Helena/II

Wikisource, a biblioteca livre

No dia seguinte, foi aberto o testamento com todas as formalidades legais. O conselheiro nomeava testamenteiros Estácio, o Dr. Camargo e o padre Melchior. As disposições gerais nada tinham que fosse notável: eram legados pios ou beneficentes, lembranças a amigos, dotes a afilhados, missas por sua alma e pela de seus parentes.

Uma disposição havia, porém, verdadeiramente importante. O conselheiro declarava reconhecer uma filha natural, de nome Helena, havida com D. Ângela da Soledade. Esta menina estava sendo educada em um colégio de Botafogo. Era declarada herdeira da parte que lhe tocasse de seus bens, e devia ir viver com a família, a quem o conselheiro instantemente pedia que a tratasse com desvelo e carinho, como se de seu matrimônio fosse.

A leitura desta disposição causou natural espanto à irmã e ao filho do finado. D. Úrsula nunca soubera de tal filha. Quanto a Estácio, ignorava menos que a tia. Ouvira uma vez falar em uma filha de seu pai; mas tão vagamente que não podia esperar aquela disposição testamentária.

Ao espanto sucedeu em ambos outra e diferente impressão. D. Úrsula reprovou de todo o ato do conselheiro. Parecia-lhe que, a despeito dos impulsos naturais e licenças jurídicas, o reconhecimento de Helena era um ato de usurpação e um péssimo exemplo. A nova filha era, no seu entender, uma intrusa, sem nenhum direito ao amor dos parentes; quando muito, concordaria em que se lhe devia dar o quinhão da herança e deixá-la à porta. Recebê-la, porém, no seio da família e de seus castos afetos, legitimá-la aos olhos da sociedade, como ela estava aos da lei, não o entendia D. Úrsula, nem lhe parecia que alguém pudesse entendê-lo. A aspereza destes sentimentos tornou-se ainda maior quando lhe ocorreu a origem possível de Helena. Nada constava da mãe, além do nome; mas essa mulher quem era? em que atalho sombrio da vida a encontrara o conselheiro? Helena seria filha de um encontro fortuito, ou nasceria de algum afeto irregular embora, mas verdadeiro e único? A estas interrogações não podia responder D. Úrsula; bastava, porém, que lhe surgissem no espírito, para lançar nele o tédio e a irritação.

D. Úrsula era eminentemente severa a respeito de costumes. A vida do conselheiro, marchetada de aventuras galantes, estava longe de ser uma página de catecismo; mas o ato final bem podia ser a reparação de leviandades amargas. Essa atenuante não a viu D. Úrsula. Para ela, o principal era a entrada de uma pessoa estranha na família.

A impressão de Estácio foi muito outra. Ele percebera a má vontade com que a tia recebera a notícia do reconhecimento de Helena, e não podia negar a si mesmo que semelhante fato criava para a família uma nova situação. Contudo, qualquer que ela fosse, uma vez que seu pai assim o ordenava, levado por sentimentos de eqüidade ou impulsos da natureza, ele a aceitava tal qual, sem pesar nem reserva. A questão pecuniária pesou menos que tudo no espírito do moço; não pesou nada. A ocasião era dolorosa demais para dar entrada a considerações de ordem inferior, e a elevação dos sentimentos de Estácio não lhe permitia inspirar-se delas. Quanto à camada social a que pertencia a mãe de Helena, não se preocupou muito com isso, certo de que eles saberiam levantar a filha até à classe a que ela ia subir.

No meio das reflexões produzidas pela disposição testamentária do conselheiro, ocorreu a Estácio a conversa que tivera com o Dr. Camargo. Provavelmente era aquele o ponto a que aludira o médico. Interrogado acerca de suas palavras, Camargo hesitou um pouco; mas insistindo o filho do conselheiro:

— Aconteceu o que eu previa, um erro, disse ele. Não houve lacuna, mas excesso. O reconhecimento dessa filha é um excesso de ternura, muito bonito, mas pouco prático. Um legado era suficiente; nada mais. A estrita justiça...

— A estrita justiça é a vontade de meu pai, redargüiu Estácio.

— Seu pai foi generoso, disse Camargo; resta saber se podia sê-lo à custa de direitos alheios.

— Os meus? Não os alego.

— Se os alegasse seria pouco digno da memória dele. O que está feito, está feito. Uma vez reconhecida, essa menina deve achar nesta casa família e afetos de família. Persuado-me de que ela saberá corresponder-lhes com verdadeira dedicação...

— Conhece-a? inquiriu Estácio, cravando no médico uns olhos impacientes de curiosidade.

— Vi-a três ou quatro vezes, disse este no fim de alguns segundos; mas era então muito criança. Seu pai falava-me dela como de pessoa extremamente afetuosa e digna de ser amada e admirada. Talvez fossem olhos de pai.

Estácio desejara ainda saber alguma coisa acerca da mãe de Helena, mas repugnou-lhe entrar em novas indagações, e tentou encarreirar a conversa para outro assunto. Camargo, entretanto, insistiu:

— O conselheiro falou-me algumas vezes no projeto de reconhecer Helena; procurei dissuadi-lo, mas sabe como era teimoso, acrescendo neste caso o natural impulso de amor paterno. O nosso ponto de vista era diferente. Não me tenho por homem mau; contudo, entendo que a sensibilidade não pode usurpar o que pertence à razão.

Camargo proferiu estas palavras no tom seco e sentencioso que tão natural e sem esforço lhe saía. A velha amizade dele e do finado era sabida de todos; a intenção com que falava podia ser hostil à família? Estácio refletiu algum tempo no conceito que acabava de ouvir ao médico, curta reflexão que por nenhum modo lhe abalou a opinião já assentada e expressa. Seus olhos, grandes e serenos, como o espírito que os animava, pousaram benevolamente no interlocutor.

— Não quero saber, disse ele, se há excesso na disposição testamentária de meu pai. Se o há, é legítimo, justificável pelo menos; ele sabia ser pai; seu amor dividia-se inteiro. Receberei essa irmã, como se fora criada comigo. Minha mãe faria com certeza a mesma coisa.

Camargo não insistiu. Sobre ser esforço baldado dissuadir o moço daqueles sentimentos, que aproveitava já agora discutir e condenar teoricamente a resolução do conselheiro? Melhor era executá-la lealmente, sem hesitação nem pesar. Isso mesmo declarou ele a Estácio, que o abraçou cordialmente. O médico recebeu o abraço sem constrangimento, mas sem fervor.

Estácio ficara satisfeito consigo mesmo. Seu caráter vinha mais diretamente da mãe que do pai. O conselheiro, se lhe descontarmos a única paixão forte que realmente teve, a das mulheres, não lhe acharemos nenhuma outra saliente feição. A fidelidade aos amigos era antes resultado do costume que da consistência dos afetos. A vida correu-lhe sem crises nem contrastes; nunca achou ocasião de experimentar a própria têmpera. Se a achasse, mostraria que a tinha mediana.

A mãe de Estácio era diferente; possuíra em alto grau a paixão, a ternura, a vontade, uma grande elevação de sentimentos, com seus toques de orgulho, daquele orgulho que é apenas irradiação da consciência. Vinculada a um homem que, sem embargo do afeto que lhe tinha, despendia o coração em amores adventícios e passageiros, teve a força de vontade necessária para dominar a paixão e encerrar em si mesma todo o ressentimento. As mulheres que são apenas mulheres, choram, arrufam-se ou resignam-se; as que têm alguma coisa mais do que a debilidade feminina, lutam ou recolhem-se à dignidade do silêncio. Aquela padecia, é certo, mas a elevação de sua alma não lhe permitia outra coisa mais do que um procedimento altivo e calado. Ao mesmo tempo, como a ternura era elemento essencial de sua organização, concentrou-a toda naquele único filho, em quem parecia adivinhar o herdeiro de suas robustas qualidades.

Estácio recebera efetivamente de sua mãe uma boa parte destas. Não sendo grande talento, deveu à vontade e à paixão do saber a figura notável que fez entre seus companheiros de estudos. Entregara-se à ciência com ardor e afinco. Aborrecia a política; era indiferente ao ruído exterior. Educado à maneira antiga e com severidade e recato, passou da adolescência à juventude sem conhecer as corrupções de espírito nem as influências deletérias da ociosidade; viveu a vida de família, na idade em que outros, seus companheiros, viviam a das ruas e perdiam em coisas ínfimas a virgindade das primeiras sensações. Daí veio que, aos dezoito anos, conservava ele tal ou qual timidez infantil, que só tarde perdeu de todo. Mas, se perdeu a timidez, ficara-lhe certa gravidade não incompatível com os verdes anos e muito própria de organizações como a dele. Na política seria talvez meio caminho andado para subir aos cargos públicos; na sociedade, fazia que lhe tivessem respeito, o que o levantava a seus próprios olhos. Convém dizer que não era essa gravidade aquela coisa enfadonha, pesada e chata, que os moralistas asseveram ser quase sempre um sintoma de espírito chocho; era uma gravidade jovial e familiar, igualmente distante da frivolidade e do tédio, uma compostura do corpo e do espírito, temperada pelo viço dos sentimentos e pela graça das maneiras, como um tronco rijo e reto adornado de folhagens e flores. Juntava às outras qualidades morais uma sensibilidade, não feminil e doentia, mas sóbria e forte; áspero consigo, sabia ser terno e mavioso com os outros.

Tal era o filho do conselheiro; e se alguma coisa há ainda que acrescentar, é que ele não cedia nem esquecia nenhum dos direitos e deveres que lhe davam a idade e a classe em que nascera. Elegante e polido, obedecia à lei do decoro pessoal, ainda nas menores partes dela. Ninguém entrava mais corretamente numa sala; ninguém saía mais oportunamente. Ignorava a ciência das nugas, mas conhecia o segredo de tecer um cumprimento.

Na situação criada pela cláusula testamentária do conselheiro, Estácio aceitou a causa da irmã, a quem já via, sem a conhecer, com olhos diferentes dos de Camargo e D. Úrsula. Esta comunicou ao sobrinho todas as impressões que lhe deixara o ato do irmão. Estácio procurou dissipar-lhas; repetiu as reflexões opostas ao médico; mostrou que, ao cabo de tudo, tratava-se de cumprir a derradeira vontade de um morto.

— Bem sei que não há já agora outro remédio mais que aceitar essa menina e obedecer às determinações solenes de meu irmão, disse D. Úrsula, quando Estácio acabou de falar. Mas só isso; dividir com ela os meus afetos não sei que possa nem deva fazer.

— Contudo, ela é do nosso mesmo sangue.

D. Úrsula ergueu os ombros como repelindo semelhante consangüinidade. Estácio insistiu em trazê-la a mais benévolos sentimentos. Invocou, além da vontade, a retidão do espírito de seu pai, que não havia dispor uma coisa contrária à boa fama da família.

— Além disso, essa menina nenhuma culpa tem de sua origem, e visto que meu pai a legitimou, convém que não se ache aqui como enjeitada. Que aproveitaríamos com isso? Nada mais do que perturbar a placidez da nossa vida interior. Vivamos na mesma comunhão de afetos; e vejamos em Helena uma parte da alma de meu pai, que nos fica para não desfalcar de todo o patrimônio comum.

Nada respondeu a irmã do conselheiro. Estácio percebeu que não vencera os sentimentos da tia, nem era possível consegui-lo por meio de palavras. Confiou ao tempo essa tarefa. D. Úrsula ficou triste e só. Aparecendo Camargo daí a pouco, ela confiou-lhe todo o seu modo de sentir, que o médico interiormente aprovava.

— Conheceu a mãe dela? perguntou a irmã do conselheiro.

— Conheci.

— Que espécie de mulher era?

— Fascinante.

— Não é isso; pergunto-lhe se era mulher de ordem inferior, ou...

— Não sei; no tempo em que a vi, não tinha classe e podia pertencer a todas; demais, não a tratei de perto.

— Doutor, disse D. Úrsula, depois de hesitar algum tempo; que me aconselha que faça?

— Que a ame, se ela o merecer, e se puder.

— Oh! confesso-lhe que me há de custar muito! E merecê-lo-á? Alguma coisa me diz ao coração que essa menina vem complicar a nossa vida; além disso, não posso esquecer que meu sobrinho, herdeiro...

— Seu sobrinho aceita as coisas filosoficamente e até com satisfação. Não compreendo a satisfação, mas concordo que nada mais há do que cumprir textualmente a vontade do conselheiro. Não se deliberam sentimentos; ama-se ou aborrece-se, conforme o coração quer. O que lhe digo é que a trate com benevolência; e caso sinta em si algum afeto, não o sufoque; deixe-se ir com ele. Já agora não se pode voltar atrás. Infelizmente!

Helena estava a concluir os estudos; semanas depois determinou a família que ela viesse para a casa. D. Úrsula recusou a princípio ir buscá-la; convenceu-a disso o sobrinho, e a boa senhora aceitou a incumbência depois de alguma hesitação. Em casa foram-lhe preparados os aposentos; e marcou-se uma tarde de segunda-feira para ser a moça trasladada a Andaraí. D. Úrsula meteu-se na carruagem, logo depois de jantar. Estácio foi nesse dia jantar com o Dr. Camargo, no Rio Comprido. Voltou tarde. Ao penetrar na chácara, deu com os olhos nas janelas do quarto destinado a Helena; estavam abertas; havia alguém dentro. Pela primeira vez sentiu Estácio a estranheza da situação criada pela presença daquela meia-irmã e perguntou a si próprio se não era a tia quem tinha razão. Repeliu pouco depois esse sentimento; a memória do pai restituiu-lhe a benevolência anterior. Ao mesmo tempo, a idéia de ter uma irmã sorria-lhe ao coração como promessa de venturas novas e desconhecidas. Entre sua mãe e as demais mulheres, faltava-lhe essa criatura intermediária, que ele já amava sem conhecer, e que seria a natural confidente de seus desalentos e esperanças. Estácio contemplou longo tempo as janelas; nem o vulto de Helena apareceu ali, nem ele viu passar a sombra da habitante nova.