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Guerra dos Mascates/II/XII

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Estamos em frente ao Palácio das Torres.

Assim chamava-se naquele tempo os paços que o Conde de Nassau, príncipe da casa de Orange, fez construir para sua residência na cidade Maurícia, e que depois da restauração ficaram para habitação de recreio dos governadores portugueses.

Ocupavam na ponta setentrional da antiga Ilha de Santo Antônio o mesmo sítio onde se acha atualmente o palácio da presidência, em que sucessivas reparações e acréscimos transformaram a primitiva construção.

Naquela época ainda apresentava o aspecto senhoril de um castelo torreado, no estilo flamengo e de arquitetura superior na elegância e solidez à grosseira alvenaria que introduziram no Brasil nossos avós, os portugueses, já na decadência de sua efêmera civilização.

Compunha-se o edifício de um corpo quadrado, em dois altos pavimentos alumiados por grandes arcadas. A frente era defendida por um reduto com duas cintas de canhões, uma ao longo da escarpa e outra a cavaleiro.

De cada lado projetavam-se dois pavilhões com as suas canhoneiras também guarnecidas, e após eles elevavam-se em quatro pavimentos as duas torres quadradas cujos coruchéus dominavam todo o vale do Beberibe, desde os outeiros de Olinda até as veigas de Santo Amaro.

No mais alto sobrado viam-se as atalaias; e logo abaixo nas ameias dormiam os morteiros que haviam defendido outrora contra o valor lusitano a cidadela flamenga.

Tal era o Palácio das Torres, como o pintam as estampas daquele tempo. Aí, nas casas ainda adereçadas com luxo de príncipe, faziam os governadores constante residência, o que foi o primeiro escândalo para os nobres moradores de Olinda.

O Senado representou a El-Rei, o qual expediu várias cartas régias ordenando que os governadores assistissem na cidade com os ministros; mas estas ordens do rei velho tiveram o mesmo efeito que hoje produz a soberania do povo menino.

Os governadores continuaram a morar no Recife e só iam a Olinda para tomar ares ou para assistir às festas de Estado que celebravam-se na catedral, e à qual mais de um fez-se conduzir debaixo de pálio.

Atravessemos a ponte levadiça abaixada sobre o largo fosso, e que mais parece dormente a julgar pela ferrugem das correntes que a prendem às colunas da frontaria. Entremos o pórtico do castelo e passando pelo saguão em abóbada vamos ter à sala d'armas. Deixando à direita as portas de comunicação para o pavimento térreo e em frente à arcada que abre sobre o pátio, subamos a escada que fica à direita, e que nos leva em dois lanços a uma antecâmara do sobrado.

Aí estão os lacaios do governador que dirigem os visitantes à próxima alpendrada corrida em volta do pátio sobre colunas de jacarandá tão bem torneadas e burnidas, que figuram basalto.

Três lados dessa galeria estão desertos e silenciosos; no quarto, porém, começam a enxamear entre os oficiais de sala do governador, a gente da governança, e muita outra da principal da terra que vinham ao jube domine, sem falar da chusma interminável de pedintes que nesses dias caiam sobre o governador como um mosqueiro sobre uma fôrma de açúcar.

São nove horas da manhã.

A concorrência era mais numerosa ainda que de costume, porque sendo este dia marcado pelo governador para a junta na qual se havia de decidir definitivamente a questão da vila, que era um caso de monta, ou como se diria hoje uma questão de gabinete, aguçara-se a curiosidade, e todos que tinham entrada no palácio lá foram na esperança de colher alguma cousa.

Enquanto não aparece D. Sebastião, aproveitemos a ocasião para dar uma ligeira notícia do que eram então as antecâmeras de um palácio.

No lanço da galeria franqueado aos estranhos viam-se grupos de moradores que rodeavam alguns dos oficiais de sala, para ouvir desse oráculo do governo as novas de importância ou para simplesmente participar do contacto palaciano, o qual para certa gente é um estofo indispensável.

Oficiais de sala chamavam-se então certos indivíduos que os governadores nomeavam para ficarem de estado à sua pessoa; e como esse oficio não tinha assento na folha, e por conseguinte não vencia salário nem propinas, eram para ele escolhidos de preferência os que tinham praça na milícia, ou que desfrutavam alguma tença e mercê.

Esses oficiais tinham aposento no paço, serviam ao mesmo tempo de camareiros e escudeiros para fazerem sala ao governador, como para o acompanharem em qualquer cerimônia e a passeio. Daí vinha sua designação, a que eles correspondiam à risca desfiando as longas horas do dia naquela galeria ou nos repartimentos baixos, sem ocupar-se em cousa, senão útil, ao menos séria.

O tempo que lhes deixava de folga o plantão da sala, despendiam-no em medir com o compasso das pernas os soalhos alcatifados, recontando pela centésima vez umas anedotas palacianas que já tinham mofo, mas em que eles achavam sempre um chiste particular que provinha de forte sabor cortesão.

A não ser que chegassem novas do reino, o único assunto da prática desses plastrões era D. Sebastião de Castro. - "O homem acordou." - "Está almoçando." - "Vai aos fortes". - "Ainda não jantou." - "Sai a passeio." - "Entrou para o gabinete." Tais eram os graves acontecimentos que preocupavam exclusivamente esses indivíduos, muitos dos quais tinham família.

Se acontecia que D. Sebastião espirrasse, esse fenômeno tornava-se o tema da palestra por muitos dias. "Estará enfermo o homem, cuja saúde robusta não conhece achaques?" - dizia um. - "Quem sabe se esse intempestivo defluxo não trará alguma perturbação grave no regime do palácio?" exclamava outro. - "A reuma é traiçoeira, e não seria mau chamar-se logo o físico em tempo", opinava terceiro. - "Os grandes desastres nascem muitas vezes de pequenas causas, e deste catarro pode provir a perda da capitania, que os pichelingues andam na costa", prognosticava o quarto. - "Fora com os agouros; o espirro sempre foi um sinal de boa saúde", concluía o quinto.

D. Sebastião de Castro, afora os oficiais do costume de seus antecessores, nomeara mais uns dois ou três que tinham outra incumbência especial, além de fazer sala. Esses espalhavam-se pelas ruas do Recife e Olinda, onde sua posição lhes dava entrada em qualquer casa; correndo a coxia, iam colhendo quanta novidade e mexericos topavam no caminho, e com essa bagagem voltavam a palácio.

Era pela diligência de tais alvissareiros que D. Sebastião andava sempre bem informado de tudo quanto ocorria nos dois povoados e do mais que inventava a maledicência. Assim, àquela hora, já ele tinha de cor as duas trovas do Lisardo, e sorria-se do paralelo que faziam a perna cabeluda da Rufina com o caniço da D. Severa.

Apreciava Sebastião de Castro em alto grau os seus oficiais da sala. Não os podia dispensar. Quando saía a cavalo a percorrer as fortificações, para fazer mostra e alardo de sua atividade, levava-os de roldão, à desfilada, por barrocas e corcovas. Fazia-os apanhar sol e chuva, de cabeça exposta ao tempo, sem a menor consideração. à calva dos pelados ou às cãs dos velhos. Deixava-os a curtir fome e sede, enquanto ele examinava uma frandulagem qualquer que encontrava em suas excursões.

Mas quem penetrasse no interior de Sebastião de Castro conheceria que para o fidalgo esses oficiais, com raras exceções, não eram homens, porém uma cousa entre o criado e o animal: uma espécie de mobília de palácio. Não lhes tinha a menor estima; quando muito sentia por eles a afeição do hábito que tomamos a um traste pela comodidade que nos presta.

Se algum morria, era uma contrariedade e nada mais. Mandava por um companheiro dar os pêsames à família, e à noite para distrair-se comparecia ao sarau da nobreza ou dos mascates.

Entretanto contava-se que, se acontecia adoecer algum dos seus criados de quarto, saía ele com toda a comitiva, pondo de parte as cousas do Estado, para visitá-los ao leito. Estes fatos eram depois referidos e comentados com muitos louvores à caridade do fidalgo.

Na extremidade da galeria estava uma sala com as paredes cobertas de lambéis e alcatifada com um tapete da Turquia e cadeiras estofadas de veludo de Utrecht: restos já rafados das galas primitivas. Para esta sala entravam os homens da governança, que deviam compor o conselho e iam ali esperar as ordens do governador.

Estavam todos mais ou menos impados e repletos de sua importância como homens que tinham de dar o seu voto sobre a profunda, intrincada e campanuda questão do marisco.

D. Sebastião estava naquele momento à mesa do almoço, que ele despachava com a presteza de um soldado. Essa particularidade, junta a seus hábitos frugais, apesar da profusão e variedade do serviço, tinha desde o princípio de seu governo causado reparo.

O Padre João da Costa, quando soube que o fidalgo tinha esse costume de que lhe resultava ficar afrontado depois da comida, augurou mal do governo porque em sua opinião um homem que não comia bem, e não digeria melhor, não podia conduzir convenientemente a nau do Estado.

Sebastião de Castro, a quem freqüentemente damos o dom que ele não tinha, apesar de ser da primeira fidalguia dentre Douro e Minho, mas que de todos recebia por unânime aclamação, era exemplar no seu viver privado. Das virtudes que fazem o homem de bem, nenhuma lhe negara a natureza, apesar de já lhe ter o atrito do governo gasto algumas.

Logo ao romper d'alva estava a pé; e depois de composto fechava-se no gabinete que tinha em uma das torres, onde empregava no estudo as primeiras horas do dia. Se dermos crédito a Sebastião da Rocha Pita, era muito versado em cousas de guerra, que aprendera com seu tio Diogo de Caldas Barbosa, nas lutas da liberdade do reino.

— Algumas vezes saía muito cedo a visitar os fortes e prover sobre o regimento da terra, no que era de uma atividade incansável; mas com a sofreguidão de tudo ver por si e remediar, acontecia, o que é muito comum, catar os argueiros nos olhos dos pequenos e não enxergar as traves que lhe metiam pelos seus o secretário e o ajudante.

Na mesa era sóbrio. Seu prato usual consistia em um frangão cozido com papas de arroz à moda da Índia, e que lá chamavam canjas, mas não entrava nelas caril ou alguma outra especiaria. Raro bebia vinho; e seu postre não passava de goiabas, confeitas à maneira da marmelada, doce que já então se fabricava em Pernambuco de superior qualidade.

Ergueu-se Sebastião de Castro da mesa, e dirigiu-se à galeria. Um criado disparou para correr-lhe o reposteiro e anunciá-lo; mas não lhe deu tempo o fidalgo, que apareceu de repente no meio dos ministros reunidos para a junta, produzindo neles uma confusão e atarantamento de que se não mostrou apercebido.

Recebendo a cortesia que lhe vinha apresentar cada um deles, e retribuindo com igual atenção, passou à galeria onde o esperava a chusma de visitas e pretendentes. Ai ouviu de pé o recado ou peditório de cada um, com uma pachorra, que raros teriam em sua posição. Quando se pôde desvencilhar dessa interminável audiência, encaminhou-se à sala do governo onde já estava reunida a junta a que ia presidir.

Era um vasto aposento sobre o comprido, esclarecido por janelas que davam para o rio e das quais se gozava a pitoresca vista de Olinda. Uma longa mesa coberta de arrás verde corria de uma à outra ponta; na cabeceira via-se a cadeira de espaldar reservada para o governador e aos lados bancos rasos cobertos de estofo, onde já estavam sentados os ministros que se ergueram à entrada de D. Sebastião.

À direita do governador ficava o Secretário Barbosa de Lima que expandia-se como uma papoula aos raios do sol. À esquerda, o Ajudante Negreiros, sempre de viseira caída. Seguiam-se desta e daquela banda uns escreventes ou amanuenses que o governador tinha a fantasia de chamar a pretexto de ajudarem ao secretário, e cujo real préstimo era tomar os rinzes ao Barbosa de Lima se, por um caso estupendo, ele se lembrasse de soltar os panos. Um desses era imberbe; os outros já tinham sua barbica; mas não se induza daí que saiam da adolescência, pois já estavam maduros.

Nesse traço havia sem duvida uma predestinação; pois a barba é o emblema das virtudes viris, como sejam a independência e energia.

Sentado D. Sebastião, mandou ao Barbosa de Lima que expusesse a questão, e este desempenhou-se da tarefa com a sua habitual facúndia, mostrando a suma gravidade e ponderação do negócio do marisco, pois era o principal recurso da pobreza do Recife, que, em ocasiões de penúria, daí somente tirava o alimento.

Acabada a exposição, fez o governador um leve sinal com a cabeça; e os ministros, cada um por sua vez, começando pelo almotacé, disseram seu parecer acerca do caso. Enquanto falavam, D. Sebastião ocupava-se em encher uma folha de papel de grutescos de toda sorte, onde se viam de envolta ramagens esboçadas, cabeças de passarinhos e outras bobagens.

Não daremos aqui a íntegra das tenções de cada ministro, como no-la transmitiu a crônica, pois consumiria muito papel. Basta saber-se que o almotacé provou com farta cópia de textos que, sendo o marisco aquático de sua natureza, devia caber de direito aos povos do Recife, os quais habitavam as praias, e não aos povos de Olinda que era uma cidade montanhosa. O almoxarife, fundado na opinião de Avincena e Trincaveili, foi de voto que o marisco era um alimento indigesto e pouco nutritivo, pelo que não tinham os povos de Olinda justo motivo para reclamarem a outra metade do rio; antes deviam agradecer o beneficio que lhes faria Sua Excelência, preservando-os de cruezas de estômago, flatos e outros achaques. O provedor tratou o caso ab ovo e demonstrou cabalmente com a autoridade de insignes gramáticos, que o marisco era fruto do mar, como estava dizendo a palavra marisesca, ísca do mar; e, estabelecido esse ponto, concluiu que todos os crustáceos do rio provinham do oceano e entravam pela barra do Recife, pelo que só ao Recife competia apanhá-lo. Quanto ao Viana, na sua qualidade de provedor dos defuntos, discorreu largamente, com a tal voz de carretão; mas ninguém percebeu o que disse; devia ser cousa muito profunda e digna da maior ponderação, porquanto os ministros ali mesmo julgaram necessário dormir sobre o caso.

Nesse ínterim o Ajudante Negreiros ouvindo desusado rumor na praça, obtida a vênia do governador, ergueu-se da mesa e assomou-se à janela para inquirir da causa dessa agitação.

Fronteiro a palácio estava postado um cavaleiro petiço e magriço, armado de todas as peças, capacete, gorjal, couraça, grevas, espaldeira braçais e guante, com o ginete estacado e a lança em punho. No elmo trazia ele por timbre uma aspa de vermelho com cinco estrelas de ouro, e na cota de malha o escudo dos Barros, campo vermelho, três bandas de prata e sobre o campo nove estrelas de ouro.

Outro cavaleiro também armado de todas as peças, e das mesmas cores, se adiantara até o pórtico e batendo três vezes no escudo com o conto da lança, clamou em voz alta:

— Ouçam todos este repto. O cavaleiro das estrelas, por mim, seu escudeiro, te desafia a ti D. Sebastião de Castro Caldas a combate singular, onde te provará à lança e à espada, a pé e na estacada,. que és um cavaleiro desleal, pois não sabes guardar a cortesia às damas.

O escudeiro, retrocedendo, foi colocar-se atrás do cavaleiro das estrelas; donde com pouco avançou de novo para repetir o repto. Foi da terceira vez que o ajudante chegou e o ouviu.

Depois disso o cavaleiro com o escudeiro deu três voltas à praça, e de cada uma delas, parando em frente à janela de palácio, gritou com uma voz esganiçada:

— Perante todos proclamo covarde D. Sebastião de Castro, que não se atreve a sustentar o seu dito em combate leal.

Esta cena a principio passara desapercebida para os oficiais de sala e mais gente que estava em palácio; quando lhe deram atenção, foi tal a surpresa, que ninguém se lembrou de intervir, e já se retiravam cavaleiro e escudeiro, quando o ajudante que descia as escadas de tropel, montou a cavalo e foi-lhes no encalço.

Tomando a dianteira ao cavaleiro, gritou-lhe o ajudante:

— Levanta a viseira!

— Se vens da parte de D. Sebastião para conhecer o cavaleiro diante de quem ele fugiu, olha!

E levantada a viseira, o Negreiros ao ver a cara bem sua conhecida de D. Severa, disparou às gargalhadas, e deu de esporas ao cavalo para tornar a palácio e contar o caso grotesco ao governador. Mas entornou-se-lhe o caldo, porque ao passar rente com o escudeiro, este, que não era outro senão o brejeiro do Nuno, agarrou-o pelo tacão da bota e o revirou da outra banda.

Ao mesmo tempo com a ponta da lança picava o rapaz a anca do cavalo de D. Severa, e partiam ambos à disparada. Mas inda assim podia sair-lhes salgada a graça, se no momento em que o ajudante erguia-se do tombo, esbravejando como um touro, não desembocasse da ponte uma numerosa cavalgada. que se aproximava cercada de grande ajuntamento de gente a pé.

Descobrindo à frente da cavalgada o pendão da cidade de Olinda, nas mãos do procurador do Senado, Estêvão Soares de Araújo, conheceu o ajudante que havia novidade, e adiando para mais tarde a desforra do desacato inaudito que sofrera, tratou de inquirir do motivo do acompanhamento.

Acabava Sebastião de Castro de levantar a junta, declarando que à vista dos pareceres resolveria em tempo, quando chegou açodado o ajudante a comunicar-lhe que aí vinha o Senado de Olinda com as varas dos ofícios e pendão alçado para representar sobre negócio de urgência, o qual ele suspeitava ser o próprio da criação da vila do Recife.

Saiu o governador a receber os juizes e oficiais; com eles vinha o Ouvidor Arouche e alguns nobres de Olinda dos mais exaltados, além do povo com seus procuradores em frente.

Então o Coronel Domingos Bezerra Monteiro, vereador mais velho que servia de juiz ordinário, adiantou-se e falou nestes termos:

— Senhor governador, aqui vem o Senado da cidade de Olinda, com a nobreza e povo, por seus procuradores nomeados, representar contra a deliberação que tomou Vossa Senhoria de criar vila no Recife, para o que sabe-se com bom fundamento que se estão lavrando em segredo no Forte da Madre de Deus as pedras do pelourinho.

Não pôde de todo ocultar Sebastião de Castro a contrariedade ao ver devassado o seu plano; mas sem desconcertar-se, ouviu impassível e com uma compostura cheia de dignidade todo o arrazoado do juiz de fora.

Sua resposta foi breve e consoante com a autoridade de que se achava revestido:

— Como governador desta capitania hei de cumprir as ordens de El-Rei, meu senhor, a quem o Senado e povo de Olinda devem obediência e sujeição, e o senhor juiz ordinário, primeiro que ninguém. está na obrigação de encaminhá-los a este preceito.

Aqui o sargento-mor, Leonardo Bezerra Cavalcanti, rompeu com um desabrimento impróprio do lugar e da pessoa a quem se dirigia.

— Pois fique sabendo Vossa Senhoria que, se pode por seu arbítrio erguer o pelourinho do Recife, podemos nós os pernambucanos com a justiça que nos assiste derrubá-lo, e assim o protestamos.

Logo acudiu o Alferes Manuel Bezerra em reforço ao pai, e seguiram-se outros discursos sediciosos e palavras de arruído, com insólito desacato à autoridade do governador.

Sebastião de Castro recolheu-se ao interior do palácio, e logo após quando retirava-se o Senado de Olinda, à porta do palácio, apresentou-se o Ajudante Negreiros com uma ronda de soldados da guarda:

— À ordem do senhor governador e capitão-general, prendo ao Sargento-Mor Leonardo Bezerra Cavalcanti e seu filho, o Alferes Manuel Bezerra Cavalcanti.

Momentos depois do ajuntamento, que passava pela ponte de volta a Olinda, ergueu-se uma voz a cantarolar esta quadra muito conhecida então:

O Mendonça era Furtado,
Pois dos paços o furtaram;
Governador governado,
Para o reino o despacharam.

A chusma repetiu a copia em coro, e outra voz alternou:

A peste já se acabou:
Alvíssaras, ó gente boa!
O Xumbregas embarcou,
Ei-lo vai para Lisboa.

Estas coplas eram de uma cantiga popular, em voga uns quarenta anos atrás, e alusiva ao Governador Jerônimo de Mendonça Furtado de cujo apelido os garotos e praceiros tinham feito remoques e trocadilhos.

Esse, o quarto governador da capitania, se malquistara com a nobreza e povo pelas muitas extorsões que praticava; sobrevindo a peste das bexigas, a miuçalha entrou a chamá-la pela alcunha de xumbregas, que tinha o sujeito. Chegou a ponto a animosidade da gente da terra, que na tarde de 31 de julho de 1666 ao sair o governador do palácio de Olinda, tomou-lhe o passo o juiz ordinário que o prendeu, fazendo-o recolher a palácio em custódia, até que o remeteram para Lisboa com o sumário da devassa.

Foi este fato que deu tema à cantiga, a qual o popular nunca mais esquecera e gostava de repetir sempre que se desavinha com os governadores, como aviso do que podia suceder.