Também vós a aprovais?

— Se não me tendes o menor afeto, por que seríeis minha mulher, e ficaríeis com a vossa existência encadeada a um estranho, quando a podeis partilhar com quem melhor vos mereça?

— Não me estejais apunhalando com estas palavras de desprezo; melhor é acabar-me de uma vez, e a esta triste sina. Não posso pertencer-vos como esposa, que minha mãe se interpõe entre nós; mas pertenço-vos como quem se vos deu e não quer e não pode ser jamais de outro; aqui me tendes; ponde um termo a este resto de existência que ainda me sobra de tamanho sofrer.

Vital permaneceu calmo, apesar de abalado profundamente no íntimo:

— Dizeis que vos destes a mim, senhora; e eu vejo que não vos podeis dar a ninguém, pois para isso era preciso que vos pertencêsseis; o que não acontece. Nada mais sois do que o corpo que anima a alma de vossa mãe, ou antes a alma que lhe empresta vosso tio, André de Figueiredo, que ela não a tem e menos de mãe.

— Senhor Vital! disse Leonor ressentida.

— Não quereis e não podeis ser jamais de outro...

— Eu vos juro!

— Também me jurastes a mim a fé de esposa e bastou o sopro de vossa mãe para apagar esse juramento. Ordene-vos ela amanhã que ameis a outro...

— Nunca!

— Haveis de obedecer-lhe, D. Leonor, disse Vital com amarga ironia, senão ela pode amaldiçoar-vos!.

— Não estou eu suplicando-vos que me mateis! exclamou a moça em um grito de desespero atirando-se de joelhos aos pés do cavalheiro.

Ergueu-a Vital Rebelo nos braços, e pousou-lhe um beijo casto na fronte:

— Não, alma de minha vida, não morrerás; que eu te salvarei contra todos e contra ti mesma, que és o meu bem supremo; mas tens sido o meu e teu algoz. Eu te salvarei; e se Deus me negar essa dita, restar-nos-á então, Leonor minha, a de morrermos juntos.

Um regougo de riso sarcástico reboou no meio da escuridão, acompanhado por uma voz zombeteira.

— Há de morrer, esteja descansado, mas sem companhia.

Leonor desmaiara nos braços de Vital Rebelo.