Helena/III

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Na seguinte manhã, Estácio levantou-se tarde e foi direito à sala de jantar, onde encontrou D. Úrsula, pachorrentamente sentada na poltrona de seu uso, ao pé de uma janela, a ler um tomo do Saint-Clair das ilhas, enternecida pela centésima vez com as tristezas dos desterrados da ilha da Barra; boa gente e moralíssimo livro, ainda que enfadonho e maçudo, como outros de seu tempo. Com ele matavam as matronas daquela quadra muitas horas compridas do inverno, com ele se encheu muito serão pacífico, com ele se desafogou o coração de muita lágrima sobressalente.

— Veio? perguntou Estácio.

— Veio, respondeu a boa senhora, fechando o livro. O almoço esfria, continuou ela, dirigindo-se à mucama que ali estava de pé, junto da mesa; já foram chamar... nhanhã Helena?

— Nhanhã Helena disse que já vem.

— Há dez minutos, observou D. Úrsula ao sobrinho.

— Naturalmente não tarda, respondeu este. Que tal?

D. Úrsula estava pouco habilitada a responder ao sobrinho. Quase não vira o rosto de Helena; e esta, logo que ali chegou, recolheu-se ao aposento que lhe deram, dizendo ter necessidade de repouso. O que D. Úrsula pôde afiançar foi somente que a sobrinha era moça feita.

Ouviu-se descer a escada um passo rápido, e não tardou que Helena aparecesse à porta da sala de jantar. Estácio estava então encostado à janela que ficava em frente da porta e dava para a extensa varanda, donde se viam os fundos da chácara. Olhou para a tia como esperando que ela os apresentasse um ao outro. Helena detivera-se ao vê-lo.

— Menina, disse D. Úrsula com o tom mais doce que tinha na voz, este é meu sobrinho Estácio, seu irmão.

— Ah! disse Helena, sorrindo e caminhando para ele. Estácio dera igualmente alguns passos.

— Espero merecer sua afeição, disse ela depois de curta pausa. Peço desculpa da demora; estavam à minha espera, creio eu...

— Íamos para a mesa agora mesmo, interrompeu D. Úrsula, como protestando contra a idéia de que ela os fizesse esperar.

Estácio procurou corrigir a rudez da tia.

— Tínhamos ouvido o seu passo na escada, disse ele. Sentemo-nos, que o almoço esfria.

D. Úrsula já estava sentada à cabeceira da mesa; Helena ficou à direita, na cadeira que Estácio lhe indicou; este tomou lugar do lado oposto. O almoço correu silencioso e desconsolado; raros monossílabos, alguns gestos de assentimento ou recusa, tal foi o dispêndio da conversa entre os três parentes. A situação não era cômoda nem vulgar. Helena, posto forcejasse por estar senhora de si, não conseguia vencer de todo o natural acanhamento da ocasião. Mas, se o não vencia de todo, podiam ver-se através dele certos sinais de educação fina. Estácio examinou aos poucos a figura da irmã.

Era uma moça de dezesseis a dezessete anos, delgada sem magreza, estatura um pouco acima de mediana, talhe elegante e atitudes modestas. A face, de um moreno-pêssego, tinha a mesma imperceptível penugem da fruta de que tirava a cor; naquela ocasião tingiam-na uns longes cor-de-rosa, a princípio mais rubros, natural efeito do abalo. As linhas puras e severas do rosto parecia que as traçara a arte religiosa. Se os cabelos, castanhos como os olhos, em vez de dispostos em duas grossas tranças lhe caíssem espalhadamente sobre os ombros, e se os próprios olhos alçassem as pupilas ao céu, disséreis um daqueles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Senhor. Não exigiria a arte maior correção e harmonia de feições, e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a gravidade do aspecto. Uma só coisa pareceu menos aprazível ao irmão: eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão de curiosidade sonsa e suspeitosa reserva foi o único senão que lhe achou, e não era pequeno.

Acabado o almoço, trocadas algumas palavras, poucas e soltas, Helena retirou-se ao seu quarto, onde durante três dias passou quase todas as horas, a ler meia dúzia de livros que trouxera consigo, a escrever cartas, a olhar pasmada para o ar, ou encostada ao peitoril de uma das janelas. Alguma vez desceu a jantar, com os olhos vermelhos e a fronte pesarosa, apenas com um sorriso pálido e fugitivo nos lábios. Uma criança, subitamente transferida ao colégio, não desfolha mais tristemente as primeiras saudades da casa de seus pais. Mas a asa do tempo leva tudo; e ao cabo de três dias, já a fisionomia de Helena trazia menos sombrio aspecto. O olhar perdeu a expressão que primeiro lhe achou o irmão, para tornar-se o que era naturalmente, mavioso e repousado. A palavra saía-lhe mais fácil, seguida e numerosa; a familiaridade tomou o lugar do acanhamento.

No quarto dia, acabado o almoço, Estácio encetou uma conversa geral, que não passou de um simples duo, porque D. Úrsula contava os fios da toalha ou brincava com as pontas do lenço que trazia ao pescoço. Como falassem da casa, Estácio disse à irmã:

— Esta casa é tão sua como nossa; faça de conta que nascemos debaixo do mesmo teto. Minha tia lhe dirá o sentimento que nos anima a seu respeito.

Helena agradeceu com um olhar longo e profundo. E dizendo que a casa e a chácara lhe pareciam bonitas e bem dispostas, pediu a D. Úrsula que lhas fosse mostrar mais detidamente. A tia fechou o rosto e secamente respondeu:

— Agora não, menina; tenho por hábito descansar e ler.

— Pois eu lerei para a senhora ouvir, replicou a moça com graça; não é bom cansar os seus olhos; e, além disso, é justo que me acostume a servi-la. Não acha? continuou ela, voltando-se para Estácio.

— É nossa tia, respondeu o moço.

— Oh! ainda não é minha tia! interrompeu Helena. Há de sê-lo quando me conhecer de todo. Por enquanto somos estranhas uma à outra; mas nenhuma de nós é má.

Estas palavras foram ditas em tom de graciosa submissão. A voz com que ela as proferiu, era clara, doce, melodiosa; melhor do que isso, tinha um misterioso encanto, a que a própria D. Úrsula não pôde resistir.

— Pois deixe que a convivência faça falar o coração, respondeu a irmã do conselheiro em tom brando. Não aceito o oferecimento da leitura, porque não entendo bem o que os outros me lêem; tenho os olhos mais inteligentes que os ouvidos. Entretanto, se quer ver a casa e a chácara, seu irmão pode conduzi-la.

Estácio declarou-se pronto para acompanhar a irmã. Helena, entretanto, recusou. Irmão embora, era a primeira vez que o via, e, ao que parece, a primeira que podia achar-se a sós com um homem que não seu pai. D. Úrsula, talvez porque preferisse ficar só algum tempo, disse-lhe secamente que fosse. Helena acompanhou o irmão. Percorreram parte da casa, ouvindo a moça as explicações que lhe dava Estácio e inquirindo de tudo com zelo e curiosidade de dona da casa. Quando chegaram à porta do gabinete do conselheiro, Estácio parou.

— Vamos entrar num lugar triste para mim, disse ele.

— Que é?

— O gabinete de meu pai.

— Oh! deixe ver!

Entraram os dois. Tudo estava do mesmo modo que no dia em que o conselheiro falecera. Estácio deu algumas indicações relativas ao teor da vida doméstica de seu pai; mostrou-lhe a cadeira em que ele costumava ler, de tarde e de manhã; os retratos de família, a secretária, as estantes; falou de quanto podia interessá-la. Sobre a mesa, perto da janela, estava ainda o último livro que o conselheiro lera: eram as Máximas do marquês de Maricá. Helena pegou nele e beijou a página aberta. Uma lágrima brotou-lhe dos olhos, quente de todo o calor de uma alma apaixonada e sensível; brotou, deslizou-se e foi cair no papel.

— Coitado! murmurou ela.

Depois sentou-se na mesma cadeira em que o conselheiro costumava dormir alguns minutos depois de jantar, e olhou para fora. O dia começava a aquecer. O arvoredo dos morros fronteiros estava coberto de flores-da-quaresma, com suas pétalas roxas e tristemente belas. O espetáculo ia com a situação de ambos. Estácio deixou-se levar ao sabor de suas recordações da meninice. De envolta com elas veio pousar-lhe ao lado a figura de sua mãe; tornou a vê-la, tal qual se lhe fora dos braços, uma crua noite de outubro, quando ele contava dezoito anos de idade. A boa senhora morrera quase moça, — ainda bela, pelo menos, — daquela beleza sem outono, cuja primavera tem duas estações.

Helena ergueu-se.

— Gostava dele? perguntou ela.

— Quem não gostaria dele?

— Tem razão. Era uma alma grande e nobre; eu adorava-o. Reconheceu-me; deu-me família e futuro; levantou-me aos olhos de todos e aos meus próprios. O resto depende de mim, do juízo que eu tiver, ou talvez da fortuna.

Esta última palavra saiu-lhe do coração como um suspiro. Depois de alguns segundos de silêncio, Helena enfiou o braço no do irmão e desceram à chácara. Fosse influência do lugar ou simples mobilidade de espírito, Helena tornou-se logo outra do que se revelara no gabinete do pai. Jovial, graciosa e travessa, perdera aquela gravidade quieta e senhora de si com que aparecera na sala de jantar; fez-se lépida e viva, como as andorinhas que antes, e ainda agora, esvoaçavam por meio das árvores e por cima da grama. A mudança causou certo espanto ao moço; mas ele a explicou de si para si, e em todo o caso não o impressionou mal. Helena pareceu-lhe naquela ocasião, mais do que antes, o complemento da família. O que ali faltava era justamente o gorjeio, a graça, a travessura, um elemento que temperasse a austeridade da casa e lhe desse todas as feições necessárias ao lar doméstico. Helena era esse elemento complementar.

A excursão durou cerca de meia hora. D. Úrsula viu-os chegar, ao cabo desse tempo, familiares e amigos, como se houvessem sido criados juntos. As sobrancelhas grisalhas da boa senhora contraíram-se, e o lábio inferior recebeu uma dentada de despeito.

— Titia... disse Estácio jovialmente; minha irmã conhece já a casa toda e suas dependências. Resta somente que lhe mostremos o coração.

D. Úrsula sorriu, um sorriso amarelo e acanhado, que apagou nos olhos da moça a alegria que os tornava mais lindos. Mas foi breve a má impressão; Helena caminhou para a tia, e pegando-lhe nas mãos, perguntou com toda a doçura da voz:

— Não quererá mostrar-me o seu?

— Não vale a pena! respondeu D. Úrsula com afetada bonomia; coração de velha é casa arruinada.

— Pois as casas velhas consertam-se, replicou Helena sorrindo.

D. Úrsula sorriu também; desta vez porém, com expressão melhor. Ao mesmo tempo, fitou-a; e era a primeira vez que o fazia. O olhar, a princípio indiferente, manifestou logo depois a impressão que lhe causava a beleza da moça. D. Úrsula retirou os olhos; porventura receou que o influxo das graças de Helena lhe torcessem o coração, e ela queria ficar independente e inconciliável.