Guerra dos Mascates/II/VI

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Os dias que seguiram-se à noite das bodas, a vida de Vital Rebelo não foi senão a longa e aziaga modorra, em que apagou-se o sonho inefável de sua ventura.

Todavia, um só instante não se arrependeu do que havia feito. Tinha ele uma alma dessas para quem a virtude não é a cousa banal que o mundo chama dever; mas um supremo enlevo da consciência, que sente-se divinal quando triunfa das próprias paixões.

Para os homens deste temperamento a honra não consiste em vanglórias que insufla a vaidade; e sim no íntimo contentamento de si mesmo, que é a seiva robusta de que se nutre sua existência.

Resolvendo ficar em Olinda, Vital não teria rompido o fio dourado de sua felicidade, e estaria àquela hora gozando as primícias do amor terno e mavioso de sua Leonor. Mas no estado das cousas, aquele passo o rebaixara em sua própria consciência; e desde então, sob a vergonha dessa humilhação, já sua ventura não teria a pureza. imaculada que o enchia de júbilo; as carícias de sua noiva perderiam o sabor celeste com o travo deste pensamento, que ele as comprara por uma vileza.

Perdera tudo quanto podia embelezar-lhe a existência, mas salvara-se a si, e podia-se dizer o homem que fora, e não um desses espólios d'alma que, abandonados de sua própria individualidade, andam no mundo como vasilhas humanas, onde se despejam e fermentam as paixões alheias.

Nos primeiros tempos o tédio que tomara ao mundo, tornando-lhe grata a solidão, o levara pelos sítios escusos onde parecia-lhe que o entendiam os rumores do bosque sussurrante.

Por vezes na volta destes passeios encontrava-se com a cavalgada de Sebastião de Castro, que vinha também da sua costumada excursão. Respondia o governador com muita urbanidade à cortesia do mancebo; e correspondia-lhe de um modo tão afetuoso, que metia inveja aos da comitiva.

Estas repetidas mostras de apreço, significativo a ponto de traduzir-se nos apertos de mão e zumbaias da gente de palácio, despertaram no espírito aborrido de Vital Rebelo uma idéia que, repelida à primeira e outras vezes, tornava sempre com insistência.

Fora o governador quem arranjara seu casamento pela recomendação que fizera ao Capitão-Mor João Cavalcanti; e pois bem podia ele, que vencera a maior dificuldade, cortar agora a mínima exigência que sem propósito faziam os tios de Leonor.

Logo, porém, arredou este pensamento, pela aversão que sempre tivera de solicitar favores. Mas tratava-se de sua felicidade, porventura de sua vida; quando o governador lhe dava tantas provas de apreço, parecia-lhe demasiada sobranceria, senão desatino, desprezar os bons ofícios que já uma vez tanto haviam aproveitado.

No meio desta perplexidade resolveu consultar Carlos de Enéia contando que o amigo o dissuadiria da idéia. O contrario aconteceu.

— Não só procedes com acerto falando a Sebastião de Castro, como no teu caso é o que de melhor podes fazer, respondeu o letrado.

— Pensas então que obterei por seu intermédio chamar à razão os tios de Leonor.

— Alguma cousa com certeza obterás deste passo, disse Carlos de Enéia com um leve sorriso de ironia que apagou-se logo na habitual expressão do semblante melancólico.

No seguinte dia foi Vital Rebelo a palácio.

Sebastião de Castro o recebeu afetuoso, e indagando com vivo interesse dos pormenores da cena que passara na noite das bodas, pôs o mancebo a caminho do pedido que lhe vinha fazer.

— Fiado na muita bondade de Vossa Senhoria, que já uma vez foi servido interessar-se por minha sorte, venho rogar-lhe a continuação do favor que espontaneamente já mereci, na esperança de que tão valiosa intervenção porá um termo à birra malfadada dos parentes de D. Leonor.

O prazenteiro semblante do governador fechava-se ouvindo o mancebo:

— E por que recusa o senhor obstinadamente morar em Olinda, na companhia de sua mulher? Não lhe acho razão; nem admira que os Cavalcantis se mostrem ofendidos com o seu procedimento.

— Sabe Vossa Senhoria quem eu sou! respondeu Vital com altivez, e compreende que os meus brios não me permitem ficar em Olinda. É ponto de honra e não acinte. -

Tinham certas palavras a propriedade de arranhar o ouvido fidalgo de Sebastião de Castro; essa de brios era uma das tais.

Pelas colisões freqüentes em que o colocava o seu sistema de governo, e pelo hábito de transigir com as dificuldades em vez de as remover, adquirira ele a admirável maleabilidade com que sabia ajeitar-se a todas as circunstâncias.

Dai provinha que as melhores têmperas d'alma, como o sejam a firmeza, a coerência, a perseverança, eram cruezas de que se julgava ele isento, e que tachava nos outros como graves defeitos que os tornava inábeis para os cargos da República.

Tomara a sua fisionomia um gesto desdenhoso ao ouvir as últimas palavras do mancebo, a quem redargüiu nestes termos:

— O senhor ainda está muito moço. Com os anos hão de passar esses verdores do ânimo exaltado; e então aprenderá por experiência que se não sacrificam cousas de mor ponderação a melindres e enfados do ânimo por demais suscetível.

— A idade há de quebrar-me as forças do corpo e do espírito, que tal é nossa humana condição; mas esta isenção que Vossa Senhoria apelida melindres nasci com ela e com ela morrerei.

— Quer um conselho de amigo? tornou Sebastião de Castro com um modo insinuante. Faça a vontade à sua sogra; vá para a companhia de seus parentes, e fio-lhe eu que se não arrependerá.

— Esse alvitre é impossível; e por estar disso bem convencido foi que resolvi buscar a intervenção de Vossa Senhoria.

Fechou-se então de todo o fidalgo:

— Como governador desta capitania, encarregado de prover às necessidades da República, veda-me o meu regimento intrometer-me no sagrado da família, retrucou Sebastião de Castro.

— Neste caso não devia o senhor governador ter trazido as cousas ao ponto a que chegaram.

— Naquela ocasião o vosso casamento resolvia graves dificuldades, e acabava com uma rixa, que turbados como andavam os ânimos, podia ser o facho da guerra civil; estava pois na minha alçada, pois que daí dependia a paz da capitania. Agora não é assim; realizou-se a aliança, e só do senhor depende mantê-la.

— Todavia, esta semana passada, certo rapaz que desinquietara uma rapariga lá para Santo Amaro, foi obrigado a casar por ordem de Vossa Senhoria.

— Não há tal. Seria por ordem do meu ajudante, e sem conhecimento meu.

Tinha Sebastião de Castro esta balda de lançar à conta dos subalternos a culpa dos atos que praticava, quando sobre eles cala a censura. Por este modo arranjava para si o cômodo rojão do rei constitucional, que não pode errar; mas pouco lhe valeu isso contra os ataques dos olindenses e mais tarde contra o achincalhe dos mascates.

Apesar do que dizia o discreto Secretário Barbosa de Lima, e do que trovejava o farfalhudo Ajudante Negreiros, era corrente que não se movia uma palha na governação da capitania sem licença de Sebastião de Castro, o qual entendia com tudo, até com a ração da tropa e o bê-a-bá dos meninos na escola.

De volta de palácio, passou Vital por casa de Carlos de Enéia, para contar-lhe o malogro que ele em grande parte imputava ao amigo por havê-lo animado a esse passo, longe de o dissuadir.

— Disso que sucede agora, te preveni há tempos, mas não me quiseste crer.

— Entretanto ainda ontem me prometias que alguma cousa eu obteria de ir ao governador, replicou Vital surpreso.

— E avalias em pouco a lição que recebeste? Depois do que ouviste em palácio, já não duvidarás que Sebastião de Castro quando arranjou o teu casamento com Leonor, só teve em mira quebrar-te o orgulho, amarrando-te ao cepo de humilhação que te preparavam os parentes de tua mulher; porque tem como certo, que essa conspiração de alcova é obra insigne de nosso homem.

— Presumes isso? exclamou Vital tomado de igual suspeita.

— Ex ungula leonem; pela trama conheço a aranha que teceu a rede. Ele deu o fio e o teu bom amigo o urdiu com a sua consumada perícia.

— Disso tenho certeza, ainda que não posso atinar com o interesse que pudesse ter ele em magoar-me.

— O de agradar ao governador, ao passo que te privava de um bem de que ele não podia gozar; queres incentivo maior do que esse da ambição abraçada com a inveja?

Vital calou-se, tomado do tédio que lhe inspiravam estes manejos, e Carlos de Enéia continuou:

— Se aceitasses com a precisa coragem a prova a que Sebastião de Castro submeteu a tua docilidade, ficava teu amigo, e não tardaria muito que atirasse fora o ajudante como um sapato acalcanhado para calçar-te ao pé. Como porém te mostraste exaltado, intolerante, sem traquejo e até malcriado, podes contar que doravante estás no índex expurgatório.

Desde então Vital Rebelo não contou senão consigo, e buscou modo de falar a Leonor para concertar nos meios de tirá-la da casa de André de Figueiredo, onde se achava guardada com a maior vigilância.

Ao recordar os acontecimentos da noite fatal de suas bodas, doía ao mancebo no fundo d'alma a fraqueza com que se houvera Leonor. Supunhase querido com mais ardente afeto, desse que faz as heroinas do amor. Esperava, porém, que a donzela, livre da sujeição em que a trazia a mãe, havia de ser a esposa carinhosa e terna que ele sonhara.

Uma tarde, Leonor, aproveitando um instante de liberdade, saiu à cerca e estava a cismar à sombra do arvoredo, quando apareceu-lhe de repente Vital Rebelo que ajoelhou a seus pés.

Como se ante ela houvera surgido um espectro, a mísera donzela espavorida e fora de si deitou a correr para a casa, sem dar tempo a que lhe dissesse o marido uma palavra.

O abalo que sentiu Vital escureceu-lhe a vista; arrimou-se ele ao tronco de uma árvore e permaneceu imóvel o espaço de muitas horas, a ver se vinha alguém que o acabasse ali onde se acabara a sua esperança. Quando dai tornou, era no seu pensar um viúvo; e desde esse dia trouxe luto por seu amor. que se finara.

Ignorava que André de Figueiredo, já de volta a Olinda, protestara a Leonor matá-lo, a ele Vital Rebelo, à sua vista, se ela tivesse a infelicidade de dirigir-lhe uma palavra ou consentir que ele se lhe aproximasse.

Esta ameaça que não lhe saía da mente, obrigara-a a repelir com horror o único bem que lhe haviam deixado, a doce esperança de rever o marido. Assim que, no momento de avistá-lo depois de tão longa ausência, o que a dominou foi a idéia atroz de que sucumbisse aos golpes traiçoeiros.

Correram os meses e completou-se um ano depois do casamento de Vital Rebelo; durante esse período, em vez de se disporem as causas para uma solução favorável, ao contrário mais se baralhavam com as complicações políticas e as animosidades entre os nobres e os mascates.

Não era Rebelo e nunca fora dos empenhados na luta, porque cedo aprendera a desgostar-se dos partidos que são uma amálgama de toda a casta de gente e de paixão. Mas não obstante carregava para os nobres com a culpa dos mercadores, a quem não quisera renegar.

Por esse tempo foi que veio à noticia do mancebo um aviso de terem os Holandas mandado a Roma impetrar do Papa um breve de anulação do seu casamento.

O pensamento cruel de que Leonor livre podia pertencer a outro venceu o ressentimento de Vital. Voltou a Olinda, onde não fora desde oito meses, e achou nos grandes olhos castanhos de Leonor a mesma ternura de outrora, ainda que tocada de uma sombra merencória das saudades tão longamente curtidas.

Tornou uma e mais vezes, e se nem sempre era tão feliz que encontrasse Leonor á janela, ou a visse de longe na cerca, com uma troca de sinais rápidos e quase imperceptíveis chegaram os dois namorados esposos a combinar a entrega do bilhete em que Vital pedia a entrevista.

André de Figueiredo soubera das vindas de Vital Rebelo a Olinda; mas o Capitão-Mor João Cavalcanti, apesar do que havia ocorrido, proibira que se tirassem razões com o marido de sua sobrinha, que seu sobrinho era, salvo se ele formalmente as provocasse.

Por isso o capitão. roendo o freio com impaciência, redobrava de vigilância à espreita do momento da desforra da vingança.