Guerra dos Mascates/II/XIV

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Quando Vital chegou à porta do Recife, pouco faltava para quatro horas.

Morava ele da outra banda do rio, lugar que fora outrora o Carmo Velho, e que os holandeses chamavam Boa Vista, de uma quinta que aí construiu o Conde Maurício de Nassau, nome esse que os nossos conservaram.

Para ganhar a casa atravessou o Recife e veio sair à Porta de Santo Antônio, donde passando a ponte tomou para o Rosário na direção de Cinco Pontas, que era então o caminho da Boa Vista, pois ainda não existia a ponte, e a passagem se fazia pelo aterro dos Afogados.

Ao voltar para o Rosário, avistou o mancebo uma cavalgada que atravessava de São Francisco para as Trincheiras.

Era o Governador Sebastião de Castro e sua comitiva. Saía ele ao costumado passeio da tarde e dirigia-se para as Cinco Pontas pela Rua das Águas Verdes.

Ao chegar por meio dessa rua. e no momento em que o fidalgo voltava-se para falar ao Barbosa de Lima, ouviu-se a detonação de dois tiros disparados de uma rótula onde ainda se pôde ver um froco de fumaça.

Os oficiais e soldados da guarda arremeteram contra a rótula, mas nada encontraram. A casa desabitada desde muito tempo, estava deserta.

Todavia, se tivessem corrido logo ao quintal, ainda avistariam dois vultos de cara pintada que escaparam-se pela cerca com os mosquetes fumegantes, e que momentos depois eram vistos atravessarem de corrida da Rua do Horta para o Rosário na direção da Praia, onde, a ser verdade o que espalhou-se mais tarde, os esperava uma canoa.

O governador estava ferido; o que, derramando o susto e a consternação nas pessoas da comitiva, dera azo à fuga dos espoletas. Apenas se pôde obter uma liteira, foi ele transportado para palácio e entregue aos cuidados dos físicos da terra.

Os ferimentos eram na coxa direita, onde viam-se quatro escoriações, que não pareciam ter a menor gravidade por serem quase superficiais. Não pensavam porém desta sorte os garnachas que abanavam magistralmente a doutoral guedelha resmungando um latinaço:

— Vulnus intoxicatus!...

Com o alicate, um dos da mestrança, extraia das escoriações partículas brancas e cristalizadas, que aproximava à luz da janela, onde cada um, limpando as canastras e cavalgando-as de novo no beque, procedia ao profundo e escrupuloso exame.

— Mercurius sublimatus corrosivus! disse afinal o deão dos guedelhas erriçando as grossas sobrancelhas como dois acentos circunflexos.

— Ita vero! afirmou o segundo, alongando à guisa de ponto de admiração a já esguia caraça.

— Sane quidem! ecoou o terceiro esparramando as bochechas na mais doutoral interjeição.

Elucidado devidamente o abstruso caso com formidável reforço de latim e suculentas ilustrações de Boheravio e outros luminares da cirurgia, foi decidido pela junta dos físicos, e anunciado em boletim, "que o estado de Sua Excelência, o Senhor Capitão-General D. Sebastião de Castro, devia se considerar melindroso e gravíssimo, visto como os ferimentos, embora rasos, eram feitos por balas ocas, cheias de um veneno terrível, o sublimado corrosivo com que os sicários contavam empeçonhar o precioso sangue do excelentíssimo governador, e assim assegurar por uma morte infalível o êxito de seu nefando e sacrílego trama, mas a Divina Providência, que vela sobre os destinos dos povos, permitiu que os assassinos não empregassem nos mosquetes a carga suficiente, de modo que, sendo as feridas superficiais. restava essa esperança de salvação para o excelentíssimo enfermo, sendo ela todavia tão precária que a sapientíssima junta não se animava ainda a formular um diagnóstico favorável".

Para que o leitor possa aquilatar bem desta sandice doutoral, vamos confiar-lhe um segredo, que até agora escapou às laboriosas investigações do Instituto Histórico, deixando na sombra a verdade sobre o fato culminante da Guerra dos Mascates.

O tal sublimado corrosivo que a mestrança achou na perna de Sebastião de Castro, aqui à puridade, não era outra cousa senão sal de cozinha, com que o Tunda-Cumbe e seu companheiro tinham carregado os mosquetes a mandado da Senhora Rufina. A mulher do Simão Ribas, que no fundo e apesar dos epítetos um tanto pitorescos com que o mimoseava, não tinha raiva ao Sebastião de Castro, e só inquijilava com ele por quere-lo mais homem e mais governador, especialmente depois do desaforo da perna cabeluda; a digna almotacé, bem longe de atentar contra a vida do fidalgo, maquinara nesse meio de despertar-lhe os espíritos vitais, fustigando-lhe a pele. O sal aí fazia a vez da pimenta: com a diferença que a aplicação do primeiro era mais consoante com a dignidade do cargo.

Hoje em dia, dado o desconto aos costumes, ainda se usa do mesmo processo empregado pela Senhora Rufina para intrigar um partido com o supremo dispensador das graças. Em vez de tiros de sal dados de emboscada na esquina da rua, faz-se isso mais limpamente com artigos mascarados de gazetas anônimas.

Ao tempo em que a mestrança destrinçava o caso cirúrgico, os estadistas jubilados proviam ao caso político. Foi sumária a deliberação, pois urgiam as circunstâncias melindrosas da república, que é a cousa de nós todos.

O Barbosa de Lima que por gosto e necessidade falava português correntio, abriu a conferência com um texto latino, res vestra agitur, que arregalou o olho ao Negreiros, o qual dando um puxão à memória, sacou o exemplo da artinha do Padre Mestre Antônio Pereira: Vita, decus et anima nostra in dubio sunt. O almotacé que era rigorista acrescentou - ou in dubio est. Quanto ao almoxarife, não ajustando-se ao caso o único texto de Tácito que ele salvara do naufrágio de seu latinório, apoiou com a cabeça.

Ficou assentado que em desagravo do negro, infame e execrando insulto que sofrera a Majestade na excelentíssima pessoa do senhor governador e capitão-general, seu braço régio, cumpria dar um exemplo tremendo que ficasse para memória; e como medida preliminar ordenou-se a prisão imediata dos principais de Olinda. Esta providência era ainda reclamada pela salvação comum; pois quando os rebeldes ousavam atacar a primeira autoridade da capitania, o que não atentariam contra os subalternos?

Bem se vê que os estadistas não ficavam atrás dos físicos. Se estes haviam pressuposto a existência de balas para afirmarem que eram ocas e cheias de sublimado corrosivo, aqueles davam por averiguado que os autores do bárbaro desacato eram os nobres de Olinda.

Entretanto a notícia do atentado se havia derramado pelas ruas, incutindo na população o espanto, acompanhado do vago terror que pressagia as catástrofes.

Os animosos pensavam nas conseqüências funestas desse crime que ia acender a guerra civil e cobrir de luto e ruínas a já decadente Capitania. Os pusilânimes só pensavam na própria segurança e estremeciam ao menor rumor, cuidando que os pés-rapados, depois de terem ferido o governador, se espalhavam pelas ruas decididos a deixarem tudo raso.

Entre estes últimos distinguia-se o nosso Capitão Miguel Correia, que apesar do lombo maciço e da gineta das ordenanças, não podia de modo algum vencer a instintiva repugnância por tudo quanto lhe cheirava a chamusco. Por isso, quando veio a primeira nova surpreendê-lo na rua, tratou de meter-se em casa do mercador Viana, onde além das paredes, contava ele com os esconderijos do vasto armazém.

Na sala encontrou a Senhora Rosaura e a filha, que também estavam assustadas com a notícia, e espiavam pela rótula à espreita de algum conhecido para inquirir sobre os pormenores do caso. O mercador ao primeiro aviso correra a palácio, donde ainda não voltara; e assim, em falta do Nuno, tinham enviado como batedor a Benvinda.

A chegada do capitão foi pois acolhida com satisfação até pela formosa Belinhas, que de ordinário o recebia de longe com uma graciosa carranca, mas nesse momento chegava-se perto com o rostinho alvoroçado de curiosidade. Se não fossem uns calafrios que lhe corriam pelo fio do lombo e uns repuxamentos que lhe pregavam a barriga no espinhaço, o nosso Miguel Correia se animaria a desejar novos barulhos, que lhe trouxessem esses ares da graça de sua futura.

— Diga-nos o que sabe, Sr. Miguel Correia? foi a pergunta com que a Rosaura lhe abriu a porta.

— Eu, senhora, só sei dos tiros, e que o senhor governador lá foi ferido .para palácio.

— Talvez a esta hora esteja com Deus.

— Que me diz, senhora? exclamou o capitão cujas pernas começaram a abanar.

— Não ouviu tocar ao Santíssimo? Pois foi para o senhor governador. Pelo que falava uma gente que passou, parece que envenenaram as balas.

— Jesus! Que malvados!

— O senhor então ainda não foi a palácio? perguntou Belinhas com reparo.

— Ainda não... Eu... eu quis ir... mas como havia de ter muita gente, pensei que... que não era bom... podia atrapalhar.

— Pois deve ir! tornou a moça.

— A senhora acha?

— Um capitão de ordenanças! Para que serve então esta espada se não é para defender o seu general? disse a moça com desdém.

A Senhora Rosaura, que tinha corrido à rótula por ouvir um burburinho, exclamou:

— Ai, minha Nossa Senhora, que lá vem uma tropa!

— E é para cá! disse Belinhas lançando os olhos à rua.

— Para cá?... balbuciou o capitão procurando com a vista a porta do interior.

— Será dos nossos? Deus o permita! tornou a Rosaura.

— Há de ser, há de ser, disse o Miguel Correia recobrando-se com essa idéia Aposto que foi o Viana que pediu ao ajudante para guardar sua casa...

— Ó mãe, gritou Belinhas, é de Olinda!... E estamos cercados.

O bando de homens armados, em número de vinte, desembocando na Rua da Moeda, dirigiu-se rapidamente à casa do mercador Viana, onde acabava de pôr cerco, apeando-se logo um cavalheiro que parecia o cabo.

Esta esquadra não era outra senão a que o Nuno estava na manhã daquele mesmo dia esquipando e arreando no quintal da casa de André de Figueiredo. O que de mais notável havia nela eram os trajos. Vestiam os sujeitos uma pantalona, como ainda há pouco tempo se via nos palhaços dos circos, o que lhes dava o aspecto de marmanjões de sungas vermelhas, marchetados de estrelinhas de amarelo fingindo ouro.

A cabeça traziam-na coberta com uma carapuça de lã azul, que esticada por dentro com arames, tomava a feição de um funil. Quanto às pernas e pés, não usavam meias nem sapatos, mas uma espécie de polaina preta de original invenção.

Fora o caso que não querendo os cabras admitir cousa que se parecesse com calçado, pois era o mesmo que peá-los, aventou o Nuno metê-los até o joelho em um tijuco preto que depois de seco fingia botas de longe, sem estropiar os seus soldados.

Tendo concluído os aprestos de sua companhia, lembrou-se o escudeiro da D. Severa de sair com ela para adestrá-la desde logo; e seriam quatro horas da tarde quando aquela mascarada desfilou pelas ruas de Olinda com grande alvoroço da meninada, que tomou a cousa por festa mourisca.

Seguiu o bando pelo istmo com direção às portas do Recife, onde o Nuno queria dar mostra da sua luzida esquadra.

Antes de chegar ao Forte do Brum, há no istmo uma pilastra conhecida por Cruz do Patrão que serve de baliza aos mareantes quando demandam o porto. Passando por ali, ouviu a tropa alguma cousa que excitou-lhe a atenção. Era uma espécie de salmo ou recitativo, pronunciado por uma voz débil e extenuada. Dir-se-ia um canto de igreja, talvez um responso, tão lúgubre eram os acentos daquele ritmo.

Os cabras se benzeram, esconjurando o mau agouro; e Nuno, um tanto agitado apesar da sua temerária impetuosidade de rapaz, adiantou-se para averiguar o caso.

Sentado no respaldo da pilastra, pela face do mar, via-se um homem com o olhar engolfado no vasto horizonte que se abria pela imensidade do oceano. Seus olhos pasmos e hirtos pareciam exalar os últimos lampejos d'alma que se estava desatando do seu espojo mortal, para embeber-se no céu. Moviam-se frouxamente os lábios desatando aqueles salmos tristes, em que de perto se reconhecia a cadência soluçante de uma trova.

Era só o que a vida ainda não desamparara nesse corpo já quase morto, que a não ser a pilastra onde se derreava, estaria rojando no chão. Mas esse mesmo crepúsculo da vida, que ainda pairava nos olhos e nos lábios do infeliz, bruxuleava já, apagando-se intermitente como o clarão de lâmpada a extinguir-se. Ao ver-lhe o semblante que jaspeava a lividez da morte, Nuno deu um grito, e apeando-se rijo correu ao moribundo.

— Lisardo!

O poeta não pôde volver os olhos para o amigo; mas um raio perpassou-lhe no rosto, como a luz de um sorriso.

— Acudam! gritou o Nuno para sua gente. Depressa! É preciso salvá-lo! Vão buscar o licenciado!

Um dos cabras mais decididos aproximou-se, e tirou do cós da pantalona uma borracha delgada e comprida que facilmente se acomodava ao corpo à guisa de cinta, e na qual trazia a inseparável branca, sua fiel companheira. Para ele, como para muita gente, esse era o elixir milagroso capaz de ressuscitar um morto.

Assim tratou sem mais cerimônia de introduzir o gargalo da borracha na boca do poeta e despejar-lhe um gole. Reanimou-se de súbito a fisionomia do moribundo, mas logo após caiu ele estorcendo-se de dores e soltando gemidos pungentes no meio dos quais escapou-se afinal uma palavra que parecia sair das entranhas dilaceradas:

— Fome!.,. A fome!

— Morto de fome, meu Deus! gritou o Nuno. Corram! A Olinda... Voem!... Ah! Lisardo!... Pois, não me tinhas a mim!