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Helena/XVI

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Helena leu e releu a carta. Depois ficou silenciosa, a olhar para as folhas da trepadeira, que do lado de fora viera a subir pela muralha da varanda e a debruçar-se enfim do parapeito para dentro. A carta ficara aberta sobre os joelhos da moça. Mendonça, a poucos passos, olhava para esta, sem ousar falar-lhe.

Goethe escreveu um dia que a linha vertical é a lei da inteligência humana. Pode dizer-se, do mesmo modo, que a linha curva é a lei da graça feminil. Mendonça o sentiu, contemplando o busto de Helena e a casta ondulação da espádua e do seio, cobertos pela cassa fina do vestido. A moça estava um pouco inclinada. Do lugar em que ficava, Mendonça via-lhe o perfil correto e pensativo, a curva mole do braço, e a ponta indiscreta e curiosa do sapatinho raso que ela trazia. A atitude convinha à beleza melancólica de Helena. O rapaz olhava para ela sem movimento nem voz.

A tarde expirava; a cor verde do morro fronteiro ia tomando o aspecto cinzento-escuro que precede a cor fechada da noite. A própria noite desceu, e um escravo entrou na varanda a acender as duas lâmpadas que pendiam do teto. Esta circunstância acordou a moça, e bastou-lhe voltar um pouco a cabeça para ver o amigo de Estácio a alguns passos de distância.

— Estava aí? perguntou Helena, estremecendo.

— D. Úrsula não voltou, respondeu Mendonça com timidez; não quis interromper a leitura que a senhora fazia.

— A leitura? A leitura acabou há muito tempo.

— Mas também se lê de cor.

Helena lançou-lhe um olhar suspeitoso.

— Não sei ler de cor, disse ela, erguendo-se e saindo da varanda.

Mendonça ficou aturdido. Que lhe dissera ele tão grave que a pudesse ofender? Repetiu as próprias palavras e não lhes achou sentido mau. Certo, porém, de que a molestara, ali ficou aborrecido de si mesmo, desejoso de lhe explicar tudo, se alguma coisa houvesse explicável. Após alguns instantes, resolveu entrar também. Entrou; Helena não estava nem na sala de jantar, nem na do jogo, onde achou D. Úrsula com o Dr. Matos e o coronel-major. Dali passou à sala de visitas. Helena não o viu entrar; estava mergulhada numa poltrona com a cabeça nas mãos. Comovido, deteve-se alguns instantes a contemplá-la; depois caminhou para ela e falou-lhe.

Helena ergueu a cabeça.

— Perdoe-me, disse ele, se alguma coisa lhe disse que a magoou. Confesso que não sei o que poderia haver em minhas palavras. Ficou triste por isso?

A moça cravou nele um olhar ainda suspeitoso, e não lhe respondeu logo. Mendonça adotou o melhor dos alvitres naquela ocasião; inclinou-se e recuou para sair. Helena chamou-o; ele aproximou-se outra vez, com um ar de tão doce resignação que lisonjearia o mais levantado orgulho. Helena estendeu-lhe a mão; ele apertou-a e teve ímpetos de a beijar uma e muitas vezes, triunfando naquele único instante da hesitação de todos os dias; faltou-lhe resolução. Helena mostrou-lhe o trecho da carta em que Estácio se referia a ele; falaram dos ausentes e dos presentes, de todos e de tudo, menos do assunto que exclusivamente preocupava o moço. Ele saiu dali sem haver dito nada de seu coração. Chegando à rua, achou-se poltrão e ridículo, disse mil nomes feios a si próprio; enfim, prometeu declarar tudo a Helena no dia seguinte.

No dia seguinte, que era domingo, Helena dirigiu-se à capela a ouvir a missa do padre Melchior. Acabada a cerimônia, não seguiu para casa, com D. Úrsula, mas foi ter à sacristia, onde o padre acabava de tirar os paramentos. Melchior, logo que soubera da carta de Estácio, nessa manhã, pedira a Helena que lha deixasse ver.

— Falam sempre ao coração as letras dos amigos, dissera ele.

Helena deu-lhe a carta, que o padre recebeu com uma expressão antes de curiosidade que de afeto. Leu-a vagarosamente, como escrutando o sentido e as palavras; e sendo longa a epístola, longo foi o tempo que ele despendeu em a interpretar. Durante esse tempo, Helena admirava-lhe a figura austera, a serenidade religiosa. A sacristia era pequena; duas altas janelas deixavam entrar a luz, o ar e o aroma das folhas e das flores da chácara. Entre a cimalha e o telhado algumas andorinhas haviam fabricado os ninhos, donde saíam, como pensamentos de juventude, a adejar ao sol da manhã. Ao pé daquele quadro exterior de alegria e verdura, a sacristia tinha certo ar melancólico e severo, que lançava n’alma o esquecimento das vicissitudes humanas. Helena deixou-se cativar desse sentimento de abstenção e elevação; se alguma dor ou remorso a pungia, esqueceu-os, por um minuto ao menos, entre aquelas paredes desataviadas, diante de um padre, entre uma imagem de Jesus e as obras vivas do Criador.

Lida a carta, Melchior dobrou-a com ar pensativo; depois entregou-a à moça.

— Já respondeu? perguntou ele.

— Já; trouxe-lhe a carta que vou mandar hoje mesmo.

Melchior abriu-a e leu; não gastou menos tempo, ainda que era de menores dimensões. O estilo era afetuoso, mas muito menos exuberante que o da carta de Estácio. Ela contava-lhe, em suas feições gerais, a vida que ali passavam, desde que ele partira, as ocupações de cada dia e as distrações da noite.

"Vivemos, dizia a moça, como podem viver duas criaturas que sabem a afeição que lhes tem um parente amigo, ausente embora, mas não esquecido, — nem ingrato. O padre Melchior, algum dos vizinhos, e o Dr. Mendonça são as nossas visitas habituais. Você sabe o que vale o padre; é a mais bela alma que Deus mandou ao mundo. Os vizinhos são afáveis, como sempre. O Dr. Mendonça é verdadeiramente digno da nossa afeição e confiança. Disse-lhe o que você me escreveu; ele riu, como homem seguro de escapar à punição.

"Pena é que você tenha de se demorar aí tanto tempo; mas, se alguma esperança pode haver de salvar a doente, damo-nos por bem pagas da demora. É verdade que você não é médico; mas há aí outra doente, para quem é, não só médico, mas até toda a medicina. Por que razão me não escreveu Eugênia? Eu não cuidei que essa amiga me esquecesse na véspera de ser minha cunhada. Se estivéssemos mais perto, ia puxar-lhe as orelhas. Diga-lhe isto; e se tiver ocasião de emprestar-me os seus dedos, aplique-lhe o castigo, declarando-lhe o delito cometido e o juiz que a sentenciou.

"O que você diz da vida solitária é muito justo, mas impraticável. Os amigos não nos iriam ver; e poderíamos nós dispensá-los? Tal é a opinião de titia e a minha. O melhor de tudo é este meio-termo de Andaraí; nem estamos fora do mundo nem no meio dele. O ruído externo pode ter os efeitos de que você fala; mas ele é às vezes preciso para aturdir e distrair o espírito. Também a solidão tem suas dores, e fundas; também ela abala o coração. Nem um extremo nem outro."

A carta continha alguns períodos mais, não muitos; três ou quatro vezes falava em Eugênia, com tamanha insistência que punha em relevo o silêncio a tal respeito conservado por Estácio; falava-lhe da beleza da noiva, do casamento próximo, do amor que os faria felizes, e da ventura que ambos dariam a todos os seus.

Quando o padre acabou de ler a resposta, abriu os braços a Helena; depois abrangeu com as mãos a cabeça da moça e contemplou-a durante alguns segundos.

— Toda a sua alma está nesse escrito, disse ele; vejo aí a reflexão e o afeto. Tanto melhor! Há contudo uma lacuna: não transmite a seu irmão as minhas saudades; há também uma excrescência: louva méritos que não possuo. Embora! Mande-a...

— Escreverei duas linhas mais.

— Pois sim. Diga-lhe que se apresse, porque estou velho e posso morrer antes.

— Oh! protestou Helena.

Melchior olhou para ela silenciosamente.

— Crê que Estácio seja feliz? perguntou ele enfim.

— Creio.

— Também eu.

Outro silêncio. O primeiro que o rompeu foi o padre.

— Por que se não casa também? disse ele.

— Eu?

— Decerto. Pode ser que muito breve, talvez...

— Talvez nunca.

Melchior franziu a testa; a fisionomia, de ordinário meiga, tornou-se severa, como a consciência dele. O padre tinha uma das mãos de Helena entre as suas; deixou-a insensivelmente cair. Entre os dois estabeleceu-se um silêncio que os acabrunhava e que não ousavam romper; como subjugados por um mistério, receava cada um deles que o outro lho lesse na fronte; instintivamente desviaram os olhos.

Melchior foi o primeiro que voltou a si. A reflexão corrigiu a espontaneidade, e o padre reassumiu o gesto usual, com essa dissimulação que é um dever, quando a sinceridade é um perigo.

— Vamos lá, disse ele; ninguém pode decidir o que há de fazer amanhã; Deus escreve as páginas do nosso destino; nós não fazemos mais que transcrevê-las na terra.

— É verdade! confirmou ela com um gesto de cabeça, e sem erguer os olhos.

— Amanhã, continuou o padre, o acaso, — isso a que os incrédulos chamam acaso, e que é a deliberação da vontade infinita, — lhe apontará um homem digno da senhora, e seu coração lhe dirá: é este; e o suspiro desalentado de hoje converter-se-á num olhar de graças ao céu. Ora, o que eu lhe peço, o que eu desejo, é que se apresse tanto que eu possa casá-los...

— Oh! mas não vai morrer amanhã, interrompeu Helena.

— Estou velho, minha filha; estes cabelos brancos são já a neve desse mar polar para onde navegamos todos. Conto sessenta anos. A morte pode colher-me um dia próximo...

— Vamos almoçar, disse Helena sorrindo.

Saíram da sacristia, atravessaram a capela, e penetraram na chácara. Na ocasião em que iam transpor a porta da capela, viram Mendonça entrar em casa. Melchior estacou e olhou para Helena. Esta ia como acabrunhada e absorta. O gesto do padre, quando ela lhe declarou que não se casaria talvez nunca, ficara-lhe gravado na memória, como um enigma, que talvez receava decifrar. Poucos minutos eram passados; contudo, ela pôde refletir, e coligir os elementos de uma resolução. Detendo-se, com o padre, à porta da capela, viu também entrar Mendonça. Os olhos da moça e do padre interrogaram-se de novo, mas desta vez nenhum deles os desviou.

— Vê aquele homem? perguntou Helena. Parece-lhe que seria bom marido?

— Excelente, decerto, disse vivamente Melchior; caráter, educação, sentimentos...

— Tem ainda uma virtude particular: ama-me.

— Sei.

— Ele lho disse?

— Não, mas vê-se. É sabido de todos os que freqüentam esta casa. A probabilidade do casamento é objeto de comentários, e a opinião geral é que ele se fará dentro de pouco tempo. Confessou-lhe alguma coisa?

— Nada; mas os olhos da mulher amada não são menos sagazes que os dos padres amigos. Acha que devo confirmar a opinião dos outros?

— Acho; consulte, porém, seu coração.

— Já consultei.

— Neste único instante?

— Nada menos.

— Deveras? disse Melchior, derramando um olhar de paternal ternura no rosto sério de Helena.

— Não digo que o ame desde já; mas a afeição que ele me tem, refletirá em meu coração, e eu virei a amá-lo. O que importa saber é que é digno de mim. De todos os que me pretendessem nenhum lhe seria superior.

— Ainda bem! Contudo, repare que vai contrair uma obrigação perpétua, e que um contrato destes não pode ser deliberado em poucos instantes.

— Oh! nesse ponto a minha ignorância sabe mais do que a sua teologia. Que são minutos e que são meses? Paixões de largos anos, chegando ao casamento, acabam muitas vezes pela separação ou pelo ódio, quando menos pela indiferença. O amor não é mais que um instrumento de escolha; amar é eleger a criatura que há de ser companheira na vida, não é afiançar a perpétua felicidade de duas pessoas, porque essa pode esvair-se ou corromper-se. Que resta à maior parte dos casamentos, logo após os anos de paixão? Uma afeição pacífica, a estima, a intimidade. Não peço mais ao casamento, nem lhe posso dar mais do que isso.

— Não gosto de tanta reflexão em tão verde idade, replicou benevolamente Melchior; todavia, encanta-me esse raciocínio que, ao cabo de tudo, pode ser verdadeiro. Mas não me desdigo; alguns minutos é pouco tempo; reflita ainda vinte e quatro horas.

— Nem um instante mais, insistiu Helena. Minhas reflexões são lentas ou súbitas: ou cinco minutos ou um ano; escolha.

— Pois reflita cinco minutos, replicou o padre sorrindo.

— Já lá vão quatro; aproveitarei o último para lhe dizer que em nada disto falaria, se não fossem as qualidades notáveis desse moço; e para acrescentar que a ele me liga certa simpatia de gênios... é talvez a semente do amor.

Tinham chegado ao primeiro degrau da escada da varanda. Subiram e penetraram na sala de jantar, onde acharam D. Úrsula e Mendonça, este a percorrer com os olhos um jornal do dia. O almoço serviu-se imediatamente.

— Padre-mestre, disse D. Úrsula, demorou-se tanto que cuidei... tivesse idéia de me arrebatar Helena.

— Estive-a ouvindo de confissão, respondeu Melchior.

— E pôde absolvê-la?

— Decerto.

— Mas com grande penitência, não?

— A mais fácil de todas, acudiu Helena, olhando para o padre.

— Oh! então é que os pecados são leves! concluiu D. Úrsula. Não lhe parece?

Estas últimas palavras foram dirigidas a Mendonça, na ocasião em que todos caminhavam para a mesa. Mendonça não respondeu nada. Contra o costume, falava pouco, — menos ainda que na véspera e nos dias anteriores. D. Úrsula via a diferença mas não a compreendia.

— Não quero saber que pecados confessou, disse ela sentando-se; estou certa de que o maior deles não levaria ninguém ao purgatório.

— Veja o que é uma tia indulgente, observou Helena a Mendonça, sentando-se ao seu lado.

Preocupado com a conversa que acabava de ter na sacristia e na chácara, Melchior pouca atenção prestou a princípio ao filho do comerciante. Analisava as circunstâncias do momento e pesava a responsabilidade que lhe podia vir de qualquer resolução que adotasse. Após um longo diálogo com a consciência, o velho sacerdote inclinou os olhos ao mancebo, que lhe ficava defronte, ao lado de Helena. Viu-os conversar. Ela mostrava-se graciosa, solícita e atenta, como uma esposa amante; ele parecia enamorado da voz e das falas da donzela; como que um clarão interior lhe desvendara à alma os horizontes infinitos da esperança. Familiarizado com Helena, tratado por ela com esquisita atenção, era contudo a primeira vez que ela lhe falava, não como a um confidente amigo, mas como a um homem que poderia vir a ser seu esposo. Alguma seriedade, um olhar submisso, uma atenção continuada, fizeram essa diferença, que antes foi sentida pelo coração do que descoberta pelos olhos.

No fim do almoço, Melchior dirigiu-se para a sala de visitas, com Helena. Mendonça acompanhou-os. A resolução do padre estava assentada de raiz; ele aceitava aquele casamento como um presente do céu. Apenas entrados na sala, travou as mãos de um e outro e lhes disse, com voz comovida:

— Prometem não zangar-se comigo?

— Por quê? interrogou Mendonça com os olhos.

Helena baixara os seus.

— Prometem?

— Padre-mestre... começou Mendonça sem poder concluir a frase.

O padre olhou silenciosamente para um e outro. Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração. Urgia romper o silêncio; fê-lo com solenidade:

— Serei duas vezes padre: segundo a natureza e segundo o Evangelho. Quando duas criaturas se merecem, é servir a Deus emprestar a voz ao coração que não ousa falar. O senhor ama esta menina; leio-lhe nos olhos o sentimento que o arrasta para ela; são dignos um do outro. Se é a timidez que lhe fecha os lábios, eu sou a voz da verdade e do amor infinito; se outro motivo, serei juiz complacente para escutá-lo.

Ouvindo estas palavras, Mendonça ficou aturdido e mudo. Não só a fortuna lhe chegava às mãos, quando ele menos esperava, mas até escolhera um caminho desusado e estranho. A realidade confundia-se ali com o sonho. A presença de um terceiro era suficiente motivo para acanhar os mais resolutos; acrescia a veste sacra do sacerdote, que dava àquilo um ar de solenidade e consagração. Mendonça recobrou, enfim o uso dos sentidos; a resposta única e eloqüente foi estender a mão a Helena, gesto a que a moça correspondeu com simpleza e naturalidade.

— Não se enganaram meus olhos, disse o padre. Ama-a, e pode dar-lhe a felicidade que lhe desejo a ela. Também Helena o fará venturoso, não? perguntou ele, voltando-se para a moça.

— Mas é isto um sonho? perguntou enfim Mendonça.

— A vida não é outra coisa, retorquiu o capelão; velho pensamento e velha verdade. Façamos por que o sonho seja agradável e não árido ou triste. Prometem-me que se farão felizes?

— Não ambiciono outra coisa, disse o rapaz; será o meu cuidado e a minha glória.

— Seu amor, continuou Melchior, é mais forte que o de Helena; eu consultei-a antes, e li em seu coração. Elege-o com prazer, embora sem entusiasmo. Não é a paixão cega que a faz falar; é um sentimento brando e singelo, por isso mesmo duradouro. A reflexão de um corrigirá a violência do outro e os dois sentimentos se completarão pela virtude especial de cada um.

Esta explicação franca de Melchior teve o condão de ser agradável aos dois. Helena estimou que ele nem lisonjeasse as ilusões de Mendonça, nem a desse como aceitando indiferente e estouvada o casamento proposto. Pela sua parte, Mendonça viu nas palavras do padre um indício da sinceridade de Helena, e aceitou o pouco oferecido, com a certeza de multiplicá-lo. O caráter de Melchior e a veneração que mereciam suas virtudes, eram fianças de veracidade e davam ao ato singelo que ali se passava, um forte cunho de santidade e elevação. Não era uma vulgar declaração de amor, sujeita às variações do espírito ou do interesse, mas verdadeiros esponsais em que a religião era inspiradora e testemunha.