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História da Literatura Brasileira/VIII

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Capítulo VIII

O Romantismo e a primeira geração romântica

Tivesse o príncipe regente de Portugal, logo depois rei D. João VI, o propósito de preparar o Brasil para a independência, não haveria porventura procedido tão atilada e eficazmente. Por uma série de medidas econômicas e políticas, mal chegado ao Brasil havia ele começado a reforma completa do velho regime colonial, naquilo justamente que mais devia concorrer para despertar nos brasileiros o sentimento da sua personalidade e importância e lhes acoroçoar veleidades porventura latentes de autonomia e emancipação. A autonomia nos dera de fato a transplantação da realeza para cá, a elevação do Brasil a reino e a ereção do Rio de Janeiro em capital da monarquia portuguesa. A emancipação surgiria do conflito dessa autonomia com a insensata contrariedade que lhe criou a reação recolonizadora portuguesa.

Da geração que testemunhou, acompanhou e até fomentou ou promoveu os sucessos da nossa independência política, surgiu um seleto grupo de homens de estudo e letras que lhe completaram o feito insigne, dando à recente nação o abono indispensável da sua capacidade de cultura. É esse grupo que, sob o aspecto literário, chamo a primeira geração romântica, quero dizer os escritores que, influenciados pelo Romantismo europeu e seguindo-lhe aqui os ditames, apareceram de 1836 em diante e cuja atividade se dilatou por um quarto de século.

Além de Monte Alverne (1784-1858), que foi de algum modo um precursor do movimento como o mais escutado preceptor filosófico dos seus principais fautores, e de Magalhães, o seu iniciador, mormente constituem essa geração intelectual, Porto Alegre (1806-1879), amigo e êmulo de Magalhães; Teixeira e Sousa (1812-1861); Pereira da Silva (1817-1898); Varnhagen (1819-1882); Norberto da Silva (1820-1891) e, o maior deles, Gonçalves Dias (1823-1864). Outros nomes podiam alongar esta lista, nenhum, porém, com a significação e importância de quaisquer destes.

Distingue-se esta geração pela versatilidade dos talentos, variedade da obra e propósito patriótico da sua atividade mental. Quase todos eles, senão todos, são poetas, dramaturgos, novelistas, eruditos, críticos, publicistas, e Porto Alegre será demais pintor e arquiteto. No seu ardor pelos créditos intelectuais de sua pátria, parecia quererem completa a sua literatura; que se não limitasse, como até então, quase exclusivamente à poesia.

Quando todos eles se faziam homens, o cônego Januário da Cunha Barbosa, que com grandes créditos de literato e orador sagrado vinha da geração anterior, zeloso dos interesses mentais da novel pátria, fundou com outros letrados e homens de boa vontade o Instituto histórico, geográfico e etnográfico brasileiro. Com a publicação do Parnaso Brasileiro (1829), foi este o melhor serviço prestado por Januário Barbosa, não só às nossas letras, mas à nossa cultura. Teve o Instituto histórico, em verdade, o papel de uma Academia que, sem restrições de especialidades, se abrisse a todos as capacidades nacionais e a todos as lucubrações por pouco que interessassem ao Brasil. E assim, de propósito ou não, deu ao movimento espiritual que se aqui operava uma base racional no estudo da história, da geografia e da etnografia do país, compreendidas todas largamente. Os principais românticos foram todos seus sócios conspícuos e colaboradores da Revista que desde 1839 começou o Instituto histórico a publicar trimensalmente. A todos os literatos brasileiros do tempo serviu esta instituição de traço de união e confraternidade literária e de estímulo.

Além de patriótica, ostensivamente patriótica, a primeira geração romântica é religiosa e moralizante. Estas feições fazem que seja triste, como aliás será a segunda. Somente a tristeza desta é a do ceticismo, do desalento e fastio da vida, segundo Byron, Musset, Espronceda e quejandos mestres seus. A melancolia de Magalhães e seus parceiros é a tristeza de que penetrou a alma humana o sombrio catolicismo medieval. Na alma portuguesa, donde deriva a nossa, aumentou-a a forçada beataria popular, sob o terror da Inquisição e o jugo, acaso pior, do jesuitismo. Rematava-a o descontentamento criado nesses brasileiros pela desconformidade entre as suas ambições intelectuais e o meio. Já em prosa, já em verso, todos eles lastimam-se da pouca estima e mesquinha recompensa do gênio que, parece, acreditavam ter e do desapreço do seu trabalho literário. Não tinha aliás razão. Era inconsiderado pretender que um povo em suma inculto, e de mais a mais ocupado com a questão política, a organização da Monarquia, a manutenção da ordem, de 1817 a 1848 alterada por todo o país, cuidasse de seus poetas e literatos. Não é, todavia, exato que, apesar disso, os descurasse por completo. O povo amava esses seus patrícios talentosos e sabidos, revia-se gostosamente neles, acatava desvanecido os louvores que mereciam aos que acreditava mais capazes de os apreciar. Supria-lhe esta capacidade, o sentimento patriótico restante dos tempos ainda próximos da Independência, e a ingênua vaidade nacional com ela nascida. O imperador começou então o seu mecenato, nem sempre esclarecido, mas sempre cordial, em favor dessa geração que lhe vinha ilustrar o reinado. D. Pedro II, que por tantos anos devia ser a única opinião pública que jamais houve no Brasil, iniciou por esse tempo a sua ação, ao cabo utilíssima, na vida intelectual da nação. Prezando-se de literato e douto, apreciou pelo seu povo incapaz de fazê-lo, e acoroçoou e premiou esses seus representantes intelectuais. Se não todos, a maioria da primeira geração romântica, com muitos outros depois dela, em todo o reinado, mereceram-lhe decidido patrocínio. Revestia este não só a forma de sua amizade pessoal, que aliás nunca chegava ao valimento, porém a mais concreta e prestadia de empregos, comissões, honrarias. E, louvados sejam, não lhe foram ingratos. As principais obras em todos os gêneros dessa época são-lhe dedicadas, em termos que revêem o reconhecimento da munificência imperial. Todos eles foram fervorosos e sinceros monarquistas, menos aliás por amor do princípio que do monarca. E se não pode malsinar-lhes ou sequer suspeitar-lhes a dedicação, sabendo-se quão escrupuloso era o imperante nos seus favores e quão parco era deles. Mas a vaidade, infalível estigma profissional, destes literatos, se não contentava desta alta estima; quisera mais, quisera o impossível, que, como nas principais nações literárias da Europa, dessem às letras aqui consideração, glória e fortuna. Foi esse, aliás, um dos rasgos do Romantismo, o exagero da vaidade nos homens de letras e artistas, revendo a intensidade do descomedido individualismo da escola. Os dessa geração, porém, ainda tiveram pudor de não aludir sequer à feição material das suas ambições, pudor que, passado o Romantismo, desapareceria de todo, principalmente depois da emigração de literatos estrangeiros, industriais das letras, e da invasão do jornalismo pela literatura ou da literatura pelo jornalismo. A desconformidade entre aqueles nossos primeiros homens de letras e o meio, essa, porém, era real, continuou e acaso tem aumentado com o tempo. E basta para, com a mofineza sentimental que, sobre ser muito nossa, era também da época, explicar o matiz de tristeza da primeira geração romântica, no tom geral do seu entusiasmo político literário. Aumentando na segunda geração romântica, nunca mais desapareceria esse matiz das nossas letras, sob este aspecto expressão exata do nosso humor nacional.

Ao contrário do que até então se passava, a educação literária da maioria dos escritores dessa geração se fizera aqui mesmo. Por desgosto da metrópole, entraram a abandonar-lhe a escola, até aí assídua e submissamente freqüentada. Falavam, pois, a língua que aqui se falava, e naturalmente a escreviam como a falavam, sem mais arremedo do casticismo reinol. A que escreveram, e não é por ventura este um dos seus somenos méritos do ponto de vista da nossa evolução geral, mérito que avultará quando de todo nos emanciparmos literariamente de Portugal, não é mais a que aqui antes deles se escrevia. É outro o boleio da frase, a construção mais direta, a inversão menos freqüente. Usam mais comumente dos tempos compostos dos verbos, à francesa ou à italiana. Refogem ao hábito clássico português de nas suas orações de gerúndio começá-las por ele. Colocam os pronomes oblíquos segundo lhes pede o falar do país e não conforme a prosódia portuguesa, que entra então a ser aqui motivo de chufa e troça. Usam de extrema e até abusiva liberdade no colocá-los. Dão maior extensão a certas preposições. A forma do modo finito seguido de um infinitivo com preposição à maneira portuguesa, preferem a do infinito seguido de gerúndio. E propositadamente, ou propositalmente, como escrevem segundo aqui soa, empregam vocábulos de origem americana ou africana, já perfilhados pelo povo. Aceitam as deturpações ou modificações de sentido das formas castiças aqui popularmente operadas, e começam a dar foros de literários a todos esses vocábulos ou dizeres, de fato lidimamente brasileiros e para nós vernáculos, por serem de cunho do povo que aqui se constituía em nação distinta e independente. São, entretanto, parcos de estrangeirismos, quer de vocabulário, quer de sintaxe. O fundo da língua conserva-se neles mais puro, embora sem afetação de casticismo. Sua linguagem e estilo são por via de regra nativos, infelizmente até sem as qualidades essenciais à boa composição literária. Sempre crescendo e avultando segue esta maneira, que começou com eles, até depois da segunda geração romântica. Só na segunda fase do que chamamos modernismo, com a introdução dos estudos filológicos segundo o seu novo conceito, e da sua reação sobre o da língua nacional, consoante os mesmos programas do ensino oficial entraram a chamar à nossa, inicia-se aqui um movimento em contrário àquela indiferença pelo apuro desta. Começa-se então a fazer timbre de escrever bem segundo os ditames gramaticais e os modelos chamados clássicos. A mesma crítica, que até aí descarava este relevante aspecto da obra literária, principia a prestar-lhe atenção e a notá-lo, ainda quando ela própria o desatende. Não sei quem ao cabo tem razão. Foi mais firme já o meu parecer da necessidade de conservarmos o português castiço estreme quanto possível nas modificações que o seu novo habitáculo americano lhe impõe. Começo a convencer-me da impossibilidade de tal propósito. Não o poderíamos realizar senão artificialmente como uma reação erudita, sem apoio nas razões íntimas da mentalidade nacional e com sacrifício da nossa espontaneidade e originalidade. Nem teria tal reação probabilidade de definitivamente vingar numa população que será amanhã de muitos milhões, originariamente de várias e diversas línguas. Não se pode admitir que a gente brasileira se submeta a uma disciplina lingüística de todo oposta aos instintos profundos das suas necessidades de expressão determinadas pela variedade de seus falares ancestrais e pelas exigências imediatas da sua situação social e moral.

Apenas a literatura não deve esquecer que ela é, sobre o aspecto da expressão, uma força conservadora. Sem oferecer resistência caprichosa e desarrazoada à natural evolução da língua que lhe serve de instrumento, cumpre-lhe não se lhe submeter enquanto os seus resultados não tiverem a generalidade de fatos lingüísticos indisputáveis. A intromissão inoportuna da literatura nessa evolução, sobretudo para lhe aceitar indiscretamente todas as novidades inventadas com pretexto dela, não pode senão prejudicá-la naquilo que justamente é importante da sua existência, a sua faculdade de expressão. Se ela, porém, por outro lado, se ativesse rigorosamente ao casticismo português, no genuíno sentido deste vocábulo, o brasileiro acabaria por ficar alheio aos seus escritores e estes aos seus patrícios, por motivo da descorrelação entre a língua falada por uns e a escrita por outros.

E é talvez esta a mais íntima causa da falta de simpatia -agora talvez maior do que dantes- entre os nossos escritores e o nosso povo. Nesta sociedade descomedidamente igualitária, como talvez outra não exista, o escritor e o público vivem inteiramente alheados um do outro pelo pensamento e pela expressão. A reação vernaculista dos maranhenses durante justamente esta primeira fase romântica, não obstante os preclaros modelos de Sotero dos Reis, João Lisboa, Odorico Mendes e Gonçalves Dias, ficou estéril. Destes nomes, o único que sobrevive na memória do povo é o de Gonçalves Dias, o poeta dos versos simples e populares da Canção do Exílio.

Também o segredo da popularidade persistente dos poetas da segunda geração romântica não está somente em que eles foram os de mais rico e sincero sentimento que jamais tivemos, mas em que o exprimiram numa língua e forma poética ao alcance de todos, sem artifício de métrica nem arrebiques de estilo. O mesmo acontece com os principais romancistas dessa fase. Macedo e Alencar, como o documentam os registros da Biblioteca Nacional e vos informarão os livreiros e mais que tudo o provam as suas constantes reimpressões, continuam a ter mais leitores do que os romancistas de hoje, apesar de não terem por si os reclamos do noticiário camaradeiro e das parcerias de elogio mútuo.

Os nossos escritores da primeira geração romântica, se não menos artistas, são também em suma menos artificiosos que os do mesmo período em Portugal. A sua arte literária, quando a têm, é ingênua e canhestra, o que lhes dá ao estilo algo, não de todo desagradável, dos primitivos. Com exceção do pomposo Porto Alegre e de certos poetas menores, como Norberto em algumas das sua infelizes tentativas épicas e dramáticas, os melhores deles escrevem se não singelamente, o que parece incompatível com o nosso gênio literário, todavia em estilo menos torcido e enfático que o geral da ex-metrópole, e do qual não escaparam no mesmo período os melhores dali, porventura com a única exceção relevante de Garrett. Esta relativa simplicidade é uma das virtudes mais estimáveis dos bons poetas da segunda geração romântica. Pecam, entretanto, os de ambas estas gerações pelo excesso de sentimentalismo e de romanesco que, principalmente na ficção em prosa, roça neles pela pieguice e pelo amaneirado do pensamento e da expressão. Não tem ainda as preocupações de forma que chamamos de artísticas. E não eram desses artistas natos da palavra escrita que, sem intenção nem rebusca, acham a forma excelente. Apenas Gonçalves Dias na maior parte da sua obra, e Porto Alegre no seu tão mal julgado quanto desconhecido Colombo, e alguma vez na sua prosa característica, a encontraram. Porto Alegre, cujo bom gosto era menos apurado que o de Gonçalves Dias, prejudicou-se no entanto pela sua inclinação bárbara, mas muito da índole literária nacional, ao pomposo e reluzente do estilo e ao rebuscado do pensamento e da forma.