Guerra dos Mascates/II/IV

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Foi um dia de Corpo de Deus que Vital Rebelo viu a primeira vez D. Leonor, e ali ficou preso de seus encantos.

A gentil donzela, debruçada ao balcão da janela, acompanhava com os olhos a procissão que passava nesse momento; e o mancebo parado defronte enlevou-se na contemplação de seu formoso semblante.

Quis o acaso que um laço de fita se desprendesse do toucado da donzela e caísse na rua alcatifada de lambéis. Correu pressuroso o namorado mancebo a apanhá-la, e beijando-o cortesmente com os olhos na dama, pregou-o ao peito do gibão como uma divisa.

Acompanhara Leonor com a vista ao seu tope azul até o momento de o levar aos lábios o cavalheiro; então uma onda de rubor lhe subiu ao rosto. Foi quando tornou a si desse desmaio que reparou a furto no galante cavalheiro, e não se pôde esquivar de achá-lo gentil e airoso.

Mas, agastada pela vergonha que lhe causava, não repôs nele os lindos olhos negros, ainda que não deixou de volver-lhe uma e muitas vezes a vista de relance.

Nessa hora decidiu-se o destino de Vital Rebelo.

Outras donzelas tinham o Recife e Olinda, e das mais formosas, que suspiravam entre as persianas do balcão vendo passar no seu garboso ginete o prendado mancebo, e cuja mão de esposa bastaria um desejo seu para obtê-la.

Mas havia ele de prender-se àqueles negros olhos, que, se lhe prometiam meigos rendimentos, deviam custar-lhe tantas ânsias e aflições, como lhe estavam reservadas na triste sina de amante, que depois de esposo, tornou ao que era, porém desventurado.

Desde aquela tarde de Corpo de Deus avistou-se Vital muitas vezes com Leonor, ou no bakão da casa, ou na Sé em hora de missa, ou na rua por entre as cortinas do palanquim; e parecia-lhe que de cada vez se apagava aquela esquivança, como que de princípio fugiam os olhos da donzela de encontrarem-se com os seus.

Uma tarde em que ficou a donzela só por um instante no balcão, Vital, que andava espreitando essa ocasião, chegou a todo o galope do ginete, o qual ao manejo do destro cavalheiro empinou-se quase direito apoiando as patas na parede.

Baixos como eram naquele tempo os andares, pode o ágil mancebo erguer-se na sela a jeito de oferecer a Leonor um cravo encarnado menos formoso todavia que os dois abertos àquele instante nas aveludadas faces da donzela.

Não se animava a tímida moça a tomar a flor da mão do cavalheiro, e foi preciso que este lha deixasse na manga do vestido que abria-se em volta do mimoso braço, como a folha a cingir o cálice do lírio.

Nesse momento assomou à janela André de Figueiredo, que suspeitoso observara de dentro a ousadia do cavalheiro e a indulgência da dama. Lançando mão à flor arremessou-a contra o rosto de Vital, enquanto com o braço esquerdo arredava a sobrinha da janela, falando-lhe de um modo áspero:

— Recolha-se, Leonor!

Entretanto Rebelo que apanhara a flor no ar, trouxe outra vez o brioso ginete contra a parede.

Então com admirável agilidade alcançou o parapeito do balcão e saltou na janela, ao lado de Figueiredo.

Quando este apercebeu-se do lance, estava sujigado à portada pela mão robusta de Rebelo, que desembainhando a adaga disse para Leonor:

— Tomai-me este cravo, senhora, e prendei-o ao peito de vosso justilho, por que se o deixais cair, à fé de Deus e da muita adoração que me mereceis, juro-vos que o plantarei no coração deste cavalheiro com a ponta de meu punhal.

Leonor espavorida obedeceu maquinalmente, e Rebelo, deixando o capitão ainda sufocado da gargantilha viva que lhe cerrara o pescoço, saltou na sela e afastou-se a galope.

Tão rápida correu esta façanha, que já o alferes desaparecera no fim da rua quando André de Figueiredo se debruçava na sacada furioso, com os dentes a ranger e os lábios trêmulos de ira.

Estava temeroso assim o capitão, que já de si era, ainda mesmo em sossego, de aspecto duro e carrancudo. Dobrando a meio sobre o parapeito a alta estatura, devorava com o fero olhar o espaço em busca de Vital.

Era Leonor filha única de D. Antônia de Figueiredo, a qual depois da morte de seu marido Luís Barbalho de Vasconcelos, viera habitar nas casas do irmão André de Figueiredo, onde também morava sua irmã viúva, D. Lourença de Holanda.

Foi essa família um ramo dos Holandas, a cujo tronco se prendia por Agostinho de Holanda Vasconcelos, terceiro filho varão de Arnault de Holanda, que fundou em Pernambuco essa linhagem, casando-se com D. Brites Mendes de Vasconcelos.

Pelo casamento de Cristóvão de Holanda, primeiro filho varão de Arnault de Holanda com D. Catarina de Albuquerque, filha de Filipe Cavalcanti, fidalgo florentino, começou a aliança das três casas dos Holandas, Cavalcantis e Albuquerques, a qual daí em diante se foi ainda mais estreitando com o volver dos tempos por novas uniões.

Com a morte do pai de Leonor, tomara-lhe a autoridade o Capitão André de Figueiredo, como cabeça da família; pois além de três irmãs, ainda tinha de dois irmãos mais moços, o Tenente Antônio Tavares de Holanda e o bacharel José Tavares de Holanda, que já encontramos à ceia do capitão-mor.

Deixou o finado Luís Barbalho em pobreza mulher e filha, tendo-lhe devorado o jogo tudo quanto pôde apurar de seu patrimônio e da fazenda que levara-lhe a esposa, pois para acudir às perdas e dívidas de honra, fez barato das suas propriedades.

O capitão-mor que porventura poderia, com a autoridade dos anos e da chefia, pôr cobro a esse desmando, abstinha-se, apesar dos rogos da sobrinha D. Antônia de Figueiredo, mãe de Leonor.

Foi sempre o jogo uma das fidalguias dos Cavalcantis; por isso o velho pecador, que não era homem de pregar como Frei Tomás, desconversava o caso.

Sucedeu que os prédios queimados por Luís Barbalho fossem comprados, uns diretamente e outros em segunda mão, por Manuel Rebelo, pai de Vital e negociante de grande giro, que havendo acumulado cabedal, não perdia ocasião de dar-lhe seguro e vantajoso emprego.

Outro, se ele não se propusesse, haveria os bens e por mais vil preço. Não obstante, aquela coincidência fortuita tornou-se crime aos olhos dos parentes propensos a buscar um bode expiatório para as culpas de seu conjunto.

Ainda Vital não era conhecido de Leonor, que já esta aprendera da mãe a abominá-lo, como o herdeiro, no nome e no rancor, do usurário que arruinara seu pai, reduzindo à extrema pobreza sua casa. Mas estas sementes de malquerença em coração de menina são arriscadas, porque em vez dos abrolhos, acontece as mais das vezes brotarem rosas.

Já se vê que André de Figueiredo não podia ver de boa sombra que sua sobrinha fosse requestada por um Rebelo, que além de pífio mercador, indigno de levantar os olhos para uma descendente dos Holandas e dos Cavalcantis, era figadal inimigo da família.

Não disfarçara Rebelo os obstáculos com que tinha de afrontar-se o seu afeto; e todavia não se abateu o ânimo esforçado.

Sua condição de homem sem nascimento, ele a aceitara como uma injustiça da sociedade; e desde muito moço foi seu timbre destruir essa barreira que os prejuízos antepunham às nobres e legítimas aspirações de sua alma.

Podia como outros comprar um hábito de Cristo ou algum ofício dos que traziam nobreza. Mas sua fidalguia, não a queria ele mercada e somente conquistada por seus feitos. Assim foi que adquiriu todas as prendas e gentilezas de cavalheiro, e com tal realce, que não havia nobre em Pernambuco senão em todo o reino, capaz de lhe disputar a primazia em qualquer exercício de corpo ou de espírito.

Daí provinha o seu justo orgulho de se haver feito a si próprio grande fidalgo, sem necessidade de brasão e linhagens, pelo único estímulo de seus brios generosos. E tinha um pressentimento de que sua Leonor o estimaria mais assim, filho de suas obras, do que alapardado em ridículos pergaminhos.

Desde aquela tarde do cravo, cada vez que Rebelo queria avistar-se com a dama de seus pensamentos, custava-lhe isso, como dissera o governador, um assalto d'armas ou uma batalha campal.

Tinha ele mensageiros que o traziam informado dos passeios de Leonor, e o avisavam das ocasiões em que a mãe lhe consentia estar à janela, ou a levava fora, em passeio e visitas.

Então corria o mancebo a Olinda, se já ali não estava oculto em casa do alvissareiro, e acompanhado de dois acostados de sua confiança ia-se ao enconntro de Leonor, para cortejá-la com o respeito devido a uma rainha e significar-lhe com o gesto singelo da mão esquerda sobre o coração, que ela continuava a reinar ali como soberana.

As mais das vezes, antes de aproximar-se da donzela, tinha ele de romper através das espadas e adagas de André de Figueiredo e sua comitiva; outras tomava-os de surpresa, e era na retirada que se travava a peleja.

Nessa porfia andavam tão tribulados amores, quando a carta régia da criação da vila do Recife levou a palácio o capitão-mor, donde resultou a intervenção de Sebastião de Castro em favor dos dois amantes.

Bem que penhorado pela ação generosa do governador, não se deixou Rebelo afagar pela travessa esperança que lhe roçava o coração com as asas verdes. Sabia ele de que têmpera era a soberba dos Cavalcantis, como o ódio de André, de Figueiredo: não bastava para dobrar esse aço o favor de algumas palavras. embora de pessoa de tamanha valia.

Três dias depois, sobre tarde, Vital Rebelo encaminhou-se a cavalo para Olinda, ansioso por ver Leonor, em cujos formosos olhos se não tinha mirado desde muitos dias.

Passou a ponte do Varadouro, subiu a ladeira, e entrou na Rua de São Bento. Estava a donzela à sacada, e debruçou-se ao avistar o galante cavalheiro, pendendo-lhe da mão mimosa uma cândida e formosíssima teia de Cambray, cercada de rendas de Flandres.

Quando passava o mancebo por baixo da janela, soltou-se o lenço que Vital Rebelo, recebeu na palma, beijando-o uma e muitas vezes, sobretudo nos emblemas que trazia bordados a fio de seda pelas mãos de Leonor, e eram um cravo encarnado ao qual servia de vaso um coração.

Tornando a casa, ainda enlevado, agradecia o alferes a Sebastião de Castro sua ventura; pois aquela prenda. trabalhada por Leonor nas horas de saudade, não teria ela nem ânimo nem liberdade de oferecer-lha, se não houveram cessado a severidade e vigilância de que a cercavam.

De feito, o que Vital não ousara esperar veio a realizarse, ainda que não em muita relutância e acerbas contestações.

Relatara o capitão-mor aos principais da família quanto passara em palácio, e para todos ficou evidente que o governador querendo proteger Vital Rebelo, por quaisquer motivos, fazia do casamento deste com Leonor a condição do prometido favor de protelar a criação da vila do Recife, e frustrá-la sendo possível.

Sebastião de Castro tinha para si que nada prometera, e ficara senhor de proceder como julgasse mais acertado de futuro, em face das circunstâncias. Era essa uma das sutilezas do fidalgo: persuadir aos outros de empenhos que, além de não tomar, ele costumava ressalvar por umas palavras ou reservas mentais a que se não dava atenção.

Largamente se discursou no sofá acerca do que havia a fazer em tal emergência. Logo em princípio preponderou o alvitre de repelir sem mais exame a possibilidade de uma aliança degradante para a nobreza e em particular para os Cavalcantis; e as razões dos mais políticos sobre a necessidade de derrogar um tanto no lustre da nobreza pernambucana para salvar-lhe a suma que eram as regalias e privilégios, retrucavam que se não havia mister de tal sacrifício, quando podiam fazer que o Senado de Olinda embargasse a execução da carta régia obtida ob e sub-repticiamente.

Destes últimos eram os mais assomados, como de razão, André de Figueiredo que as públicas estimações juntava as particulares das afrontas recebidas, e também o ouvidor Arouche. No outro partido estava o Sargento-Mor Cristóvão de Holanda, que era de natural brando e conciliador.

Acudiu então Filipe Uchoa com o seu peco de reduzir diferenças e sugeriu o alvitre de se não embaraçar pelo enquanto o casamento, sem todavia aceitá-lo definitivamente, e assim ganhando-se tempo, o que era de toda importância para o caso, diferia-se a dificuldade que mais tarde se resolveria como pedissem as circunstâncias.

Era o bacharel camarada de Vital Rebelo ou inculcava-se aí; mas esse favor de Sebastião de Castro pelo alferes estava-lhe fazendo cócegas à vaidade, pelo que maquinava cinzar ao governador o qual nessa bisca da política era homem para dar-lhe sota e ás.

Tão vários e encontrados pareceres, ouvia-os João Cavalcanti com semblante de juiz que pesa o pró e o contra. Às vezes, embora raras, cobrava esse ânimo alquebrado o vigor primitivo, e mostrava a efígie do galhardo e leal cavalheiro que fora.

Tomou ele a palavra com autoridade, e todos o escutaram reverentes.

— Se nesse casamento está o penhor de nossa vitória e portanto da conservação de Olinda e de sua nobreza, que muito é tão pequeno revés em comparação da desafronta de nossos brios enxovalhados pela mascataria do Recife? E uma vez que havemos de passar por essa prova, cumpre sofrê-la com ânimo de cavalheiros, sem despeitos nem subterfúgios.

Neste ponto Filipe Uchoa corando ao de leve, enfrestou o olhar por cima dos óculos para examinar o efeito que produzira no semblante dos outros a indireta do tio.

— Esse Rebelo, continuou o capitão-mor, não é nobre; mas também por seus cabedais e trato de vida já se não pode dizer um peão. E os descendentes dos Cavalcantis, Coelhos, Albuquerques e Holandas, temos fidalguia demais, que sobra sem dúvida para repartir com os maridos de nossas filhas e sobrinhas:

Ficou pois decidido que se deixaria o campo livre ao mancebo para cortejar a donzela, com o que ele infalivelmente se afoitaria a pedir-lhe a mão, sôfrego da honra insigne dessa aliança, ainda mais do que dos arrebatamentos da paixão.

Não se atreveu André de Figueiredo a opor-se de frente ao capitão-mor. Arrancou desabridamente, como quem se não podia conter, e entrando por casa, foi-se à irmã:

Querem casar Leonor com o filho do judeu que desgraçou-lhe o pai. Com o meu Voto, nunca o fareis. E também vos digo que, eu vivo, aquele vilão não passará a soleira desta casa. Nem jamais terei por meu sobrinho e vosso filho o perro que eu jurei de coser com esta adaga.

Parece que D. Antônia contou ao tio as ameaças do irmão, pois nessa mesma tarde, antes de montar a cavalo, buscou o capitão-mor a André de Figueiredo.

— Sabereis, meu sobrinho e senhor Capitão André de Figueiredo, que me veio ao conhecimento vossa intenção de desafiar-vos com Vital Rebelo; e então ocorreu-me dizer-lhe que doravante, visto ser por minha vontade que o rapaz corteja Leonor, não é com ele, mas comigo, que vos tereis de haver, do que vos dou aqui por ciente.

Estas palavras as proferira o velho desempenando o grande talhe com o garbo marcial de outros tempos; e rematou-as batendo com a palma da mão direita nos copos da espada suspensa ao quadril. Depois cortejou, tocando com donaire na aba do chapéu:

— Ao seu dispor, senhor capitão.

André de Figueiredo, de cabeça baixa, não abriu boca, temendo ao descerrar os lábios que lhe rompessem, não palavras, mas todas as pragas do inferno que lhe ferviam no coração. Quando se foi o tio, rugiu de cólera, arrancando um punhado de barbas.

Desde esse dia sumiu-se de casa. Soube-se depois que partira para seu engenho do Cairá, onde conservou-se por muito tempo fermentando sua ira.

Tais eram as ocorrências que nos dias anteriores haviam conduzido os amores de Vital à feliz conjunção em que ele os achara na sua ida a Olinda, e em que permaneceram até o dia dos desposórios.