Helena/XVIII
— Helena, disse Estácio no dia seguinte, logo que pôde falar a sós à irmã, — sabes por que vim mais depressa? Foi por tua causa. O Mendonça escreveu-me dizendo haver alcançado de ti uma promessa de casamento.
— É verdade.
— É verdade?
— Até ao ponto em que a minha vontade tem um limite, que é a sua. Por mim só nada posso decidir; mas não creio que você se oponha de nenhum modo. Não é certo que deseja a minha felicidade?
Estavam sentados em um banco de pau, defronte do grande tanque. Estácio ficou algum tempo a olhar para a água.
— Não entendo, disse ele enfim.
— Por quê?
— Mais de uma vez me confessaste não sei que paixão violenta, paixão que parecia conter a tua vida toda. Que, sem embargo de um amor único e forte, uma mulher despose um homem que não é o preferido de seu coração, é caso não vulgar e muita vez justificável. Mas que este casamento seja para ela felicidade, confesso que não o poderei entender nunca.
— Recusa então o seu consentimento?
— Não recuso; desejo compreender.
— Nada mais simples, retorquiu a moça.
— Ah!
— Falei-lhe de um amor forte, é certo, não extinto naquele tempo, mas totalmente sem esperança. Que moça não tem dessas fantasias, uma vez ao menos? A fantasia passou. Ou eu não devo casar nunca, ou posso desposar um homem digno, que me ame. Não casar foi algum tempo o meu desejo; não o é hoje, desde que você, titia e o padre Melchior ambicionam ver-me casada e feliz. Para obter a felicidade, além do casamento, escolhi pessoa que me parece capaz de dar a paz doméstica e os melhores afetos de seu coração.
— De maneira que te sacrificas a um desejo nosso?
— Quando fosse sacrifício, fá-lo-ia de boa cara; mas não é.
— Não se trata de um sacrifício repugnante e odioso; entretanto, cumpre examinar o que perdes. Dizes que a fantasia passou; não creio, Helena, não creio que ela passasse. Tu amas decerto; amas violentamente alguém; amas sem esperança nem futuro; isto é, levas para casa de teu marido um coração que te não pertence, um sentimento intruso e inimigo...
Helena quis interrompê-lo.
— Ouve, continuou Estácio. Esse sentimento, se vier a extinguir-se e se for substituído pela afeição que criares a teu marido, não te fará desventurosa; mas supõe que não morre esse amor, qual será a tua situação?
— Tudo isso é um castelo no ar, disse Helena sorrindo; eu amei, não amo; ou amo somente a meu futuro marido.
Estácio abanou a cabeça com ar de incredulidade. Seus olhos pousaram no rosto plácido da irmã, como tentando arrancar-lhe uma confissão silenciosa. Os dela, firmes e tranqüilos, cruzavam o olhar com os dele. Estácio conhecia já o domínio que a moça exercia sobre si mesma; a tranqüilidade não o convenceu. Assim pensava, assim o disse, sem rebuço.
— Por que razão negaria eu a verdade? retorquiu Helena.
Estácio ergueu os ombros.
— Supondo que você tenha razão, tornou ela, não deverei casar nunca?
— Não digo isso; mas, há dois caminhos para a felicidade, além de Mendonça.
— Não os vejo.
— Esse amor misterioso será realmente sem esperança? Nada há definitivo no mundo, nem o infortúnio nem a prosperidade. O que a tua imaginação supõe estar perdido, acha-se apenas transviado ou oculto...
— Adivinho o segundo caminho, atalhou Helena; não casando agora, posso vir a amar um dia, mais do que a Mendonça, algum homem tão digno como ele.
— Parece-te absurdo isso?
— Não, mas é uma loteria: perco um bem certo por outro duvidoso. O jogador não faz cálculo diferente. Essa felicidade pode não vir; eu contento-me com a que me cabe agora. Mendonça ama-me deveras; senti-o desde algum tempo. O padre Melchior abriu-me os olhos; aceito o destino que os dois me oferecem. Esta é a razão e a realidade; o mais é ilusão e fantasia.
Enquanto ela falava, Estácio, que tirara o chapéu de Chile, ocupava-se em fazer circular na copa a fita larga que o cingia. Houve entre ambos grande silêncio. Pela beira do tanque seguia uma longa carreira de formigas, conduzindo as mais delas trechos de folhas verdes. Com um galho seco, Estácio distraía-se em perturbar a marcha silenciosa e laboriosa dos pobres animais. Fugiam todas, umas para o lado da terra, outras para o lado da água, enquanto as restantes apressavam a jornada na direção do domicílio. Helena arrancou-lhe o galho da mão; Estácio pareceu acordar de largas reflexões; ergueu-se, deu alguns passos e voltou a ela.
— Helena, declarou ele, não creio nada do que você me diz; você sacrifica-se sem necessidade e sem glória. Não consinto; é meu dever opor-me a semelhante coisa...
Helena ergueu-se também.
— Mendonça começa a ser o fruto proibido, observou ela, sorrindo; é o meio seguro de o fazer amado.
A moça afastou-se na direção da casa. Estácio viu-a desaparecer por entre as árvores, e ficou algum tempo entre o banco e o tanque. As formigas, dispersas alguns minutos antes, tinham agora entrado no primeiro caminho, com a mesma ordem anterior. Viu-as o moço, e comparou-as às próprias idéias, também necessitadas de que um galho invisível as não dispersasse e confundisse. No meio de suas reflexões, lembrou-lhe o padre; Estácio atravessou a chácara, saiu à rua e dirigiu-se à casa de Melchior.
Melchior habitava uma casinha, situada no centro de um jardim diminuto, a algumas braças da residência de Estácio. Tinha duas salas o prédio, janelas por todos os lados, uma porta na frente e outra nos fundos. A da frente abria entre duas janelas de venezianas. A sala de visitas era ao mesmo tempo gabinete de estudo e de trabalho. Simples era a mobília, nenhuns adornos, uma estante de jacarandá, com livros grossos in-quarto e in-fólio; uma secretária, duas cadeiras de repouso e pouco mais.
Na ocasião em que Estácio ali entrou, Melchior passeava de um para outro lado, com um livro aberto nas mãos, algum Tertuliano ou Agostinho, ou qualquer outro da mesma estatura porque o padre amava contemplar os grandes espíritos do passado, quando não encarava os mistérios do futuro. Naquele corpo mediano havia uma águia cativa. Entre as quatro paredes da casa, limitada a vista pelos arbustos e as flores do jardim, Melchior olvidava o tempo e eliminava o espaço, vivendo a vida retrospectiva ou profética, doce e misteriosa volúpia das almas solitárias. Melchior era um solitário; sem embargo das relações sociais, que ele cultivava, amava sobretudo estar separado dos homens. Nessas horas, que eram a maior parte do tempo, lia ou meditava, esquecido ou estranho a todas as coisas do seu século.
Naquela ocasião lia. Vendo assomar à porta o vulto de Estácio, Melchior fechou o rosto; contudo, recebeu-o afavelmente.
— Vim interrompê-lo, disse Estácio; mas era preciso.
Melchior depôs o livro sobre a mesa redonda que havia no meio da sala, marcando a lauda com uma velha estampa. Depois sentaram-se ao pé de uma das janelas laterais. Estácio não se atreveu a dizer logo o motivo que o levara ali; mas de sua própria hesitação deduziu Melchior qual era ele.
— Era preciso? repetiu o padre.
— Trata-se de Helena. Sei que é nosso amigo, confio em seu conselho e discrição. Como deseja a felicidade de minha família, buscou facilitar o casamento de Helena e Mendonça...
— Contando com a sua aprovação, explicou o padre.
— Hesito em dá-la.
— Por quê?
Estácio explicou que Helena não tinha inclinação ao noivo que se lhe propunha, ao que Melchior respondeu, referindo singelamente a verdade.
— É certo que o não ama ardentemente, concluiu, mas aceita-o, aprecia-o, está a meio caminho da felicidade que lhe devemos dar.
— Há uma dificuldade, padre-mestre; é que ela ama a outro.
Melchior empalideceu; o olhar escrutador, como o de um juiz, cravou-se imóvel e afiado no rosto de Estácio. A fronte severa do moço não se alterou, nem seus olhos baixaram a terra.
— Ama a outro, continuou ele; paixão violenta, mas sem esperança, e tão real quão misteriosa. Uma ou duas vezes aludiu a ela; nada mais lhe pude arrancar. Agora mesmo, quando lhe falei a tal respeito, desviou daí o sentido e a conversação. Nada mais sei; sei, porém, que ama, e casar com outro em tais circunstâncias dá dois inconvenientes igualmente graves: priva-se da possibilidade de uma união feliz com o homem que interiormente elegeu, e leva para a casa do marido um sentimento de pesar e de remorso. Parece-lhe isso tolerável?
— Não há remorso, não há pesar onde não há esperança, redargüiu o padre. Helena aceita o Mendonça por espontânea vontade; e conheço-a tanto que não acho já possível que ela recuse.
— Salvo o meu consentimento.
— É claro; mas por que o não daria?
— Porque não desanimo de descobrir a pessoa a quem Helena entregou o coração. Talvez ela ache impossível aquilo que é simplesmente difícil. Demais, não esqueçamos que Helena mal tem dezessete anos.
— Valem por vinte e cinco.
— Pode ser; mas convém não aceitar de coração leve uma condescendência ou um capricho, ou qualquer outro motivo oculto que a inspira nesta resolução.
— Que motivo seria?
— Eu sei! Talvez a suspeita de que estimássemos vê-la afastar-se de casa.
— Não a calunie; Helena tem perfeita ciência e consciência dos afetos que a rodeiam e da estima em que é tida. Suas objeções não valem nada diante da declaração que ela própria fez. Não compliquemos uma situação simples e definida.
Melchior proferiu estas palavras com voz branda, mas em tom firme; Estácio não se animou a responder logo. Voltou, porém, ao primeiro argumento; depois, aventurou uma objeção nova.
— Mendonça é bom coração, disse ele; mas não possui as qualidades que, em meu entender, devem distinguir o marido de Helena. Nunca exercerá sobre ela a influência que deve ter um marido. Entre os dois inverte-se a pirâmide. Mas isto, ao menos, se destruía uma das condições do casamento, podia conservar a felicidade doméstica. O perigo maior é outro; é vir ele a perder a estima da mulher. Nesse caso, que lhe daríamos nós a ela? Um casamento aparente e um divórcio real.
Não olhava para ele o padre, mas para fora, com uns olhos dolorosos e o gesto impaciente. Quando ele acabou, fitou-o com resolução; disse-lhe que se tratava de casar Helena, não com um marido especial, mas com o que ela própria escolhera de sua vontade livre; casamento que cumpria fazer sem demora. Era certo que, como chefe de família, Estácio podia opor-se ao casamento ou marcar-lhe condições; mas nem convinha isso ao interesse de Helena nem ao próprio interesse da família.
Estácio ergueu-se quando o padre acabou; percorreu a sala, calado e pensativo. No fim de alguns segundos, o padre foi a ele.
— Vá contar tudo à sua tia, disse; aprove sua irmã; casá-los-ei a todos no mesmo dia.
— Pois bem, disse Estácio, como concluindo um raciocínio interior; consinto em que Helena se case, mas procuremos outro marido. Mendonça, não; há de ser outro. Vou casar-me também; receberei todas as semanas; algum rapaz aparecerá que a mereça e de quem ela venha a gostar seriamente... É a minha última resolução.