Guerra dos Mascates/II/XIII
No quintal de André de Figueiredo, para o Carmo um lanço mais comprido da por baixo das janelas que deitava casa, havia grande rebuliço.
Aí estavam cerca de dez homens. Todos eles dessa casta mestiça de sangue indígena e africano, com sua mescla de europeu, a qual pela petulância e agilidade mereceu dos colonizadores o nome de cabras, de que fizeram depois os vindiços um epíteto afrontoso para os naturais, os quais lhes responderam conforme a artinha no mesmo caso com a alcunha de chumbos, por alusão ao pezunho do galego e à sua chanca de meia arroba.
Felizmente já lá vão longe estes ciúmes, e queira Deus que não tornem, para que possamos, ambos os povos, auxiliar-nos na obra do progresso da humanidade e da regeneração de nossa raça, a quem a Providência não reservou debalde a mais rica porção da América.
Vestiam estes homens bragas estreitas de lona, e sobre elas uma espécie de albornoz de bertangil sem capuz e de mangas curtas; por chapéu um cofo de palha de coco e por calçado a sola do pé, que sem dúvida não cedia na rijeza à melhor alpercata de couro de anta.
Quem estudasse bem esse trajo veria nele já muito pronunciada a transição do clássico vestuário peão do século dezessete para a camisa e ceroula do nosso matuto, mais em harmonia com o clima e os costumes indígenas.
Essa gente ocupava-se em vários misteres, mas análogos; estes esfregavam com cinza, areia e limão o metal de velhos jaezes para tirar-lhes a espessa crosta de ferrugem, enquanto aqueles untavam de sebo o correame, que de seco e rijo menos parecia couro do que pau. Outros malhavam sobre uma bigorna portátil, desfazendo as mossas dos terçados e arneses, os quais bem mostravam o serviço que tinham prestado na guerra holandesa.
À parte, alguns aparelhavam cabos que metiam nas choupas para fazer chuços e virotes. Mais adiante os últimos pensavam os cavalos, e iam-nos arreando à medida que os outros davam prontos os jaezes.
Além dessa gente, havia ali, mais para dentro do alpendre, uns três rapazes que pelo jeito eram algibebes ou pelo menos arranhavam no ofício, porque um deles armado de enorme tesoura cortava sem dó por uma peça de serafina vermelha que rolava pelo chão, e atirava os retalhos aos dois companheiros, os quais desunhavam-se a coser ou antes alinhavar com ponto de palmo.
Finalmente no meio desta labutação, dirigindo a faina e acudindo a todos os grupos, andava o nosso Nuno, arvorado em escudeiro de D Severa, e empenhado em mostrar que, apesar de filho, neto e bisneto de mascate, não nascera para caixeiro, mas sim para homem de armas e brigador. O brejeiro tomara uns ares de importância e caminhava tão empavonado na sua categoria de escudeiro, que ninguém reconheceria nesse soldado arrogante e desempenado o antigo moço, que andava pelas ruas de borjaca ao lombo e côvado embaixo do braço.
— Ó sô homem dizia dali um cabra.
— Escute cá, dom escudeiro! gritava outro.
— Que é isto lá? perguntava o Nuno.
— Para que serve toda esta trapalhada de freio, brida e não sei que mais? Eu cá, dê-me um cabresto, e verá como tenteio o bicho, sem precisar disto.
— Eu também não me ajeito com esta camisa de ferro. .. Parece que está a gente enfrascado!
— Pois quem não quiser assim, bradou o Nuno impaciente, vá despejando o beco. É o que não falta por ai, mariolas que estejam morrendo por um pataco.
Em vista deste argumento peremptório, os cabras embucharam as suas razões, mas ficaram resmungando contra essas invenções de arneses e couraças de que eles não compreendiam o préstimo, destros como eram a cavalgar em pêlo e a brigar quase nus.
Esta azáfama em que estava o Nuno, carece de uma explicação.
Já vimos como D. Severa, vestida de cavaleiro e acompanhada de seu escudeiro, lançara três vezes em frente de palácio um desafio a D. Sebastião de Castro pela afronta feita às damas de Olinda, mandando pregar pelas esquinas do Recife a redondilha descortês e chocarreira: ato este que a ninfa olindense qualificara de vilão, e de sua alta recreação atribuíra ao governador, pela razão de que na súcia dos mascates nada se fazia senão por vontade dele.
Dessa façanha da ninfa olindense ninguém soube em Olinda porque ela teve o cuidado de arranjar um passeio ao engenho da tia,. e em caminho, no casebre de uma velha cabocla, operou a sua transformação com a. armadura e aviamentos que levara o Nuno à garupa em uma burjaca.
De volta a Olinda, o Nuno se propôs demonstrar a D. Severa que nesses tempos rústicos aquela cavalaria andante tornava-se muito arriscada, porquanto podia sair-lhes ao encontro um terço de gente armada, que sem nenhum respeito às regras da nobre arte da esgrima, os iria monteando a tiro de arcabuz; e a prova ai estava no risco por que passaram de serem filados pela guarda do governador, que acudira em auxílio do ajudante.
O melhor alvitre era armar D. Severa uma companhia de que ela seria o capitão, e ele Nuno o alferes, e com a qual além de muitas outras proezas poderiam uma tarde prender o Sebastião de Castro, numa volta do passeio, como fizera outrora o tio da dama, o André do Rego Barros, com o Mendonça Furtado.
Achou D. Severa excelente a lembrança. do moço escudeiro, e abrindo os cordões da bolsa, tirou do mealheiro reservado para o enxoval do casamento três das doze moedas que lá dormiam desde trinta anos e entregou-as ao Nuno para a leva da companhia. Com esse dinheiro assoldara o escudeiro os dez cabras, comprara em um armeiro aquela velha ferragem, e tratara um algibebe de Olinda para enroupar a sua gente.
Enquanto o Nuno andava atarefado com os aprestos da companhia, D. Severa, debruçada à janela, assistia à faina, deleitando-se já com a idéia de comandar ela esse esquadrão e reviver a fama de D. Clara Camarão.
Ao lado da dama apareceu Leonor que ficou surpresa da lida em que achou a tia e assustada com os preparativos guerreiros.
— Não me dirá, minha tia, para que é esta leva de gente armada?
— É para desagravar-nos a nós, damas de Olinda, já que os cavaleiros de hoje esquecem o que devem a seus brios e ás regras da ilustre ordem da cavalaria, tão desprezada agora em nossa terra!
— Então vamos ter briga?
— Se tanto carecemos dela! A guerra, menina, é que faz os heróis e as heroinas.
— Jesus! tia, não diga tal. A guerra traz tantas desgraças!
— Maiores proviriam da relaxação em que vivem os pernambucanos e que acabaria por entregar a terra aos hereges.
Neste ponto foi o diálogo interrompido pelo súbito aparecimento de um velho que surgiu no terreiro, sem que soubesse alguém donde saíra ele.
— Deus o guarde, senhor escudeiro!
— Que procura, meu velho?
— Saberá o senhor, que dizendo-me ali um rapaz da ribeira, que sua mercê anda assoldando gente para uma companhia, eu então vim me oferecer também...
— Para quê? perguntou o Nuno.
— Para o que for preciso.
— Enganou-se, meu velho, nós cá precisamos de soldados e não de aio para crianças.
A resposta do Nuno tinha seu chiste, pois o velho, além das cãs que lhe cobriam as têmporas e o carão bamboleava sobre as pernas trôpegas, batendo com a cabeça como um cameleão.
— Ora o caruncho querendo fazer-se de duro! disse um dos cabras.
— Sua bênção, pai avô! acudiu o outro.
E todos de rir e galhofar:
— Folguem, rapazes, folguem; que estão na sua vez. Também eu já fui moço. Este surrão velho, que estão vendo, no seu tempo, ninguém lhe fazia frente. Pois a guerrilha do Capitão Rebelo, chamado o Rebelinho, era toda de gente escolhida...
— Visto isto, foi você soldado do Rebelinho? observou o Nuno.
— Como diz, senhor escudeiro. Um dia, ainda me lembro como se fosse hoje, o capitão tinha lá sua aventura, que isso de mancebos, e mais ele que era um guapo cavalheiro, acerca de amores é como rosa de Alexandria que nunca está sem flor.
— É galante o velho! disse D. Severa.
— Mas o Rebelinho? perguntou o Nuno.
— Sim, como ia dizendo, tinha lá sua aventura; e então uma noite chamou. me: - "Anda cá." "Pronto, meu capitão." - Calçar as patas dos cavalos com botas de palha, foi um instante e toca a todo o galope. Era madrugada quando chegamos. Os flamengos andavam de refestêlo. O capitão não titubeou; foi um raio que passou entre eles. Quando correram sus, acharam a porta guardada, que lá estava eu; e trás, zás, zás, era um sarilho de espada como nunca se viu. A dama, que tivera aviso, logo saiu da câmera, já apercebida para a jornada, de sorte que o capitão foi tomando-a nos braços, saltando a janela e cavalgando.
— Disto já se não vê nestes tempos de agora! disse D. Severa para a sobrinha. Leonor que desde o princípio ao ouvir o nome de Rebelo, sentira-se presa de uma comoção estranha e não tirava a atenção do velho, estremecera mais de uma vez sob o relance d'olhos que lhe deitava aquele em certos pontos de sua narrativa.
— Foi-se o capitão com a dama, e você como safou-se?.
— Dois botes de espada, um à direita, outro à esquerda; e um pontapé na candeia! Aí ficamos todos da cor de seu mestre...
— Lá dele!
— E eu, este é meu caminho!
— Já vejo que você foi um Ferrabrâs de Alexandria.
— Não digo tanto; mas fui um soldado que sabia seu ofício, e ainda não o desaprendeu. Tome-me o senhor escudeiro a seu serviço, que se não há de arrepender.
— Águas passadas não movem moinho. Você, que é antigo, deve de conhecer o rifão. Não há de ser com as bravatas do tempo dos holandeses que havemos de ensinar os mascates, senão com boas cutiladas...
— Este braço, apesar da tremura, ainda arranha!
— Vá-se andando, meu velho, que temos mais que fazer.
— Sempre quero mostrar que ainda não estou molambo que se bota fora.
E o velho apanhando uma das catanas que rolavam pelo chão, apanhou-a como quem entendia do ofício e fez com a espada um molinete que ninguém por certo esperaria de semelhante podão.
Riu-se Nuno desses floreios, e levando a mão à cinta, cruzou o ferro, certo de em dois tempos desarmar o velho, mas saiu a cousa às avessas, pois foi a sua espada que saltou-lhe da mão.
— Oh! senhor escudeiro, não dê barrigadal
— E então, o velhinho não é da carepa?
Apanhou o Nuno a espada e vinha cego sobre o velho para despicar-se, mas este, como se o grande esforço que fizera o houvesse extenuado, se abordoara a um tronco d'árvore para não cair, e mal podia tomar fôlego.
— Eis em que dão as fanfarronadas! disse o Nuno.
O velho, como que envergonhado da sua bravata, foi-se esgueirando pelo corredor, não sem lançar um olhar significativo a Leonor cujas faces se cobriam de uma lividez mortal.
Sob aquele disfarce, reconhecera a donzela Vital Rebelo, sobretudo quando brandindo a espada, o velho perfilou o talhe; da aventura do tempo dos holandeses compreendeu ela que o marido se preparava a arrancá-la do poder de seus parentes, e dava-lhe aviso por aquele meio em falta de outro.
E não se enganara. Vital não contando senão consigo, resolvera libertar sua mulher do cativeiro em que a traziam e, antes de levar a cabo a empresa, julgou prudente explorar o campo e dar aviso a Leonor. Com esse fito se disfarçou, valendo-se do pretexto que lhe ofereceu a leva do Nuno.
Deixando Olinda, foi o alferes em busca de seu cavalo, que ficara oculto em uma palhoça de pescador perto do Brum, e só à tarde ganhou o Recife. Ia dispor as cousas para realizar o seu plano naquela mesma noite.
Vital receava que de um momento para outro as cousas políticas se baralhassem de modo a trazer um rompimento entre os nobres e os mascates; o que não deixaria de estorvar-lhe a empresa, pelo reforço de que se haviam de cercar os moradores de Olinda.
Naqueles dias passados o negócio parecia ter chegado ao desenlace com a imprudência do Leonardo Bezerra e seu filho, de que se tratou no capitulo anterior. Quando chegou a Olinda a notícia da prisão dos dez pernambucanos, a voz geral foi pelo levante.
Mas um oficial de sala do governador fora a visita em casa do capitão-mor, e ai afirmou que Sebastião de Castro não se tinha decidido ainda a favor dos mascates, pelo que fora rematada indiscrição dos olindenses o provocarem a medidas de rigor. Acrescentava que, ainda assim, a prisão dos dois Bezerras não tivera por causa o desacato de palácio, mas um homicídio que eles haviam perpetrado na noite antecedente.
A última acusação, sabia-se em Olinda que tinha todo o fundamento, pois fora para tomar uma vingança bárbara de pretendidas ofensas que o coronel e seu filho tinham na véspera chegado à casa de André de Figueiredo com um troço de gente armada.
Essas insinuações de palácio serenaram os ânimos, e os trouxeram à concórdia. O sargento-mor e o filho tiveram carta de seguro para se livrarem soltos da querela, e as cousas voltaram ao pé em que anteriormente se achavam, e nas quais as desejava por muito tempo ainda Sebastião de Castro que era avesso a toda complicação ou crise, como se diz na atual aravia política.
Os mascates, que já contavam infalível o despique do governador contra a arrogância dos nobres de Olinda, ficaram de orelha murcha. A Senhora Rufina, essa, quando soube que o seu plano tinha gorado, enfiou, e arregaçando o vestido até à canela, calçada com meia azul de Guimarães, exclamou:
— Aquilo é um songamonga de um papa-açorda! Mas deixá-lo comigo, que eu lhe chegarei a mostarda ao nariz!
Bem nos pesa trasladar para aqui estes destemperos de língua da varoa recifense, mas a verdade histórica assim o exige.
— Era a Senhora Rufina mulher decidida. Se ela tinha cabelo na perna, como o abelhudo do Nuno andou enredando das recifenses lá por Olinda, não sabemos; mas que o tinha na venta, isso podemos assegurá-lo.
Sem mais rodeios mandou chamar o Tunda-Cumbe que lhe viesse falar àquela mesma tarde.
Esse Tunda-Cumbe era um labrego, há anos chegado do reino, sem eira nem beira, nem ramo de figueira. Chamava-se ele Manuel Gonçalves, e tinha a cara lanhada por um gilvaz, troféu de certas façanhas pelas quais deixara na terra fama de parteiro jubilado.
Apenas desembarcado, os patrícios o arranjaram de feitor para o engenho Cumbe, do Sargento-Mor Matias Vidal, em Goiana, e aí tais artes fez, que os negros um belo dia o amarraram a um toco de pau e assentaram-lhe tremenda pisa, que eles na sua língua de Angola, chamam tunda. E dai veio ficar o Manuel Gonçalves batizado por Tunda-Cumbe.
A sova de pau não o desgostou do oficio de feitor, que ainda serviu por algum tempo na Várzea; depois fez-se almocreve de peixe, que ia comprar à ribeira e andava pelas portas a vender em um cargueiro. Mas como era homem de dar e tomar, e dessa última qualidade fazia prova plena a tunda de Goiana, ocupava-se o latagão em outros negócios, que lhe rendiam mais que a regatice, embora lhe custassem às vezes um arranhão na pele ou alguma escovadela no lombo. Para isso tinha ele o couro rijo, e a fêvera maciça.
Em todos os tempos agitados há dessa estofa de gente, que a fortuna se compraz de agarrar pela orelha e atirar no meio dos acontecimentos, donde não é raro vê-los subir pelos degraus das honras e do poder. O nosso Manuel Gonçalves estava fadado a representar um papel importante na Guerra dos Mascates, e a história, que o viu almocreve de peixe naquele ano de 1710, devia dois anos mais tarde encontrá-lo coronel e cavaleiro do hábito de Cristo, com as congratulações que da parte de El-Rei lhe dirigiu o governador.
Tal foi o homem com quem teve a Senhora Rufina larga prática no telheiro da cacimba; do que aí se passou, não reza a crônica.
Isto ocorria dias antes daquele em que Vital Rebelo disfarçado em soldado velho fora a Olinda, e que se contava 17 de outubro.