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História da Literatura Brasileira/VII

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Capítulo VII

Os predecessores do Romantismo


I. Os poetas Verdadeiramente é do século XIX que podemos datar a existência de uma literatura brasileira, tanto quanto pode existir literatura sem língua própria.

Se a Independência do Brasil oficialmente começa em 1822, de fato a sua autonomia, e até hegemonia no sistema político português, data de 1808, quando, emigrando para cá, a dinastia portuguesa, na realidade, fez do Rio de Janeiro a capital da monarquia. Virtualmente o Império do Brasil estava criado desde que o príncipe regente, D. João, realizando um velho, intermitente mas nunca desvanecido pensamento político português, proclamou que o seu protesto contra a violência napoleônica se erguia do seio de um novo império.

Ardores e alentos novos criou então o povo que há três séculos se vinha aqui formando e cuja consciência nacional, desde o século XVII, com as guerras holandesas, entrara a despontar. O fato do Ipiranga, precedido da singular situação resultante da estada aqui da família real e conseqüente transformação da colônia em reino unido ao de Portugal, perfizera essa consciência e lhe influíra a vontade de existir com a vida distinta que faz as nações. Em tais momentos, como em todos os partos, são infalíveis as roturas. Deu-se aqui o rompimento entre brasileiros e portugueses, pode dizer-se o levante de uns contra outros, fenômeno necessário da separação dos dois povos. Para completá-la devia esse sentimento forçosamente interessar a todos aos aspectos da vida do brasileiro, até aí comum com a do português, e as várias feições do seu pensamento e sentimento. Não foi maior a rotura porque o fato político que a produziu foi antes uma transação que uma revolução e por se haver passado justamente no momento em que a metrópole se afeiçoava ao mesmo modelo político adotado pela colônia. Em todo caso, foi suficiente para diferençar desde então como entidades políticas distintas portugueses e brasileiros.

Exageravam estes a ruindade da administração colonial, aumentavam-lhe com as mais deslavadas hipérboles de um patriotismo exaltado os vexames e as incapacidades. Aos seus olhos, com a importância de metrópole, perdia também Portugal o prestígio moral e mental, de criador, educador e guia dessa sociedade que aqui se emancipava.

Era precisamente a hora em que na Europa, na verdadeira Europa, em Alemanha, em Inglaterra, em França, manifestavam-se claramente já os sinais da renovação literária que iria interessar todos os aspectos do pensamento e ainda do sentimento europeu: o Romantismo. Quaisquer que hajam sido os seus motivos e característicos, sejam quais forem as definições que comporte (e inúmeras lhe tem sido dadas), o Romantismo foi sobretudo um movimento de liberdade espiritual, primeiro, se lhe remontarmos às últimas origens, filosófica, literária e artística depois, e ainda social e política. Em arte e literatura seu objetivo foi fazer algo diferente do passado e do existente, e até contra ambos. Excedeu o seu propósito, e em todos os ramos de atividade mental, até nas ciências, foi uma reação contra o espírito clássico, que, embora desnaturado, ainda dominava em todos.

Iniciou-se na Alemanha pelos últimos vinte e cinco anos do século XVIII. Reinava então em Portugal o pseudo-classicismo da Arcádia. No Brasil cantavam os poetas mineiros, alguns deles românticos por antecipação, mas em suma era o mesmo Arcadismo o tom dominante nas letras. Da Alemanha irradiou por Inglaterra e França. Nestes países as suas primeiras manifestações consideráveis são já do princípio do século XIX. Só quase vinte e cinco anos mais tarde começaria a sua influência a se fazer sentir em Portugal, onde as suas ainda indecisas manifestações datam exatamente do princípio do segundo quartel do século. Com a sua terceira década entra ele no Brasil. Não foi, entretanto, de Portugal que o recebemos, senão de França, que ia ser e permanecer a principal fornecedora de idéias, de sentimentos e até de estilo à nossa literatura.

Mas entre o fim do renascimento poético aqui operado (dentro aliás só de si mesmo e sem irradiação notável) pela plêiade mineira e as primeiras manifestações do nosso Romantismo, isto é, entre o último decênio do século XVIII e o terceiro do XIX, dá-se na poesia brasileira uma paralisação do movimento que parecia prenunciar-lhe a autonomia. Pode mesmo dizer-se que se dá um regresso ao estafado Arcadismo português. Nunca tivera o Brasil tantos poetas, se a esses versejadores se pode atribuir o epíteto. Relativamente aos progressos que já fizéramos, nunca os tivera tão ruins, tão insípidos e incolores.

Nesta fase arrolam os historiadores ou simples noticiadores da nossa literatura mais de vinte. Na vã presunção de lhes emprestarem valor, pois não é crível que efetivamente lho encontrem, sobre nomeá-los adjetivam-nos com qualificativos que a leitura dos seus poemas não só desabona mas prejudica.

São, calando ainda bastantes nomes, e na ordem cronológica, Francisco de Melo Franco (1757-1823), Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), Silvério Ribeiro de Carvalho (1746-1843?), José Elói Otôni (1764-1851), Fr. Francisco de S. Carlos (1768-1829), Francisco Vilela Barbosa (marquês de Paranaguá) (1769-1846), Luís Paulino Pinto da França (1771-1824), Paulo José de Melo Azevedo e Brito ( 1779-1848), Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), Domingos Borges de Barros (visconde de Pedra Branca) (1780-1855), João Gualberto Ferreira dos Santos Reis (1787-185?), Manoel Alves Branco (visconde de Caravelas) (1797-1854), Joaquim José da Silva (?), Ladislau dos Santos Titara (1802-1861), Álvaro Teixeira de Macedo (1807-1849?), Antônio Augusto de Queiroga (1812-1855), Francisco Bernardino Ribeiro (1815-1837), Joaquim José Lisboa (?).

A máxima parte destes compridos nomes não despertará na memória do leitor, ainda ilustrado, reminiscência literária alguma. É como se lhe citassem poetas chineses. Os que não morreram de todo, de morte aliás merecidíssima, vivem apenas numa vaga e indefinida tradição, mantida pelos professores de literatura. Algum raro amador das letras pátrias, mais por curiosidade que por gozo literário, lerá ainda, ou melhor terá lido, José Bonifácio, Elói Otôni, Fr. Francisco de S. Carlos, Sousa Caldas, talvez Pedra Branca. Os outros nem mais essa curiosidade despertam. Tais como Pinto de França e algum outro, que, idos moços e até crianças para Portugal, lá se criaram, educaram e deixaram ficar, são de educação e sentimento portugueses, e português é o seu estro e estilo poético. Custa a reconhecer nesta lista um verdadeiro poeta. Na grande maioria, são apenas versejadores de mais ou menos engenho e arte, os melhores com a erudição poética e literária comum aos doutos do tempo, com a qual, a custo e raro, conseguem realçar a penúria do seu estro, sem disfarçar entretanto a trivialidade do seu estilo poético, repetição insulsa e fraco arremedo do da metrópole, então igualmente miserável. Já entrado o século XIX, versejavam copiosamente odes, sonetos, epitalâmios, cantatas, glosas, liras, epigramas, ditirambos, metamorfoses, epístolas, enfim toda a farta e extravagante nomenclatura dos séculos passados. Versejavam sem inspiração nem sentimento, artificialmente, por ofício ou presunção. Repetiam sem o talento de os renovar os tropos e imagens da mitologia clássica e as formas estafadas de uma poética anacrônica e obsoleta. Natividade Saldanha, com a falsa eloqüência que de bom grado confundimos com poesia, celebra os feitos e vultos patrícios com reminiscência, epítetos, figuras e apelidos clássicos e pagão. É «a fatigante ênfase do ditirambo histórico», de que fala Morley, aqui vulgaríssima. A fecundidade poética de alguns é assombrosa. Ladislau Titara, de 1827 a 1852, publicou oito tomos em formato de 8.º de Obras poéticas, somando 1819 páginas de versos, e o seu irmão Gualberto, em seis anos, quatro tomos do mesmo formato. Que exemplo a futuros escritores!

À imitação do seu Horácio, que sabem talvez de cor, mas cujo íntimo sentimento mal alcançam, e de cujo talento andam afastadíssimos, e seguindo velhos hábitos arraigados dos poetas portugueses, são-lhes motivos de inspiração fatos e datas de pessoas gradas, a cuja benevolência armam com lisonjas metrificadas, elogios poéticos, epitalâmios por casamentos, nascimentos e quejandos.

Sousa Caldas é certamente o melhor deles todos, o mais vigoroso lírico dos predecessores imediatos do Romantismo. Ele fez um trabalho considerável de erudito e poeta traduzindo em vernáculo os Salmos atribuídos a Davi. Algumas dessas traduções não são em verdade indignas dos louvores que é de praxe fazer-lhes. Não teria, porém, idéia muito exata da poesia hebraica quem por elas houvesse de julgá-la. Mas, ainda excelente, perderia o lavor do nosso patrício muito do seu valor pelo mesmo desinteresse com que hoje a maioria dos leitores se dispensam de ler traduções dos poemas de pura invenção religiosa e de uso devoto. Conquanto se digam católicos, não é certamente neles que procuram nem acham a emoção estética de que acaso sintam necessidade. Os Salmos de Davi, traduzidos pelo padre Sousa Caldas para língua falada por muitos milhões de católicos, ficaram na primeira e única edição. Publicados há noventa anos, não são ainda um livro raro. Escreveu também Sousa Caldas Poesias sacras e profanas, impressas no tomo II das Obras poéticas. Padecem as primeiras do mesmo percalço dos Salmos, pois não é mais, se alguma vez foi, sob as formas e maneiras da poesia profana, odes, cantatas e outras tais que buscamos a edificação religiosa ou a satisfação estética para a nossa piedade. De resto, em nossa gente o sentimento religioso não foi jamais tal que comportasse a espécie de deleite proveniente da leitura e meditação dos poemas bíblicos versificados em vulgar. Mais devotos que religiosos, preferimos sempre as aparências e exteriorizações da religião sob a forma oral dos sermões ou visual e sensitiva das pompas cultuais.

Como poeta profano, Sousa Caldas se não extrema dos portugueses seus contemporâneos, se bem valha mais que qualquer dos seus patrícios coevos. E, salvo os mineiros, mais que todos os poetas seus antecessores. É mais correto e mais rico versejador que estes, e sobretudo mais vernáculo. Sob o aspecto da língua pode, entre os brasileiros, passar por distinto. As suas produções originais consideradas melhores são a cantata Pigmalião e a ode Ao Homem Selvagem. Àquela infelizmente se depara na cantata Dido, de Garção, um desfavorável confronto. A ode Ao homem selvagem, essa é realmente formoso transunto das idéias de Rousseau, em sustentação das quais foi escrita. Os seis sonetos que nos deixou Sousa Caldas, sem distinção alguma, antes lhe desabonam que lhe acreditam o estro.

À imitação das Lettres Persannes, de Montesquieu, Sousa Caldas escrevera uma obra em prosa de filosofia prática e moral em forma epistolar. Dela apenas nos restam duas cartas que não bastam para autorizar um juízo do seu trabalho. Revela-se contudo aí escritor fácil, castiço e, para o seu tempo, meio e estado, espírito liberal e tolerante. Versam justamente essas duas cartas sobre a atitude da Igreja perante os escritos contrários à sua moral e dogmas, o que o leva a considerar o tema geral geral da livre expressão do pensamento. Fá-lo Sousa Caldas com aquele latitudinarismo que foi sempre a marca do ultramontanismo franco-italiano10.

Não pode divergir muito o juízo que devemos fazer de José Elói Otôni, que, como Sousa Caldas, foi poeta sacro e profano. Mas o foi com menos talento, e principalmente, com menos vigor. As suas traduções dos pseudos Provérbios de Salomão e do Livro de Jó, feitos do latim da Vulgata, são antes paráfrases que traduções. Não há achar-lhes o sabor que do original parecem guardar algumas traduções diretamente feitas em prosa ou verso. As poesias originais de Otôni não destoam da comum mediocridade da poesia sua contemporânea11. José Elói Otôni nasceu na cidade do Serro, em Minas Gerais, em 1764. Depois dos primeiros estudos em sua terra, esteve na Itália e em Portugal, onde ainda voltou duas vezes em outras épocas de sua vida, vindo a falecer no Rio de Janeiro, num emprego público subalterno, em 1851.

Um frade franciscano fluminense, Fr. Francisco de S. Carlos, compôs pela mesma época, «em honra da Santa Virgem», segundo reza o título, um poema, A Assunção, que é uma das mais insulsas e aborridas produções da nossa poesia. Em oito estirados cantos de versos decassílabos, rimados uniformemente em parelha, monotonia que é aumentada pela pobreza das rimas e geral mesquinheza da forma, descreve o poeta a Assunção da Virgem desde a ressurreição do seu túmulo, em Éfeso, até à sua chegada ao Paraíso, através de várias peripécias maravilhosas por ele imaginadas. O poema é do princípio ao fim prosaico, sem se lhe poder tirar algum episódio ou trecho realmente belo, a inventiva pobre, balda de novidades ou grandeza, a língua mesquinha e vulgar. Entretanto críticos houve que o acharam digno de rivalizar com o Paraíso Perdido, de Milton, e a Messíada, de Klopstock, e não duvidaram de qualificá-lo de «poema eminentemente nacional» e de considerá-lo como «um dos monumentos que nos legou a geração passada (do princípio do século XIX) para a formação da nossa literatura». Chamar-lhe «poema eminentemente nacional», porque introduziu nas suas descrições frutas, plantas e animais do Brasil e alguns aspectos da natureza brasileira, é equivocar-se sobre o sentido da expressão. O vezo de cantar as cousas da terra, de nomeá-las, citá-las ou descrevê-las, às vezes comovidamente, mas também às vezes sem emoção alguma, era velho na nossa poesia. Vinha, conforme mostramos, dos fins do século XVI; praticou-o Durão no Caramuru, cultivaram-no alguns dos poetas mineiros e outros. Tal sestro revia o despontar do sentimento nativista e o seu sucessivo desenvolvimento. Ao tempo de Fr. Francisco de S. Carlos era já tão comum o emprego desse recurso poético, que nada tinha de particularmente notável. Tanto mais que o usou o franciscano poeta sem a menor distinção. Apenas continuava uma tradição criada, da qual há exemplos noutros poetas seus contemporâneos deste infausto período das nossas letras, como na Discrição curiosa, do ruim poeta mineiro Joaquim José Lisboa. E como a continuava sem a relevar por quaisquer virtudes de fundo ou de forma, fazendo apenas nomenclaturas áridas, não sabendo tirar desse expediente nenhum partido estético, não lhe pode servir isso de recomendação ao seu insípido poema. O que era nos seus predecessores novidade interessante, reveladora de um sentimento, uma emoção, uma inspiração nova na poesia portuguesa, era nele simples repetição, não levantada por algum talento superior de expressão.

Destas duas dúzias de poetas menores, o único, além de Sousa Caldas, que porventura se destaca por uma inspiração mais sincera e dons de expressão que o extremam, é José Bonifácio de Andrada e Silva, o José Bonifácio, principal cooperador da nossa independência nacional. As circunstâncias que o fizeram e em que foi poeta, lhe explicam o destaque.

José Bonifácio nasceu em Santos, São Paulo, aos 13 de junho de 1763. Feitos os seus primeiros estudos no Brasil e completos os seus dezoito anos, passou-se a Portugal, e ali, em Coimbra, se formou em filosofia e leis. Fundada em 1774, pelo duque de Lafões, a Academia Real das Ciências de Lisboa, foi, com o patrocínio daquele magnate, seu membro e depois secretário. Ao mesmo apoio deveu a comissão especial de estudar nos principais centros científicos europeus ciências naturais e metalurgia. Dez anos empregou nestes estudos, percorrendo os principais países da Europa, onde os podia com mais proveito fazer. De volta a Portugal, foi nomeado intendente geral das minas, com a graduação de desembargador, recebendo também o grau de doutor em ciências naturais e o encargo de inaugurar na Universidade de Coimbra uma cadeira de metalurgia e geognosia, a qual regeu até à invasão francesa de 1807. Criado, por motivo desta invasão, um batalhão acadêmico, foi dele José Bonifácio major e logo depois tenente-coronel. Mais tarde serviu o cargo de intendente de polícia do Porto. Em 1819 retirou-se, com licença, para o Brasil. Vivia em S. Paulo, sua província natal, quando sobrevieram os acontecimentos de 1820 e 1821 e começaram no Rio de Janeiro os primeiros movimentos da Independência. Estes despertaram-lhe o sentimento nacional, acaso adormecido por cerca de quarenta anos de existência portuguesa. Fez-se parte conspícua nesse movimento, do qual foi, com D. Pedro, o principal protagonista. Como ministro e conselheiro muito ouvido do recém fundado império e deputado à sua assembléia constituinte, teve um grande papel nessa primeira fase da construção do país sob o novo regime, sendo, pelos seus talentos e capacidades, a primeira figura dela. A excessiva energia que, como primeiro-ministro, empregou contra os seus oposicionistas, ia comprometendo a causa que tão bem servira. Em todo caso motivou a excitação dos ânimos que produziu os sucessos donde resultou a demissão de José Bonifácio e o seu exílio.

Era José Bonifácio uma natureza pessoalíssima, de índole autoritária e violenta. Como todos os políticos do seu temperamento, tanto era despótico no poder como abominava o despotismo em não sendo ele o déspota. Nimiamente orgulhoso e demasiado convencido da sua superioridade, aliás real, no meio político donde o expulsavam, doeu-lhe profundamente o exílio a que o constrangiam os seus adversários, desterrando-o da pátria cuja independência, com mais presunção que razão, exclusivamente se atribuía. Encheu-se de despeito e raiva contra o soberano, a quem com mau gosto reprochou de ingrato, contra os políticos seus adversários, e até contra a pátria. Foi neste estado d'alma de homem que se crê indispensável e a quem dispensam, de homem soberbo de si e humilhado pelos mesmos a quem se julgava proeminente e tinha por seus devedores, que repontou em José Bonifácio, aos sessenta e dois anos, o estro poético de que já dera amostras quando estabelecido em Portugal. Facit indignatio versum. Em Bordéus, em cujos arredores se fixara durante o exílio, publicou o volume das Poesias avulsas, de Américo Elísio, em 1825. A sua forte e não comum cultura literária e científica, e grandes experiências da vida, fortificaram-lhe o engenho poético. A paixão real fez o resto. Era um apaixonado e estava apaixonado. Aquela deu-lhe aos versos, não obstante o ressaibo arcádico que se lhe descobre no estilo, no feitio e até na alcunha com que se disfarçou o autor, uma vida, uma emoção, uma sinceridade como se não encontra em nenhum dos poetas seus patrícios e contemporâneos, e que fazem dele acaso o único que tem personalidade e que, por isso, possamos ouvir ainda hoje. Ao contrário de toda a poesia do tempo, a sua, ao menos a inspirada da sua situação atual, é pessoal, vibrante das suas paixões políticas e patrióticas e dos seus mesmos sentimentos egoístas, do seu orgulho, da sua soberba, da sua vaidade malferida, e que ele não procura dissimular. Soam nelas queixas, reproches, imprecações e brados pela liberdade que ele próprio, de essência despótico, recusara aos seus antagonistas quando no poder. E mais, sem embargo de queixas e exprobrações que chegam à negação da pátria,

Morrerei no desterro em terra estranha, que no Brasil só vis escravos medram: para mim o Brasil não é mais pátria, pois faltou à justiça.

Vivíssimo amor dela e fervorosos anseios por ela. Ainda quando, por distrair-se das suas angústias de repúblico despeitado, recorre aos prazeres reais ou imaginários de que Baco era o patrono clássico, o pensamento saudoso e amargurado se lhe volve à pátria distante:

Em bródio festivo mil copos retinam; que a nós não nos minam remorsos cruéis; em júbilo vivo juremos constantes de ser como dantes à pátria fiéis [...] Gritemos unidos Em santa amizade Salve, ó liberdade! E viva o Brasil! Sim, cessem gemidos, que a pátria adorada veremos vingada do bando servil.

A sua forte cultura, desempeçada do caturrismo português por longo comércio com a melhor da Europa, e aliviada do aparelho escolástico e clássico pela sua paixão, deu-lhe à expressão poética mais calor, mais vida e movimento do que tinha a do tempo. Há versos seus que, pela liberdade e personalismo da sua inspiração, pelo subjetivismo dos sentimentos, exuberância usual da expressão e despejo de apetites, como que aventam já o Romantismo. A sua ode A Natureza, no seu sincretismo do pseudoclássico com o que se chamava romântico nas terras por onde José Bonifácio peregrinou, é exemplo e testemunho de que nele a nova corrente literária começava, ainda a despeito seu, a influir. Lembre-se que José Bonifácio traduziu para nova língua, em verso, o pseudo Ossian, um dos ídolos do Romantismo.

Manifestações patrióticas como as de José Bonifácio, mas sem a vibração das suas, são aliás comuns na poesia desta fase. Raro será dos citados o poeta em que se não deparem. Ainda portugueses pela retórica, são já brasileiros pelo coração. Vimos como Caldas Barbosa, predecessor imediato desses poetas, não obstante as condições em que se lhe desenvolveu o engenho e em que poetou, conservou um íntimo sentimento da sua terra e espontaneamente o exprimia. O poema de Fr. Francisco de S. Carlos superambunda de manifestações do mesmo sentimento. Joaquim Lisboa consagra à terra natal uma descrição em verso, da qual aliás só se salva a intenção. Bartolomeu Cordovil celebra em seus poemas as cousas e melhorias do seu Goiás. Natividade Saldanha, esse mais que todos, canta as glórias do seu Pernambuco e os seus heróis, comparando-os aos da poesia e história clássicas. De envolta, celebrando o Brasil, proclama aos brasileiros:

Ó jovens brasileiros, descendentes de heróis, heróis vós mesmos pois a raça de heróis não degenera, eis o vosso modelo: o valor paternal em vós reviva a pátria que habitais comprou seu sangue, que em vossas veias pulsa. Imitai-os, porque eles no sepulcro vos chamem com prazer seus caros filhos.

Vilela Barbosa festeja a primavera do seu «pátrio Brasil», retoricamente ainda, mas revendo o sentimento, desajudado de engenho, que o inspirava. O mesmo é exato dizer do Cônego Januário da Cunha Barbosa, cujo talento era também muito inferior às suas boas intenções e cuja obra, em todos os gêneros medíocre, apenas tem o mérito destas. A poesia brasileira deve-lhe entretanto um inestimável serviço, a compilação e publicação do Parnaso brasileiro, com que salvou de total perda grande número de produções dos nossos poetas da época colonial.

A atividade destes poetas é toda dos últimos anos do século XVIII e dos trinta primeiros do XIX. Muitos deles viram as suas obras publicadas, já em volume, já em coleções ou periódicos, na mesma época em que as compuseram. As de outros correram manuscritas ou impressas em folhas avulsas. Afora a tendência assinalada de celebrar a terra, com um mais vivo sentimento do que se pode chamar a sua capacidade política, com que continuavam a inspiração nativista de desde o início da nossa poesia, não há nesta fase nada que a distinga da ruim poesia portuguesa contemporânea, ou que a aproxime do que nesta havia de melhor. Excetuados José Bonifácio e Sousa Caldas, cuja obra é mais sólida e revela mais talento, os mais são de fato insignificantes. Em José Bonifácio só tem aliás valor os poemas inspirados da sua paixão de repúblico fundamente ferido na sua soberba, ou em que ele mais misturou essa paixão. O resto se não sobreleva à mediocridade comum. É de um árcade imbuído de filintismo. Predecessores do Romantismo, não lhe são os precursores, pois bem pouco é o que se lhes possa descobrir pronunciando o movimento que aqui se ia em breve iniciar, e do qual alguns destes poetas foram contemporâneos, inadvertidos. Não souberam sequer continuar os mineiros, dos quais não há neles outro sinal que o apontado, nem preceder os românticos. Ocupam apenas um vazio, a fase entre os dois movimentos poéticos, sem o preencherem. E tomados em conjunto, não se lhes sente na poesia impressão ou influxo da evolução que desde a chegada da família real portuguesa se operava aqui, nem mesmo da independência cujos contemporâneos e testemunhas muitos deles foram. Árcades de decadência, mostraram-se verdadeiramente impassíveis, muito antes que o desinteligente parnasianismo houvesse importado de Paris a moda de o ser de caso pensado.


II. Prosadores Sob o aspecto literário, tão mesquinha e despicienda como a poesia foi a prosa da fase que precedeu imediatamente o Romantismo. Nenhuma grande ou sequer notável obra literária produziu. Foi, porém, como a poesia, fértil em escrevedores de assunto que só remota e subsidiariamente poderão dizer com a literatura: economia política e social, direito público e administrativo, questões políticas, comércio e finanças. A história, que também fizeram, a trataram em mofino estilo, e mesquinhamente, à moda de anais e crônicas. O número relativamente grande dos que destes assuntos e de outros congêneres escreveram e a cópia dos escritos publicados neste período, são um documento precioso da nossa vida intelectual e da nossa cultura nessa época. Se os poetas, com raras exceções, ficaram alheios às circunstâncias precursoras da independência, os prosadores, ao contrário, mostram-se influenciados e interessados pelo que aqui se passava, e, de boa vontade e ânimo puro, lhe trouxeram ao seu concurso. Toda a sua obra, mal construída sob o aspecto literário, com pouco ou sem algum mérito de fundo ou forma que a fizesse sobreviver ao seu tempo, ou que lhe desse nele qualquer proeminência literária, obra de publicistas e de jornalistas de ocasião, apontando a fins imediatamente práticos, serviu ou procurou servir à constituição de nossa nação, a qual já tinha como certa e definitiva. Não se pode todavia incorporar ao nosso patrimônio propriamente literário.

Uma das manifestações espirituais mais interessantes do sentimento público brasileiro no momento que precedeu a independência é o aparecimento, em 1813, no Rio de Janeiro, do Patriota, jornal literário, político, mercantil, etc. Fundou-o e dirigiu, e publicou-o na Impressão Régia, criada em 1808 pelo príncipe regente, Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, polígrafo baiano, formado em Portugal, matemático, engenheiro, economista, poeta e jornalista, homem, como tantos outros naquele fecundo período da nossa formação nacional, cheio de boa vontade. Como com muita razão reparava outro publicista nacional, Hipólito José da Costa Pereira, o famoso redator do célebre Correio Brasiliense, de Londres, que à só publicação de um jornal com o nome de Patriota era um sinal dos tempos. «Há dez anos, escrevia ele no seu Correio, em 1813, estando a Corte em Lisboa, que ninguém se atreveria a dar a um jornal o nome de Patriota, e a Henríada, de Voltaire, estava no número dos livros que se não podiam ler sem correr o risco de passar por ateu, pelo menos por jacobino. E temos agora em tão curto espaço já se assenta que o povo do Brasil pode ler a Henríada, de Voltaire, e pode ter um jornal com o título de Patriota, termo que estava proscrito como um dos que tinham o cunho revolucionário». Nos dois anos completos que durou, foi o Patriota um centro de convergência do trabalho mental brasileiro, particularmente aplicado ao estudo das cousas do país, e nele colaboraram, com alguns dos poetas citados, Pedra Branca, Silva Alvarenga, José Bonifácio e todos os homens doutos do tempo que deixaram qualquer sinal de si nas nossas letras, marquês de Maricá, Camilo Martins Lage, Pedro Francisco Xavier de Brito, Silvestre Pinheiro Ferreira, José Saturnino da Costa Pereira, etc. O Brasil e tudo quanto lhe interessava o conhecimento e o progresso eram os seus assuntos prediletos.

José de Sousa de Azevedo Pizarro e Araújo (1753-1830), José da Silva Lisboa (visconde de Cairu) (1756-1835), Baltazar da Silva Lisboa (1761-1840), Luís Gonçalves dos Santos (1764-1844), Mariano José Pereira da Fonseca (marquês de Maricá) (1773-1848), José Feliciano Fernandes Pinheiro (visconde de S. Leopoldo) (1774-1847), além de somenos nomes com que facilmente se alongaria esta lista, formam como prosistas o exato pendant dos poetas nomeados seus contemporâneos. Tem, porém, sobre estes a superioridade de uma obra que ao tempo foi mais útil e serviu melhor à causa da nação e particularmente da sua cultura. A de alguns deles tem ainda o mérito de haverem iniciado qualquer cousa na cultura ou nas letras brasileiras: assim a de Cairu estréia aqui os estudos econômicos e de direito público e mercantil, a de Maricá a literatura moralista. É o que lhes dá direito ao menos à menção dos seus nomes na história da nossa literatura. Com exceção de um ou outro, não são propriamente escritores com idéias e dons de expressão literária, ou que representem o espírito ou o sentimento do seu povo, nem as suas obras têm qualidades que nos permitam lê-las sem fastio e displicência e pelas quais se incorporassem no patrimônio das nossas boas letras. São, porém, expoentes ingênuos e expositores sinceros da cultura da sua época no Brasil, seus promotores e fautores aqui. Tais são principalmente o visconde de Cairu, o marquês de Maricá, o visconde de S. Leopoldo e o mesmo Aires de Casal, se não fora português.

José da Silva Lisboa, a quem seus grandes méritos literários e relevantes serviços públicos mereceram o título de visconde de Cairu, pelo qual é mais conhecido, é certamente pela extensão e solidez dos seus conhecimentos, e fecundidade do seu labor, a figura mais proeminente das nossas letras, tomada a expressão no seu sentido mais lato da fase que vamos historiando. Nasceu na Bahia em 1756, completou os estudos secundários e fez superiores em Portugal, onde lecionou grego e hebraico no Colégio das Artes, de Coimbra, e após uma longa e bem preenchida existência no Brasil como professor, publicista, funcionário público, magistrado e parlamentar, faleceu no Rio de Janeiro em 1836. O seu mérito é muito maior como jurista, economista, comercialista e publicista ou sabedor e escritor de questões públicas, políticas e administrativas, do que como literato, se bem tenha sido o visconde de Cairu um dos brasileiros de mais vasta literatura. Contemporâneo de Adam Smith, o criador da economia política, parece foi o nosso patrício o primeiro que nas línguas neolatinas escreveu dessa nova ciência, divulgando desde 1798 as idéias do pensador inglês. As três principais obras de Silva Lisboa sobre a matéria são Princípios de direito mercantil (1798-1803), Princípios de economia política (1804) e Estudos de bem comum (1819-1820). Conta-se que Monte Alverne, mais que seu adversário teórico, seu inimigo pessoal e inimigo rancoroso como saía ser, entrando na sua aula de filosofia do seminário de S. José no dia da morte de Cairu, com um gesto desabrido, com que acaso escondia o sentimento, declarara «que não dava aula porque morrera um grande homem, apesar de que a sua cabeça não passava de uma gaveta de sapateiro». Também a antipatia, em que pese a Carlyle, aguça a inteligência e facilita a compreensão. A frase atribuída ao soberbo frade traduz na sua vulgaridade uma impressão exata da copiosa, desigual e disforme obra do douto e laboriosíssimo escritor que foi Cairu. Consta-lhe a produção impressa ou manuscrita de setenta e sete números de obras maiores ou menores de direito, economia política ou social, história, questões do dia e públicas, didascálica, jornalismo, polêmica, pedagogia, moral. Como composição, fatura, estilo, esta produção é irregular, desigual e ainda extravagante e disparatada, revendo à pressa e até à precipitação do trabalho, a excitação ou a paixão do momento, o produto de ocasião. A literatura dela só podia aproveitar pequeníssima parte, a História dos principais sucessos políticos do Brasil por exemplo, a Vida de Wellington e pouco mais. Esta mesma, porém, carece de predicados literários que a recomendem à nossa estima. Em todos os gêneros produtos das circunstâncias, as obras de Cairu não sobrevivem às que as produziram.

Mariano José Pereira da Fonseca, quase somente conhecido pelo seu título de marquês de Maricá, vinha do tempo dos últimos vice-reis do Brasil, um dos quais o Conde de Resende, sob a inculpação de inconfidente, o teve preso por mais de dois anos. No vice-reinado de Luís de Vasconcelos fundaram alguns homens de estudo e letras do Rio de Janeiro, o doutor Manoel Inácio da Silva Alvarenga, mestre régio de retórica e conhecido poeta da plêiade mineira, João Marques Pinto, mestre régio de grego, o médico Jacinto José da Silva, o nosso Mariano José Pereira da Fonseca e outros letrados, uma sociedade literária. As reuniões periódicas destes homens de letras, em tempos em que ainda estava fresca a lembrança da chamada Conjuração Mineira, cujos sócios eram em maioria também homens de letras, foram havidas por suspeitas, dissolvida a sociedade e presos e processados os seus membros.

Mariano da Fonseca nasceu no Rio de Janeiro em 1773, e na mesma cidade faleceu em 1848. Formou-se em matemática e filosofia em Coimbra, o que correspondia à profissão de engenheiro. Como aconteceu geralmente a todos os brasileiros de instrução e mérito da época da Independência, teve importante situação política e social no primeiro reinado, distinções honoríficas e altos cargos, senador, conselheiro de Estado. Aos quarenta ou quarenta e um anos começou a publicar no Patriota, de Araújo Guimarães, as suas Máximas, pensamentos e reflexões, sob o pseudônimo de Um brasileiro. Porventura para lhes dar o peso da autoridade de maior experiência, mais tarde, em nova edição que delas fez, declarou havê-las escrito dos sessenta aos setenta e três. Norberto lhe reparou no equívoco e o corrigiu com razão.92 De 1837 a 1841 publicou, já sob o título de marquês de Maricá, as suas Máximas, pensamentos e reflexões em três partes respectivamente, distribuindo-as gratuitamente. Como ele tenha depois facultado a todos a reimpressão das suas obras, devemos crer que esta rara generosidade obedecia a um pensamento de interesse pela doutrinação moral dos seus patrícios. O marquês de Maricá, como La Rochefoucauld, com quem mui indevidamente o comparou uma crítica mais patriótica que esclarecida, não escreveu em sua vida senão máximas. Ele próprio as computou, na última coleção que delas imprimiu, em 1845. É, pois, segundo a qualificação moderníssima e depois do autor do Compêndio do peregrino da América e de Matias Aires, o primeiro moralista da nossa literatura. Não tinha, porém, uma filosofia sua ou sequer alheia afeiçoada pela sua própria experiência e meditação. Repete os lugares comuns da ética contemporânea, mistura de cristianismo sentimental e de liberalismo político. A sua psicologia, escolástica e vulgar, jamais vai ao fundo das cousas, nem descobre na alma humana novidades ou aspectos recônditos ou inéditos. À sua observação falta finura e penetração, ou originalidade. Faz parte da vulgar sabedoria comum e ele não a soube relevar pelos dons singulares de expressão que o gênero requer, e que são porventura o principal mérito dos seus grandes modelos franceses. Máximas e pensamentos, valem talvez principalmente pela forma que revestem. São o imprevisto, o ressalto, junto à concisão e à justeza desta que os valoriza. O escolho do gênero é a banalidade, clara ou mascarada com o paradoxo ou a singularidade. Neste escolho bateu freqüentemente o marquês de Maricá. Nem por isso perdem as suas Máximas a importância que lhe assinalei de primeiro exemplar do moralismo leigo e literário em a nossa literatura. E para o comum dos leitores que dispensam no assunto refinamentos, sutilezas de idéias e expressão, podem ser leitura agradável e proveitosa, porque o essencial é são e a forma escorreita, sem rebusca indiscreta de purismo e já do nosso tempo e gosto.

José Feliciano Fernandes Pinheiro, visconde de S. Leopoldo, nascido em Santos (S. Paulo) em 1774 e falecido em Porto Alegre (Rio Grande do Sul) em 1847, foi sujeito considerável pela sua ilustração e alta situação social e política no reinado do primeiro imperador. Formado em direito pela Universidade de Coimbra, em Portugal fez os seus primeiros trabalhos literários, traduções e compilações de assuntos de imediata utilidade prática, ali publicados de 1799 a 1801. No Brasil, após haver exercido diversas comissões de serviço público, foi eleito em 1821, deputado às Cortes da nação portuguesa quando da reforma governamental por que esta passou, e como tal tornou a Portugal. Espírito conservador e moderado, foi dos poucos deputados brasileiros que juraram a constituição por elas feita. De volta ao Brasil em seguida à declaração da Independência, foi aqui deputado geral, presidente de província, ministro do Império, senador e ocasionalmente encarregado de uma missão de caráter diplomático. Por estes serviços teve o título de visconde de S. Leopoldo, nome por que ficou quase exclusivamente conhecido. Além de memórias biográficas de compatriotas ilustres ou sobre limites do Brasil e ainda monografias interessantes para a nossa história literária, escreveu uma obra notável para o tempo e ainda hoje estimável, Anais da Capitania de S. Pedro. Como livro, quero dizer, sob o puro aspecto bibliográfico, o mais bem feito dessa época, o mais perfeito de composição e estrutura. Não obstante algumas incorreções de linguagem, galicismos e alguns mais graves defeitos de estilo, a sua redação revê o homem educado em Portugal e a leitura dos portugueses. A língua é geralmente melhor do que aqui comumente escrita. Como historiador distingue-se já o visconde de S. Leopoldo por bom critério histórico, aptidões críticas, capacidade de apurar os sucessos nos documentos autênticos de preferência originais ou inéditos, informação segura das fontes ou informes impressos do assunto ou a ele aproveitáveis, arte de dispor e referir os fatos e, notavelmente, menos prolixidade como era, e continuou a ser, de costume. As suas Memórias, publicadas postumamente na Revista do Instituto Histórico (tomos 37-38), conquanto lhes falte o interesse das revelações inéditas e mesmo das indiscrições, que principalmente dão relevo e pico a este gênero de literatura, sem que lho levante também um estilo mais literário, são todavia, até pela raridade delas nas nossas letras, estimáveis.

Todos os mais autores de prosa desta mesma fase ainda menos consideráveis são. Nenhum é um escritor que se faça todavia ler com aprazimento.