História da Literatura Brasileira/IX

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Capítulo IX

Magalhães e o Romantismo

Favorecido pela autonomia de fato resultante da mudança da Corte portuguesa para cá, pelo apartamento intelectual da metrópole começado a operar com a criação de faculdades, escolas, institutos de instrução e da imprensa, e, sobretudo, pela total independência política proclamada em 1822, e efervescência cívica por ela produzida, manifestou-se no Brasil, por volta de 1840, o movimento de reforma literária chamado o Romantismo.

É aos Suspiros poéticos e saudades, coleção de poesias publicada em Paris, em 1836, por Domingos José Gonçalves de Magalhães, que ele próprio, os críticos e leitores contemporâneos atribuíram o início do Romantismo aqui. Razoavelmente se não pode discordar deste conceito. O leitor de hoje, entretanto, só com esforço e aplicação encontrará nesse livro o que plenamente o justifique. E somente da comparação com o que era aqui a poesia antes dele, lhe virá a certeza de que não é errado.

Tem um duplo caráter a inspiração desses poemas, patriótico e religoso. O patriotismo, significando com esta palavra não só o amor e devoção da terra, mas o sentimento da sua distinção de Portugal, já era, desde os mineiros, e aumentada pelos poetas difíceis de dominar que lhes sucederam, a feição particularmente notável da poesia brasileira. Era aliás apenas o desenvolvimento do nativismo nela manifestado desde o século XVII, que se acentuava na proporção do progresso do país. A religião, ou melhor a religiosidade poética de Magalhães, era o produto direto da revivescência religiosa operada na Alemanha pelo idealismo filosófico de Kant e Hegel, em França pelo sentimentalismo católico de Chateaubriand. E mais o resultado imediato da influência de Monte Alverne, o facundo professor dessa filosofia, mestre muito querido e admirado do poeta.

Em nenhum destes dois rasgos da poética de Magalhães há mais que traços, como se diria em química, do movimento de emancipação estética desde o fim do século anterior iniciado na Europa. Traços iguais encontram-se em José Bonifácio e, apenas mais apagados, em Sousa Caldas. O impressionismo poético dos Suspiros e saudades, revelado no livro por poemas inspirados das ruínas romanas, da meditação sobre a sorte dos impérios, dos grandes espetáculos da natureza ou das magníficas fábricas humanas, gerando o assombro da grandeza de Deus e dos prodígios do Cristianismo, a nostalgia curtida entre túmulos e ciprestes, a cisma dos destinos da pátria, nas paixões humanas e no nada da vida, todos temas aqui novos, já é certamente, por mais de um aspecto da inspiração e da expressão, romântico, como romântico é o subjetivismo de que procede essa impressão poética. Mas o é sem clara consciência ou intuição profunda. Se do prefácio que sob o vocábulo de «Lede» lhe pôs o poeta, páginas de pouco valor filosófico ou estético, algo pode tirar-se é que o poeta não concebia a poesia senão como um «aroma d'alma», que «deve de contínuo subir ao Senhor»; «som acorde da inteligência» «deve santificar as virtudes e amaldiçoar o vício». «O poeta, resume ele em um vazio anfiguri, empunhando a lira da Razão, cumpre-lhe vibrar as cordas eternas do Santo, do Justo e do Belo.» E logo abaixo exprobra «à maior parte dos nossos poetas» e «ao mesmo Caldas, o primeiro dos nossos líricos» «não se terem apoderado desta idéia». Essas páginas anódinas, mal pensadas e mal escritas, nada têm do ardor dos iniciadores ou neófitos da nova escola fora daqui. Delas se não deduz nenhuma idéia clara da estética do poeta e do seu conceito dessa escola. Procurou dá-la desde o aparecimento do livro, Sales Tôrres Homem, o futuro Visconde de Inhomirim, que então ainda fazia literatura, num artigo da Niterói, Revista Brasiliense, ao tempo publicada em Paris. Apenas, porém, com um pouco mais de clareza que o mesmo poeta. Sales Tôrres Homem via o Romantismo como uma reação contra o paganismo e a literatura deste derivada, assim como via que da mesma fonte cristã bebiam inspirações «não só a poesia, como as artes e a filosofia, irmã da teologia». E põe de manifesto a inspiração religiosa e patriótica do poeta, que é também a da sua crítica. Como a patriótica, a inspiração religiosa não era uma novidade na poesia brasileira. Estavam frescos os exemplos de Sousa Caldas e de Elói Otôni, além de mostras acidentais de outros poetas contemporâneos destes ou seus antecessores. Deus, sob vários vocábulos (até o de Tupá: «Tupá, ó Númen dos meus pais», de Firmino Rodrigues Silva) e perífrases, bem como a religião e seus mistérios entravam freqüentemente em tropos, imagens, figuras e em toda a poética daquela fase intermédia. Erraria quem destas manifestações inferisse um íntimo e forte sentimento religioso nesses poetas e no povo cujos órgãos eram. É um simples vezo, um cacoete literário, oriundo da sua educação, inteiramente eclesiástica. Desde que se iniciou, com o primeiro estabelecimento dos portugueses, até o começo da segunda metade do século XIX, a instrução aqui foi toda e exclusivamente dada por padres nas escolas, colégios e seminários, e ainda nas famílias. Os homens mais instruídos, os letrados que encheram as listas de sócios das academias literárias coloniais, eram em sua maioria padres ou frades, doutores em cânones, homens de igreja em suma. A forma oral e popular da literatura tinha a sua mais alta, mais freqüente e mais autorizada expressão no sermão. Desta educação recebida, na escola e fora dela, de eclesiásticos, mais do que um real sentimento religioso resultou o hábito de expressões de caráter religioso não só em a nossa conversação corrente, mas em nossos escritos, discursos, poesias. São antes tropos, frases feitas, locuções proverbiais que a expressão de verdadeiro sentimento religioso. Justamente nesta fase, os dois sentimentos, patriótico e religioso, misturavam-se aqui. Nas crises nacionais graves, como nos transes individuais, o espírito humano apavorado, revendo a origem deste sentimento, faz-se religioso. Aqui, demais, eram em grande número eclesiásticos os principais adeptos e fatores da revolução que se operava. Do púlpito, as vozes mais ou menos eloqüentes de Januário Barbosa, de S. Carlos, de Sampaio e de Monte Alverne pregavam ao mesmo tempo pela religião e pela pátria. Nas aulas, mestres, em maioria clérigos regulares ou seculares, juntavam às suas lições fundamentalmente religiosas as suas excitações patrióticas. No Rio de Janeiro, o principal centro de cultura e de vida literária do país, como o principal foco do movimento da independência nacional, Fr. Francisco de Monte Alverne fazia do púlpito ou da cátedra estrado de tribuno político, misturando constantemente, com eloqüência retumbante, havida então por sublime, a religião e a pátria. De resto, o Romantismo europeu, mesmo na Alemanha, foi em seus princípios, não só uma reação religiosa, mas até católica. Esta sua feição bastava para o tornar simpático aqui, onde o elemento eclesiástico era mentalmente preponderante.

Foi este meio e momento que produziu Magalhães. Nascido em 1811 no Rio de Janeiro, a sua infância, adolescência e juventude passaram-se na quadra mais ativa e efervescente da nossa vida política, que justamente então em verdade começava. Era menino de onze anos pela Independência, e pelo 7 de abril entrava em plena juventude. Coincidiu-lhe a idade viril com a da pátria. Se houvesse em Magalhães maior personalidade, mais caráter, quero dizer qualidades morais salientes e ativas que lhe estimulassem o engenho, o momento e o meio teriam podido fazer dele um grande poeta. Não logrou ser senão um distinto poeta, cujo sentimento se ressente das circunstâncias em que se criou, cujo estro e inspiração revêem aquele meio e momento, mas sem o relevo e a distinção que foi de moda atribuir-lhe. Não se veja, aliás, nessa atribuição apenas a mesquinhez do gosto e do senso crítico do tempo ou um efeito das camaradagens literárias do autor, senão a conseqüência dos mesmos exaltados sentimentos nacionais do momento. Nem foi ele o único a quem esta circunstância aproveitou. Ao contrário, ela influiu preponderantemente na admiração ingênua e desavisado apreço que os nossos avós da primeira geração após a Independência tiveram por todos os seus poetas e literatos. A sua vaidade patriótica, então exagerada, desvanecia-se deles, como prova da nossa capacidade mental a opor às presunções e preconceitos portugueses da nossa inferioridade. E, ou fosse porque candidamente estivessem persuadidos do mérito dos escritores patrícios, ou por despique da opinião da metrópole, lho encareciam descomedidamente. Que, por Magalhães, não era a manifestação de uma parceria ou conventículo de literatos, mas o sentimento geral e sincero mostra-o o terem dele aproveitado ainda os mais medíocres. Tal sentimento é o inspirador da crítica nimiamente laudatória e até louvaminheira da época, e que se continuaria até nós em virtude de um hábito adquirido. É também esse sentimento, ininteligente certamente, mas ao cabo respeitável, que levaria os primeiros historiadores das nossas letras, que justamente então começam a aparecer, à enumeração fastidiosa e inútil de nomes e nomes, e a juntar-lhes os mais descabidos encômios.

Antes dos Suspiros poéticos e saudades, publicara Magalhães, em 1832, um volume de Poesias, reproduzido mais tarde nas Poesias avulsas (Rio de Janeiro, Garnier, 1864). Superabunda de provas de que àquela data estava ainda Magalhães no subarcadismo reinante em Portugal e aqui em todo o primeiro quartel do XIX século e continuado até o pleno advento do Romantismo. Sob a influência desse subarcadismo ou pseudoclassicismo, como se lhe tem chamado, conservou-se Magalhães ainda nas duas décadas seguintes. E acaso se pudesse dizer que, salvo a exceção da Confederação dos Tamoios e de parte a intenção do seu teatro, nunca se lhe emancipou de todo. Como o seu amigo e êmulo Porto Alegre, era Magalhães de temperamento mais um árcade que um romântico, e mais do que àquele acontecia, lhe iam contra a índole as audácias do Romantismo, naturais e necessárias nos movimentos revolucionários como foi esse. Há poemas seus dos anos de 40, e até de 60, de todo em todo arcádicos, odes pindáricas, com os obsoletos cortes clássicos de estrofes, épodos e antiestrofes, a terminologia mitológica, os tropos e figuras da velha retórica quintilianesca, com que os pseudoclássicos de todos os países desde a Renascença ingenuamente presumiram emular com os latinos e gregos e reproduzi-los. Nessas poesias avulsas bem pouco há que, ao menos pela inspiração e estilo, eleve Magalhães acima dos poetas seus imediatos predecessores, nem que o separe deles. Apenas na composição e forma desses poemas é possível notar alguma diferença na maior objetividade dos assuntos e ainda nos títulos de diversas composições. Ao amor da pátria, à liberdade, à guerra, ao dia 25 de março, ao dia 7 de abril e quejandos, não são comuns na poesia anterior. Talvez se pudesse dizer que pronunciam o individualismo romântico assuntos e títulos como À saudade, A volta do exílio e outras inspiradas de motivos pessoais, assim como as Noites melancólicas, se o seu íntimo sentimento e estilo não fossem ainda os da poética dominantes antes do Romantismo. Compõe elogios dramáticos em verso, como o da Independência do Brasil, tal qual Tenreiro Aranha, e cartas amistosas em prosa e verso, tal qual Sousa Caldas. Escreve epicédios, liras, epístolas, copiosamente, perluxamente mas sem engenho que revigore e alente essas formas de todo gastas. Aliás o vinco dessas categorias poéticas era profundo na poesia da nossa língua, e o próprio Golçalves Dias ainda capitulou com ele quando já era de todo anacrônico e impertinente o seu emprego.

No mesmo ano em que, com 21 de idade, estreara com as Poesias (1832), partiu Magalhães para a Europa, em viagem de instrução e recreio. Para ser doutor, título aqui indispensável de recomendação, formara-se antes em medicina no Rio de Janeiro. Quatro anos depois apareciam em Paris os Suspiros poéticos e saudades.

Nesse período percorrera a França, a Bélgica, a Itália, a Suíça. Não foi grande a modificação que o contato de cousas novas e sugestivas operou na sua índole poética. Em suma os Suspiros poéticos, acolhidos e saudados como uma renovação literária, não se distinguem com tal relevo das Poesias do ano de 32, que sem mais exames possamos atribuir-lhe aquele efeito. Teve-o entretanto.

As formas poéticas eram outras, já a dos poemas soltos não sujeitos a uma nomenclatura preestabelecida. Bania o poeta, ou ao menos olvidava, as odes com as suas repartições clássicas, e o resto daquelas categorias, e quando se endereçava aos amigos não mais lhes trocava os nomes por apelidos arcádicos, como nas Poesias avulsas. O soneto, forma estrófica de que os árcades usaram e abusaram, e numerosos na primeira coleção, desaparece totalmente desta, onde não se nos depara nenhum. O Romantismo foi parco em sonetos. Há mais variedade, mais liberdade nas formas métricas e quase nenhum socorro aos recursos mitológicos ou clássicos. O próprio título da coleção indica uma subjetividade, um sentimentalismo maior, e da leitura verifica-se que é de fato maior e influi na emoção dos próprios poemas objetivos. O poeta refere e reporta a si, o que é bem romântico, todas as comoções que lhe vêm dos aspectos da natureza, da contemplação dos sucessos humanos, das meditações sobre temas e ficções abstratas. Mistura-lhes constantemente a sua nostalgia, o seu pesar, os sofrimentos que experimenta ou cisma. Da biografia conhecida de Magalhães não parece tenha sido desventurado ou tido grandes penas na vida. Ao invés, quanto dele sabemos, foi um mimoso da fortuna. Dos seus poemas, entretanto, resultaria a presunção contrária. É talvez ele quem inaugura na poesia brasileira o estilo lamuriento dos que já algures chamei de nostálgicos da desgraça, moda poética que tanto floresceu aqui. Não achou, no entanto, a sua dor, talvez por não ser verdadeiramente sentida, nenhuma expressão bastante forte para nos comover também a nós. O abstrato do seu estilo, porventura a sua característica, sob o aspecto do estilo, concorreu ainda mais para diminuir-lhe a intensidade da emoção já de si, parece, pouco profunda e o calor da expressão, apenas altieloqüente. Daí, e da prolixidade, outra feição do seu poetar, o desmaio e o banal da sua poesia, apesar dos seus propósitos filosóficos. É que ele lhe pôs não os seus íntimos sentimentos atuados pela sua filosofia, as suas emoções apenas influídas por ela, senão os próprios ditames da escola e do livro, e levou para a sua arte intenções pedagógicas. Os passos de inspiração filosófica dos seus poemas são puramente didáticos e não a expressão de uma simples emoção poética:

Não, o medo não foi quem sobre a terra os joelhos dobrou ao homem primeiro, e as mãos aos céus ergueu-lhe. Não, o medo não foi o criador da Divindade! Foi o espanto, o amor, a consciência, e a sublime efusão d'alma e sentidos, viu o homem seu Deus por toda a parte, e a sua alma exaltou-se de alegria.

Todo esse poema O Cristianismo, cujos são estes desenxabidos versos, é didático, sem que um sentimento poético, inspirado embora do religioso, se nele manifeste de maneira a tocar-nos. Noutro seu poema, muito celebrado, todo ele justificativo deste conceito, se nos deparam trechos como o seguinte, antes versos de professor de filosofia que de poeta filósofo:

Assaz, oh Deus, o homem sobre a terra revela teu poder, tua grandeza, a Razão, és tu mesmo; a liberdade, com que prendaste o homem, não, não pode dominar a Razão, que te proclama! Se muda para mim fosse a Natura, na Razão que me aclara, e não é minha, senhor, tua existência eu descobrira.

Em arte não basta não imitar para ser original. Não se descobre em Magalhães imitações, nem predileção por algum dos mestres do Romantismo. Mas também se lhe não lobriga originalidade. Se alguma tinha, prejudicou-a a sua filosofia de escola, o seu demasiado respeito das tradições literárias, e obliterou-lha o abstrato e o fluido do seu estilo poético. A diplomacia, carreira em que apenas estreado em letras entrou, com a sua gravidade protocolar, a sua artificialidade, a sua futilidade, a sua compostura de mostra, não devia ter pouco contribuído para sufocar em Magalhães, ou amesquinhá-los, os dons poéticos mais vivazes que porventura recebera na natureza. Influências de filosofia escolástica e livresca e do decoro da situação social fazem-no versejar os mais triviais lugares-comuns:

Um Deus existe, a Natureza o atesta: a voz do tempo a sua glória entoa, de seus prodígios se acumula o espaço; e esse Deus, que criou milhões de mundos, mal queira, num minuto pode ainda criar mil mundos novos.

Se a sua emoção poética, a sua inspiração, carece de profundeza, pobre é também a sua expressão. Raro se faz nalguma forma sintética, conceituosa ou intuitiva. Por via de regra se derrama em um longo fraseado, com exclamações e apóstrofes. Roma lhe não inspira senão banalidades da sua história corriqueira e dos seus mais triviais aspectos:

Roma é bela, é sublime, é um tesouro de milhões de riquezas; toda a Itália é um vasto museu de maravilhas. eis o qu'eu dizer possa; esta é a Pátria do pintor, do filósofo, do vate.

O prosaico escandaloso destes versos não é uma exceção ou uma raridade. De todo este grosso volume dos Suspiros poéticos (mais de 350 páginas) apenas vive hoje, e merece viver, o Napoleão em Waterloo, que sem ter a profundeza, a intensa emoção humana e poética do Cinque magio, de Manzoni, salva-se por um alevantado sopro épico e sem embargo de alguns desfalecimentos, uma bela forma eloqüente e comovida.

O que os contemporâneos acharam de novo no livro, e o pelo que ele os impressionou, foi, com a ausência dos fastidiosos e safados assuntos antes preferidos, mitológicos e clássicos, dos rançosos tropos da caduca retórica, a personalidade do autor. Não se revelava esta no vigor do sentimento ou no ressalto da expressão, como com Victor Hugo em França ou Garrett em Portugal, mas se apresentava nas numerosas referências a si mesmo, nas suas declarações de fé e de princípios, nas suas confissões e lástimas. Por pouco que tudo isso fosse realmente, ou por pouco que nos pareça a nós, foi então, com ajuda do sentimento nacionalista predominante, achado muito. A despeito das restrições que podemos fazer hoje, havia ainda nos Suspiros poéticos, e se não enganaram os contemporâneos, a exalação de uma alma, tocada da nova graça romântica, influída, por pouco que fosse, pelo sopro da liberdade estética que agitava a atmosfera européia e tão bem se casava com o de liberdade política que soprava em sua pátria. E às vezes exalava-se linda e sentidamente:

Castas Virgens da Grécia, que os sacros bosques habitais do Pindo! Oh Numes tão fagueiros, que o berço me embalastes com risos lisonjeiros assaz a infância minha fascinastes. Guardai os louros vossos, guardai-os, sim, qu'eu hoje os renuncio. Adeus ficções de Homero! Deixai, deixai minha alma em seus novos delírios engolfar-se, sonhar com as terras do seu pátrio Rio; só de suspiros coroar-me quero, de saudades, de ramos de cipreste; só quero suspirar, gemer só quero. E um cântico formar co'os meus suspiros.

     Assim pela aura matinal vibrado
     o Anemocórdio, o ramo pendurado,
     em cada corda geme,
     e a selva peja de harmonia estreme.

Renunciando às musas clássicas, é, entretanto, na sua língua que lhes refoge. Distingue o Magalhães dos Suspiros poéticos da geração poética precedente e do mesmo Magalhães dos versos de 32, outra feição muito do Romantismo, a soberba do poeta, o senso da nobreza da sua missão, a alevantada ambição que se lhe gera deste pressuposto. São manifestações do individualismo romântico, embora nele contidas, mais discretas do que acaso cumpria, sem os entusiasmos, transbordantes até à descompostura, de muitos dos corifeus da escola. Leiam-se o Vate, A Poesia, A Mocidade. Este poema sobretudo revê, e não sem intensidade, aquela «tragédia da ambição» que, segundo Brandes, se apresentava na alma da juventude romântica francesa. Como quer que seja, esse grosso volume de poesias teve, de 1836 a 1865, três edições, fato aqui extraordinário.

Que no fundo de Magalhães, porém, havia permanecido o árcade retardatário das Poesias de 1832, provam-no os poemas posteriores a 1836, publicados sob o título de Poesias várias, como segunda parte das Poesias avulsas, em 1864. Neles volta à poética apenas esquecida nos Suspiros. Prova-o mais, de desde o título, a sua posterior coleção de versos, Urânia, em que tudo lembra mais a poética obsoleta que a em voga.

A inspiração poética, como a forma que a realiza, ou o estilo, é função do temperamento do poeta que a condiciona. O de Magalhães era evidentemente mais consoante ao pensamento geral e à poética dos últimos cinqüenta anos, do que com as idéias e a poética do seu tempo. Pode ser que, como ele próprio insinua através de Wolf, fosse o Romantismo alemão, simplesmente como expressão do sentimento nacional, como revolta contra a servidão de todo o mundo ao classicismo francês, que lhe atuasse o estro. Em todo caso, sob uma forma comedida e reportada, revendo o seu medíocre entusiasmo pelo movimento, cujo promotor e chefe, mais por força das cousas quer por íntima persuação, foi aqui.

Se Magalhães houvera ficado nos Suspiros poéticos, talvez fosse apenas um nome a mais no comprido rol dos nossos poetas. Quaisquer que fossem os méritos dessa coleção, não eram tais que só por ela pudesse o autor tomar na literatura brasileira a importância que alcançou. Deu-lha mui justamente o volume e a variedade da sua obra, provando nele capacidades que, sem serem sublimes, eram menos comuns, aptidões literárias diversas e vocação literária incontestável.

Magalhães, e o seu exemplo influiria os seus companheiros e discípulos da primeira geração romântica, sentiu que o renovamento literário de que as circunstâncias o faziam o principal promotor, carecia de apoiar-se em um labor mental mais copioso, mais variado e mais intenso, do que até então aqui feito, e que uma literatura não pode constar somente de poesia, e menos de pequenos poemas soltos. Com esta intuição, senão inteligência clara do problema, que para ele e os jovens intelectuais seus patrícios se estabelecia, Magalhães colaborou em revistas com ensaios diretamente interessantes ao movimento literário e ao pensamento brasileiro, criou, com Martins Pena, o teatro nacional, iniciou, com Teixeira e Sousa, o romance, reatou com os Tamoios a tradição da poesia épica do Caramuru e do Uraguai, fez etnografia e história brasileiras, deu à filosofia do Brasil o seu primeiro livro que não fosse um mero compêndio, e ainda fez jornalismo político e literário, e crítica. Pela sua constância, assiduidade, dedicação às letras, que a situação social alcançada no segundo reinado, ao contrário do que foi aqui comum, nunca lhe fez abandonar, é Magalhães o primeiro em data dos nossos homens de letras, e um dos maiores pela inspiração fundamental, volume, variedade e ainda mérito da sua obra. Pode dizer-se que ele inicia, quanto é ela possível aqui, a carreira literária no Brasil, e ainda por isso é um fundador.

Os preconceitos pseudoclássicos de Magalhães e a sua índole literária, sempre mais arcádica que romântica, levaram-no no teatro à tragédia, na poesia ao poema épico. Em ambos os casos inspirou-o o espírito nacionalista da época, o propósito de fazer literatura nacional, de assunto e sentimento. Declara ele próprio o seu desejo de encetar a carreira dramática com um assunto nacional. A sua estética confessada no prefácio da tragédia de Antônio José lhe oscila entre «o rigor dos clássicos e o desalinho dos românticos». Como eclético de temperamento e de filosofia, admirador fervoroso de Cousin, Magalhães toma a posição soberba de um artista alheio e superior a escolas, emancipado. «O poeta independente, diz ele no seu magro Discurso sobre a história da literatura do Brasil, citando Schiller12, não reconhece por lei senão as inspirações de sua alma, e por soberano o seu gênio.» Gênio é uma palavra de que Magalhães abusava, metendo-a até um passo onde forçosamente se referia a si próprio. Infelizmente, gênio não tinha nenhuma, e a postura de poeta independente que alardeava não lhe calhava ao modesto engenho. Era a formação pseudoclássica do seu espírito, consoante com a sua índole literária, e o seu ecletismo filosófico que lhe impunham essa atitude. O próprio título de tragédia que deu às suas peças de teatro contrastava o parecer do Romantismo, que em nome da liberdade da arte, e da verdade humana, refugava a velha fórmula clássica.

O renovador do teatro, e simultaneamente principal fautor do Romantismo português, Garrett, não por simples imitação, mas com razões excelentes, chamou ao seu admirável Frei Luís de Sousa de «drama», não obedeceu à regra dos cinco atos e escreveu-o em prosa, porventura a mais bela que jamais se fez em nossa língua. Magalhães, que tem sobre Garrett o mérito da prioridade na introdução do teatro moderno em português, ao invés deliberadamente chamava à sua de tragédia, punha-lhe os cinco atos clássicos, embora para isso tivesse de derramar a composição, e fazia-a em verso, segundo a fórmula consagrada. Distinguem-na, porém, do mesmo passo revendo a influência do Romantismo, o assunto moderno e nacional, a familiaridade da expressão apesar do verso clássico, e o pensamento liberal que a inspira, não obstante o catolicismo do autor. Não será o Antônio José, sob o puro aspecto literário e estético, uma perfeita ou sequer notável obra d'arte, mas é sem dúvida um documento muito apreciável da capacidade do poeta, e não de todo sem força dramática ou beleza de expressão. E, o que muito importa, no conjunto da nossa literatura dramática, sobre a iniciar, não é despecienda. Sente-se ainda que é uma obra feita de inspiração. Põe-no de manifesto o contraste com o Olgíato, obra prolixa, difusa e declamatória. O Otelo é apenas a tradução em verso da incolor tragédia do pseudoclássico francês Ducis, a qual nesta dinamização já nada conserva da fortíssima emoção shakespeariana.

Como quer que seja, o impulso da literatura dramática estava dado. Em outubro do mesmo ano de 1838, Martins Pena, engenho teatral mais nativo que Magalhães, fazia representar a sua primeira comédia, O juiz de paz na roça, lidimamente brasileira, por figurar com toda a verdade um aspecto cômico da nossa vida. Seguindo o exemplo de Magalhães, todos os românticos escreverão teatro. Nenhum, porém, antes da segunda geração, com o talento, a arte e o sucesso dele.

Da impressão feita na mente portuguesa pela epopéia de Camões, resultou não só em Portugal mas no Brasil a criação épica, que é um dos mais curiosos aspectos da literatura da nossa língua. Desvaneceram-se dela por tal forma os portugueses, que é de ver o filaucioso entono com que presumiram amesquinhar a literatura francesa, reprochando-lhe a carência de uma epopéia. Ao contrário, eles as tinham em demasia. Desta opinião resultou mais o parvoinho pressuposto de que um poeta, para merecer inteira estimação, cumpria-lhe escrever um poema épico. Aos brasileiros herdaram o seu preconceito. Os nossos românticos encontravam-no sancionado pelos exemplos de Bento Teixeira, de Santa Rita Durão, de Basílio da Gama, de Cláudio da Costa e de outros poetas autores de poemas épicos mais ou menos consideráveis. No propósito deliberado de fomentar a literatura da nação estreante, Magalhães fizera poesia, fizera teatro, fizera novela, escrevera ensaios filosóficos, históricos e literários. Em 1856 coroou, segundo seria a sua mesma persuasão, a sua obra de renascença com um poema épico, em dez cantos, em endecassílabos soltos, de assunto e de inspiração nacional, a Confederação dos Tamoios.

O aparecimento desta obra foi um acontecimento literário. Contra ela escreveu José de Alencar, então estreante, uma crítica acerba, e o que é pior, freqüentemente desarrazoada. Saíram-lhe em defesa ninguém menos que Monte Alverne e o próprio Imperador D. Pedro II, que fora, às ocultas, o editor do poema. Tinha razão Magalhães quando do seu citado estudo sobre a história da nossa literatura notava que no começo daquele século «uma só idéia absorve todos os pensamentos, uma idéia até então quase desconhecida; é a idéia da pátria; ela domina tudo, e tudo se faz por ela e em seu nome. Independência, liberdade, instituições sociais, reformas políticas, todas as criações necessárias em uma nova nação, tais são os objetos que ocupam as inteligências, que atraem a atenção de todos, e os únicos que ao povo interessam». Continuava verdadeira a sua observação, e desse sentimento menos de são patriotismo que de vaidade patriótica aproveitou ele largamente, e aproveitava agora no sucesso da Confederação dos Tamoios. O que principalmente disseram do poema os seus defensores é que era uma obra de inspiração patriótica. Este errado critério de juízo de uma obra literária ou artística permaneceria nos nossos costumes, como um vício de crítica irradicável, e ainda não desapareceu de todo. O próprio Alencar, três lustros depois, defendendo obras suas dos ataques da crítica ou da opinião pública, apelava para o sentimento patriótico que lhas inspirava. Este indiscreto sentimento, principalmente, ajudou a nomeada que no seu tempo teve a Confederação dos Tamoios, como em geral favoreceu a obra dos nossos primeiros românticos, dele inspirada.

O poema de Magalhães apareceu um ano antes dos quatro cantos dos Timbiras, de Gonçalves Dias. Parece, entretanto, que os contemporâneos não repararam que a Confederação dos Tamoios, voltando ao índio estreado na poesia brasileira por Basílio da Gama e Durão, nada criava, mas apenas seguia a sua retauração nela, desde 1846 feita por Gonçalves dias nos seus Primeiros cantos. Apenas à feição que se chamou indianismo, e que foi de princípio a mais singular do nosso Romantismo, trouxe o poema de Magalhães o concurso precioso de uma obra considerável e de um homem socialmente mais considerado que Gonçalves Dias, com altas e prestigiosas amizades e relações, poeta então muito mais estimado que o seu jovem êmulo. Era ainda o momento em que um falso critério sociológico e um desvairado sentimentalismo queriam fazer do índio um elemento demasiado interessante da nossa nacionalidade. Portanto, lisonjeava o sentimento público, e lhe aproveitava da simpatia. A Confederação dos Tamoios não criou na nossa literatura o que se viria chamar «indianismo», e que se não foi todo o nosso Romantismo, foi a sua feição mais peculiar. Mas, com a autoridade literária de que então gozava o seu autor, trouxe à iniciativa de Gonçalves Dias uma cooperação apenas inferior à ação deste, se é que no momento não foi havida por superior. Em 1859, três anos depois da Confederação, apresentava Magalhães ao Instituto histórico uma extensa memória sobre Os indígenas do Brasil perante a história, que poderia ser como o comentário perpétuo de seu poema. O fim declarado desse trabalho é reabilitar o elemento indígena. Não era outro o íntimo pensamento do indianismo.

Magalhães foi principalmente e sobretudo poeta. Por sua obra de poeta influiu poderosamente na implantação do Romantismo aqui, e, portanto, na fundação da literatura que desde então se começa a distinguir da portuguesa. Mas escreveu também prosa, ensaios diversos e tratados filosóficos. Como prosador é seguramente, não obstante alguns defeitos nativos (como o já ridiculamente famoso da colocação dos pronomes), um dos mais vernáculos, pela propriedade do vocabulário, sempre nele castiço, e de parte os legítimos sacrifícios ao seu falar brasileiro, pela correção sintática do fraseado. É mais simples, mais natural, menos rebuscado ou trabalhado o seu estilo do que era o dos escritores que aqui o precederam, e ainda da maior parte dos que se lhe seguiram. Sob o aspecto da linguagem e estilo são escritos estimáveis, e que se deixam ainda ler sem dificuldade, antes com aprazimento, os seus opúsculos citados. A sua Biografia do padre Mestre Fr. Francisco de Monte Alverne, e páginas suas de literatura amena como O pavão, podem passar por exemplos de boa prosa, como não era vulgar na época.