Helena/XVII
Aquele dia foi marcado no calendário de Mendonça com letras de ouro e cetim; a noite desceu coroada de murta e rosas. Ele viveu essas horas todas num estado de sonambulismo e êxtase. Tencionava referir tudo à mãe, logo que entrou em casa ao meio-dia; mas não se atreveu, porque ele mesmo não estava certo se vivia a realidade ou se voava nas asas de uma quimera. De noite voltou a Andaraí; achou em Helena o mesmo modo afetuoso, a mesma solicitude e carinho; nenhuma ternura expansiva, nenhuma contemplação namorada; um meio-termo que o continha a ele próprio, e não era menos aprazível ao coração. A nova situação era, entretanto, sensível, porque os vigilantes de fora trocaram entre si olhares cheios de graves descobertas; um deles, o coronel-major, chegou a proferir uma alusão, que os interessados fingiram não perceber.
Quando Mendonça chegou à casa nessa noite, ia mais que nunca cheio de comoção e nadando em plena glória. A cidade, apenas aí entrou, pareceu-lhe transformada por uma vara mágica; viu-a povoada de seres fantásticos e rutilantes, que iam e vinham do céu à terra e da terra ao céu. A cor deste era única entre todas as da palheta do divino cenógrafo. As estrelas, mais vivas que nunca, pareciam saudá-lo de cima com ventarolas elétricas, ou fazerem-lhe figas de inveja e despeito. Asas invisíveis lhe roçavam os cabelos, e umas vozes sem boca lhe falavam ao coração. Os pés como que não pousavam no solo; ia extático e sem consciência de si. Era aquele o galhofeiro de há pouco? O amor fizera esse milagre mais.
Um dos teatros estava aberto; comprou um bilhete e entrou. Não era desejo de divertir-se ou interessar-se pelo drama, que aliás expirava de parceria com o protagonista; era necessidade de ver gente, de apalpar a realidade das coisas, tão quimérico se lhe afigurava tudo o que se passara desde manhã.
Um espectador, o filho do coronel-major, viu-o a alguma distância e foi sentar-se ao pé dele.
— O senhor que tem melhor vista, disse o acadêmico, desengane-me; aquela moça que ali está, naquele camarote, não é a andorinha viajante?
— A andorinha viajante? repetiu Mendonça, olhando para ele; que quer dizer esse nome?
— É a alcunha da irmã de Estácio. Será ela que está ali, com uma senhora idosa?
— Mas por que lhe chamam assim?
— Eu sei! Naturalmente porque sai à rua todos os dias. Na verdade, é um passear! Mal amanhece, lá vai trepada no cavalinho, com o pajem atrás...
— Quem lhe pôs essa alcunha?
— As alcunhas são como as mofinas: não têm autor.
Caíra o pano; Mendonça despediu-se ali mesmo e saiu. Na rua repetiu mentalmente as palavras do jovem acadêmico. Ao cabo de alguns minutos, sorriu; compreendera que, apenas suspeitada a sua felicidade, já a inveja lhe deitava na taça uma gota de veneno. Ergueu os ombros, resoluto a suportar tranqüilo essa lívida companheira do êxito.
Guiou para casa, onde entrou pouco depois. Helena volvera a ocupá-lo exclusivamente. Só, na alcova de solteiro, inventariou os acontecimentos daquele dia e achou-se morgado da fortuna. Como precisava conversar com alguém, escreveu uma longa carta a Estácio, narrando-lhe toda a história do seu coração, as esperanças e a pronta realização delas. A alma derramou-se no papel impetuosa e exuberante. O estilo era irregular, a frase incorreta; mas havia ali a eloqüência e a sinceridade da paixão. Quando fechou a carta, anteviu o prazer que ia dar ao amigo, logo que ela lhe chegasse às mãos, levando a notícia de que os vínculos atados na aula iam apertar-se na família. "Vem quanto antes, dizia ele ao terminar a missiva; tenho ânsia de abraçar-te e ouvir de ti mesmo o consentimento que me fará o mais feliz dos homens!"
Quando essa carta chegou a Cantagalo, Estácio voltava de uma pequena excursão que fizera com o pai de Eugênia. Conheceu a letra do sobrescrito; abriu negligentemente a carta; leu-a com assombro. A impressão foi tão visível que Camargo lhe perguntou de que se tratava.
— Recebo uma notícia que me obriga a partir amanhã, disse ele.
— Negócio grave?
— Grave.
— Ainda assim, nesta ocasião...
— Que tem? D. Clara pode ainda resistir à morte alguns dias; e, posto que a minha ausência não prejudique nada do fato a que aludo, contudo é mister que me informe e providencie.
— Algum negócio relativo ao inventário? aventurou Camargo, que nada conhecia mais grave que o dinheiro.
— Justamente, respondeu maquinalmente Estácio.
Camargo consolou a filha do desgosto que lhe causava a partida do noivo; falou-lhe a linguagem da razão; disse que havia assuntos práticos, a que os sentimentos tinham de ceder o passo alguma vez. No dia seguinte de manhã, partiu Estácio na direção da Corte, não sem prometer que voltaria, se a moléstia ou qualquer outro motivo obrigasse a família a demorar-se em Cantagalo.
Ninguém esperava por ele em Andaraí. Entrando na chácara, — era de noite, — viu Estácio que a sala que ficava no ângulo esquerdo da frente da casa, estava alumiada e tinha gente. A sala ficava ao rés-do-chão e as janelas estavam abertas. Parou a pouca distância, e pôde distinguir o coronel-major e o Dr. Matos jogando o gamão; a mulher do advogado falava a D. Úrsula e Melchior, em um dos lados; do outro estava assentada Helena, tendo Mendonça diante de si.
Estácio deu volta aos fundos da chácara, e entrou pela varanda. Os escravos que o viram chegar, deram sinal da novidade, com vozes de alegria, que, aliás, não chegaram até às pessoas da sala. Estas só souberam do recém-chegado quando ele assomou à porta. A satisfação de o ver foi geral e sincera em todos. Estácio distribuiu abraços e apertos de mão. Melchior, que se deixara ficar de lado, foi o último com quem falou.
— O Dr. Camargo veio? perguntou D. Úrsula ao sobrinho, logo depois que este cumprimentara a todos.
— Não, respondeu Estácio, a doente não pode escapar, mas ainda a deixei com vida.
— Imagino a impaciência dos herdeiros.
Esta observação filosófica do coronel-major não teve nenhum efeito. Melchior, que a reprovara interiormente, fez mudar a conversa, informando-se da família de Camargo. Estácio deu todas as notícias que podiam interessar; depois, falou de alguns incidentes da viagem; enfim, retirou-se por alguns minutos.
Mendonça acompanhou o amigo, alcançando-o ainda na escada. Subiram juntos e juntos entraram no quarto.
— Agora que estamos sós, perguntou Mendonça, houve por lá alguma coisa?
— Nada.
— Tanto melhor!
Um escravo entrou no quarto, a fim de servir a Estácio; Mendonça, ansioso por lhe falar de Helena, contentou-se com trocar algumas vagas indicações.
— Recebeste a minha carta? disse ele.
— Recebi.
— Não esperavas por ela, aposto...
— Não.
— Como eu não esperava escrevê-la. Estás aborrecido?
— Estou cansado.
— Naturalmente, assentiu Mendonça, abrindo um livro que achou sobre a mesa e tornando-o a fechar.
O silêncio prolongou-se alguns minutos, durante os quais Mendonça tornou a abrir o livro, examinou uma espingarda de caça, preparou um cigarro e fumou. O escravo ajudava o senhor a mudar de roupa. Estácio continuava mortalmente calado; Mendonça falou algumas vezes, sobre coisas indiferentes, e o tempo não correu, andou com a lentidão que lhe é natural, quando trata com impacientes. Logo que Estácio se deu por pronto, e o escravo saiu, Mendonça voltou diretamente ao assunto que o preocupava.
— Estava ansioso por ver-te, disse ele. Não nos é possível falar agora; não temos tempo. Mas quero dar-te um abraço, ao menos, um abraço de agradecimento pela felicidade...
— Parece que só esperavas a minha ausência?
— Creio que não. Já antes de seguires, começava a sentir alguma coisa nova, que vim a descobrir ser paixão violenta.
— Helena ama-te?
— Com igual amor, não creio; mas aceita-me; tem-me algum afeto.
— Tratarei de consultá-la.
Mendonça não pôde continuar, porque Estácio descia a escada ao dar-lhe a última resposta. Mendonça desceu também. Na sala estavam ainda as mesmas pessoas. Perto de uma janela conversava Helena com o padre. O chá foi logo servido e a conversa tornou-se geral, ainda que sem grande animação. Melchior falou menos que todos.
Nem por isso foi o primeiro que saiu; foi o último. Na chácara, dirigindo-se ao portão, ergueu os olhos ao firmamento, não para ver a lua e as estrelas, senão para subir a região mais alta. O que disse ninguém o soube, mas o anjo das rogativas humanas porventura colheu em seu regaço os pensamentos do ancião, e os levou aos pés do eterno e casto amor.