Guerra dos Mascates/II/II

Wikisource, a biblioteca livre

Por tal forma se travam os negócios da governança com os amores de Vital Rebelo, que para melhor compreensão desta nossa crônica, vamos dar uma resenha do estado das cousas na Capitania de Pernambuco pelo correr do ano de 1710.

Já pela rama se falou da rivalidade que existia entre a cidade de Olinda e a recente povoação do Recife, por causa do incremento que esse bairro comercial importante ainda no domínio dos holandeses, fora tomando com o volver dos tempos.

Desde a época da restauração que os mercadores, atraídos pela vantagem de um ancoradouro cômodo e seguro, se estabeleceram de preferência nessa povoação e ocuparam os armazéns e tercenas construídos pelos flamengos.

Os senhores de engenho que eram os principais da capitania e aqueles que formavam a nobreza pernambucana, foram obrigados a suprirem-se do necessário para o custeio de suas fábricas nas lojas e tendilhões do Recife.

Dava-se então o que ainda hoje acontece com pequena diferença. Onerado o agricultor com uma dívida avultada, que não podia pagar, tinha de sujeitar-se à usura do credor ou de entregar-lhe a safra a preço e condições lesivas. Assim a arroba de açúcar, o mercador a pagava no Recife por 400 rs. para vendê-la no reino por l$400.

Mais de século e meio é decorrido, e ainda o tacanho espírito que sob várias encarnações tem governado este país, não descobriu um meio de proteger a lavoura contra o monopólio mercantil; antes parece que de todo a desamparou entregando-a à sanguessuga do Banco do Brasil que lhe exaure a seiva em proveito de certa oligarquia financeira.

Uma circunstância muito concorria para agravar a posição da nobreza pernambucana. Não permitindo as idéias do tempo que os fidalgos se dessem à mercancia por ser esse um ofício plebeu, resultava daí que os seus fornecedores eram gente inferior e animada do ciúme que em todos os tempos, mas principalmente naquela época, dividia as classes.

O que porém mais fomentou a rivalidade entre os povos de Recife e Olinda foi o espírito de bairrismo.

Os moradores da capitania descendiam na máxima parte de portugueses, ainda que já entrava aí grande mescla de sangue flamengo e outro de Europa, sem falar do indígena e africano. Tinham, porém, nascido ali, na terra americana, e consideravam-se herdeiros dessa pátria que seus maiores haviam reivindicado do holandês pelo heroísmo e intrepidez de suas armas.

Por isso chamavam-se eles pernambucanos, e àqueles que vinham do reino se estabelecer na colônia davam o nome de forasteiros, negando-lhes o foro de vizinhos e portanto o direito de tomar parte no governo da terra.

Com poucas exceções, eram os mercadores do Recife desses portugueses europeus, que deixavam a sua aldeia para tentarem a fortuna no novo mundo.

Já naqueles tempos, como nos de hoje, tinha a colônia portuguesa duas virtudes, a que deve a sua prosperidade, e são: a perseverança e a união, dotes de raça, que todavia por uma ignota razão desmerecem no solo brasileiro e não se transmitem à prole aqui nascida.

Chegava um desses garotos sem outro fato mais do que a trouxa amarrada em lenço de Lamego; com a camisa de bertangil, preto de sujo, e calções de lona besuntada de alcatrão. A força de trabalho conseguiam uma dúzia de patacas, com que se proviam de algumas réstias de alho e cebola, além de outras drogas, e saíam a mercar pelas ruas do povoado e engenhos do interior. Nesse giro mesquinho ajudavam-nos os patrícios, fiando-lhes fazendas e drogas para estenderem o seu tráfego, e assim arvorados em mascates aqueles labregos, que no reino nem para moços de servir prestavam, de repente se viam senhores de grosso cabedal.

Deste modo, com pouca discordância de termos, se exprime um malévolo cronista pernambucano no intuito de rebaixar os mercadores do Recife, quando ao invés lhes tece o maior encômio, pondo em relevo o caráter laborioso e paciente desses homens, filhos de seus trabalhos e obreiros da própria fortuna.

De dia em dia, pois, ia crescendo o ciúme entre os dois povoados, na medida em que o plebeu Recife medrava com o impulso de seu comércio florescente, e a aristocrática Olinda decaía pelo desbarato dos ricos patrimônios outrora acumulados pelas famílias pernambucanas.

O primeiro choque dessa luta de supremacia política datava do ano de 1685. Desde sua fundação padecera Olinda da falta de boa água potável, reduzida a péssimas e raras cacimbas, pois o Beberibe, que lhe banha as fraldas e podia prove-la em abundância, era então alagado até muito acima pela enchente da maré.

Desvelados os moradores em remediar esse achaque, avisaram meios de trazer água de longe. Primeiro abriram um valado de légua para encanar uma levada do Paratibe; mas não surtiu bom efeito, porque era o terreno de muitas areias que frustravam o trabalho, sumindo a água.

Outra vez intentaram obra semelhante no Beberibe, tomando-lhe a veia acima da maré e não tiveram melhor resultado, porque as enlameavam os gados soltos na várzea. Quando estavam empenhados em aperfeiçoar a obra, substituindo a lavada por um aqueduto de pedra e cal; sucedeu a invasão holandesa.

Depois da restauração, e logo que se restabeleceram os moradores dos maiores estragos de suas fazendas, curou a Câmara de Olinda de prover aquela necessidade de boa água, mas por um novo arbítrio que o engenho, ensinado das muitas lições da experiência, veio a sugerir.

Em 1685 com boa diligência se levou a efeito o plano que consistia em tapar o rio Beberibe com um reparo de pedra no ponto onde ele costumava secar na baixa da maré, e por isso chamado Varadouro.

Com esse dique, em forma de ponte ou passadiço, impedia-se a água salgada de subir além, enquanto que a represa do Beberibe formou um vistoso lago que despejava as sobras por dezoito canos, fartando a cidade de água doce, como da grande cópia de peixe que ali se criava.

Desta obra se aproveitaram também os do Recife, que mandavam em canoas encher as vasilhas nas bicas do Varadouro, especialmente para as aguadas dos navios; pois suas cacimbas, como as de Santo Antônio, eram salobras e cheias de limo.

Não obstante foi a ponte, na frase do cronista, uma figa para os mascates, os quais não podendo sofrer que Olinda se lograsse de tal vantagem sobre o Recife, buscaram traça para a desforra, que em má hora lhes trouxe a fortuna adversa.

Aconteceu, seis meses depois, que abrindo-se uns barris chegados de São Tomé dias antes, estivesse a carne que traziam corrompida a ponto de matar logo ali de pronto com o ramo da peste o tanoeiro e mais quatro que o ajudavam, desenvolvendo-se em seguida uma devastadora epidemia.

Entrou o povo do Recife a clamar que todo o mal proviera da tapagem do Beberibe, pois estagnadas as águas onde cresciam tantas ervas, era de prever que se envenenassem aquelas com a podridão destas, infeccionando os ares de toda aquela redondeza.

Sem mais demora levaram os mercadores sua queixa a El-Rei, que mandou ouvir sobre o caso os médicos de sua real câmara. Parece que naquele tempo a higiene pública estava tão adiantada em Lisboa como no Rio de Janeiro, c que os físicos-mores do Senhor D. Pedro II de lá não tinham que invejar aos do Senhor D. Pedro II de cá.

Reuniu-se em junta a mestrança e conveio que efetivamente a peste provinha da represa do rio. Houve quem notasse a coincidência de terem aparecido os primeiros casos da moléstia na ocasião de abrirem-se os barris de carne, assim como a circunstância de não se haver manifestado a epidemia em Olinda, que tinha o Varadouro à beira.

Não toscanejaram os preclaros rabichos, e decidiram verbis magistri que era urgente romper-se o dique e deixar que o rio despejasse livremente como dantes a correnteza de suas águas, com o que cessaria o contágio. E assim o mandou El-Rei em carta à Câmara.

Imagine-se como receberiam os moradores de Olinda essa ordem estulta, que vinha destruir o fruto de tamanhos esforços e economias; e quanto podiam o respeito e obediência à régia autoridade, pois sopitaram a revolta dos brios e dos direitos oprimidos desses povos leais.

Ficou, porém, no coração pernambucano um entranhado ressentimento, e crescendo todos os dias o desprezo com que os nobres tratavam a gente do Recife, passaram a designá-la pelo epíteto de mascates.

Esse termo, derivado do nome de um reino da Índia cujos naturais eram dados ao comércio, significava em princípio entre os portugueses de Goa o mesmo que mercador ambulante que percorria várias terras à maneira do Oriente.

Com o andar dos tempos veio a servir unicamente para exprimir o mister baixo e desprezível de bufarinheiro ou regatão que apregoa pelas ruas. Tão afrontoso era dar-se tal nome a um mercador desse tempo, como seria hoje em dia chamar em estilo clássico de traficante a um homem de negócio.

Retaliaram os do Recife com a alcunha de pés-rapados que puseram aos naturais, não só pela circunstância de andarem eles descalços e à ligeira, com o que se desembaraçavam no manejo das armas e na celeridade da marcha entre o mato fechado, como por alusão à estreiteza de muitos fidalgos caídos em completa penúria.

Soberbos os mercadores com a primeira vitória na questão do Varadouro, puseram a mira em cousa de maior monta, como era o foral de vila para o Recite, o qual uma vez independente de Olinda e com governo próprio, não tardaria em derrotar a velha cidade que lhe estava sugando a seiva.

Razoaram os advogados, pois já naquele tempo os havia políticos e administrativos, como se vê da crônica desta guerra que talvez nunca rompesse, se eles não a tivessem por forma enredado, que não houve mais jeito de a desatar.

Foram procuradores a Lisboa com boas propinas e o preciso para azeitar as molas da máquina régia, seguindo no mesmo navio uma representação em que o governador D. Fernando de Lencastro expunha a El-Rei a conveniência de erigir-se o Recife em vila.

Desta vez, porém, não lograram os mercadores a diligência. Ou porque D. Pedro II de Portugal também adotasse a máxima política - uma no cravo e outra na ferradura; ou porque ainda não se tinha de todo apagado na corte lusitana a memória do heroísmo pernambucano na restauração da capitania, resolveu Sua Majestade pela carta régia de 28 de janeiro de 1700 que de maneira alguma se devia por em prática esse arbítrio de separar o Recife da cidade de Olinda, recomendando que para conservação dela, ai fizessem assistência o governador e ministros como em repetidas ordens havia determinado.

Todavia não esmoreceram os mercadores; desenganados de obter por enquanto a realização do primeiro intento, cuidaram de se insinuar na governança da terra, esperando mais tarde com a popularidade de suas doblas e patacões, apossarem-se dos cargos principais da vereança.

Hoje em dia usa-se traficar à boca do cofre com os títulos e as comendas, naqueles tempos menos adiantados não se faziam as cousas com a simplicidade moderna. Os mercadores que juntavam grosso cabedal compravam os serviços de algum fidalgo rafado de quem se justificavam parentes com testemunhas quejandas às que ora servem para fazer moço fidalgo de quatro costados a qualquer beldroegas. Com essa papelada requeriam para Lisboa um hábito de Cristo em que se enfunavam tanto como os excelentíssimos de agora.

Assim besuntados dessa nobreza postiça, julgavam-se os mais ricos dos mascates idôneos para os cargos de oficiais da Câmara. Mas saíram-lhe os pernambucanos com embargos, pela razão de não serem naturais aos quais somente competia o governo das terras, não podendo nela ingerirem-se forasteiros que vinham de fora buscar fortuna.

Durou este pleito até l703 em que mandou El-Rei admitir aos pelouros todos os habitantes da cidade, sem diferença de naturais e vindiços, uma vez que estivessem nas condições da Ord. do liv. 1º, tit. 67, e Leis de 12 de novembro de 1611 e 6 de maio de 1649.

Triunfantes com a decisão régia, os mercadores empenharam quanto podiam na primeira eleição e conseguiram alguns oficiais e almotacés. A conseqüência não se fez esperar: armado da vara branca, o Sr. Simão Ribas foi taxando por preço excessivo tudo que vendiam os taberneiros, seus patrícios; e as frutas e víveres que traziam os matutos, pô-los a real.

Foi geral o clamor em Olinda. Reunido o Senado, representou sem mais tardança a El-Rei mostrando o perigo de se admitirem na governança os forasteiros.

Por essa ocasião lembraram os pernambucanos a El-Rei que ainda estavam pagando os chapins da Senhora Infanta D. Catarina, e portanto se devia ter alguma contemplação com tão leais vassalos, não os privando dos poucos meios de que tiravam para se quitarem dessa finta, com sacrifício de sua subsistência.

Essa história dos chapins merece um comento. Costumavam os reis de Portugal, quando lhes nascia filho ou casavam filha, lançarem um tributo sobre os povos de certas cidades ou vilas a pretexto de compor-lhes o enxoval.

Casando-se a Infanta D. Catarina em 1661 com Carlos II da Inglaterra coube às possessões do ultramar fornecer à noiva os chapins, o que ainda estavam fazendo os pernambucanos quarenta e dois anos depois.

Dignos filhos daqueles pais somos nós brasileiros que nascemos, uns para trapaceiros e outros para cangueiros. Ainda hoje o nosso bom e paternal governo finta-nos com os impostos da Guerra do Paraguai; e já nos ameaçam com outra guerrinha de que ficou pejada aquela.

Acudiu D. Pedro II a seus vassalos pernambucanos, declarando que não podiam servir cargos da vereança os mercadores, visto ser esse um ofício peão, na conformidade das leis do reino; depois, entrando a governar como regente na moléstia de seu pai a Infanta D. Catarina, Rainha de Grã-Bretanha, a tal senhora dos chapins, aproveitou a ocasião para agradecer a condescendência dos pernambucanos.

Pela provisão de 8 de.maio de 1705 declarou que por mercadores se havia de entender unicamente os que assistissem de loja aberta, vendendo, medindo e pesando ao povo.

Sendo em número limitado os mercadores de grosso cabedal que já se não ocupavam com o meneio de seus negócios, mercando no balcão ou trapiche, ficaram os de Olinda tão superiores ainda, que já não podiam temer-se dos contendores na eleição.

Quanto aos mascates, essa última derrota não fez senão aferrá-los ainda mais à primeira idéia da separação,. na qual desde ai trabalharam sem descanso, dispondo na capitania, como na metrópole, os elementos para o favorável despacho de sua pretensão.

Foi nestas circunstâncias que a 9 de junho de 1707 tomara conta do governo da capitania Sebastião de Castro Caldas.

Como de costume, os nobres de Olinda e os mercadores do Recife porfiaram em obsequiar o novo governador à sua chegada, com a mira de ganhá-lo a seu partido. Durou mais de ano essa cortesia hospitaleira, pelo jeito com que soube o fidalgo trazer ambas as parcialidades embaladas em esperanças.

A saliência do caráter político de D. Sebastião de Castro Caldas era uma suscetibilidade de proeminência. Elevado ao alto posto de capitão-general de Pernambuco, sob uma aparência de filosofia e abnegação, ele não tolerava em torno de sua pessoa vultos que pudessem disputar-lhe uma parcela mínima do respeito e até mesmo do embaimento público.

Qualquer superioridade fazia-lhe sombra, e sua preocupação incessante era abatê-la, não derrocando-a, pois era avesso ao estrondo e a violência, mas aluindo-a aos poucos. Essa obra subterrânea, seu espírito a prosseguia com uma tenacidade fria e inflexível, apesar da indecisão e maleabilidade de que pareciam envoltos os seus atos.

Se algum homem granjeava por seu merecimento a estima geral, cuidava logo D. Sebastião de o chamar a si, não só para que aos olhos da gente essa elevação parecesse mero efeito de uma liberalidade que ele podia retirar quando lhe aprouvesse, como para respirar o puro incenso das almas superiores. Além de que assim ficavam-lhe essas papoilas a jeito de ceifar.

Desde os primeiros tempos que através das mostras de respeito e termos corteses sentiu o governador a têmpera do caráter altivo e independente dos pernambucanos, os quais prezando-se de súditos leais, tinham o nobre e legítimo orgulho de haverem pelo esforço de seu braço restituído à coroa portuguesa esse importante estado ultramarino.

Brios e escrúpulos eram asperezas que arranhavam a cútis moral de Sebastião de Castro. Ele não se acomodava senão com as almas flácidas e dúcteis, que tomam todas as feições e prestam-se à guisa de pelica para uma luva como para um chinelo. Destas gostava de apossar-se, a ponto de torná-las aderências da sua.

De tal quilate, não faltavam exemplares entre os mascates, pois o balcão era o berço onde se criavam, como o dinheiro o leite de que se amamentavam. Por isso, continuando a favonear a nobreza, o novo governador prelibava o suave prazer de fazer do Recife um espinho para cravá-lo no orgulho de Olinda.

Em segredo representou a El-Rei mostrando a urgência da separação do Recife; e tão avisadas foram suas razões que, finalmente, por carta régia de 19 de novembro de 1709 foi criada a vila.

Digamos em abono da verdade que foi essa uma medida de toda justiça. O Recife, a primeira praça de guerra do Estado do Brasil, como se pode ver do inventário feito em 1654, ao tempo da sua evacuação e entrega pelos holandeses; o ponto comercial mais importante ao norte do Cabo de Santo Agostinho, com uma população de cerca de oito mil almas, e as melhorias que lhe tinham ficado do domínio flamengo quando era corte do Conde de Nassau; o Recife não devia com a restauração ter perdido o seu título de cidade.

Mas apesar de todas estas razões políticas, Sebastião de Castro descobriria alguma conveniência para adiar a criação da vila, se não estivesse nisso empenhado o seu amor-próprio.