História da Literatura Brasileira/VI

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Capítulo VI

A plêiade mineira

Das capitanias brasileiras era certamente a de Minas a que mais motivos dava ao surto deste sentimento e aspiração. Nos povos como nos indivíduos, o principal estímulo à autonomia é a consciência, que lhes dá a abastança, de se poderem prover a si mesmos. Descobertas na segunda metade do século XVII, as minas que denominaram a região, e grandemente incrementada nesta a mineração do ouro e do diamante, aflui-lhe das capitanias vizinhas, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, toda a gente, e foi muita, para quem aquelas julgadas fáceis riquezas eram irresistível chamariz. Assim se começou a fazer a população da Capitania de Minas Gerais, desde então a mais avultada, a mais densa e logo depois a mais rica do Brasil. Como a riqueza cria a cultura, pelas facilidades que lhes proporciona, também a mais culta.

Por disposição geográfica do país, e pela variedade dos sítios minerais descobertos, a vida local, longe de se concentrar exclusivamente numa cidade capital, dispersava-se por vários pontos importantes, Sabará, São João del Rei, Diamantina, Mariana, Serro. Com as suas escolas avulsas, seminários episcopais, colégios de jesuítas ou aulas de outros religiosos, também atraídos pelo engodo das minas, eram tais vilas e cidades outros tantos pequenos focos de instrução, e contribuíam para difundi-la pelas comarcas cujo centro eram e pela capitania. Valeriam ainda porventura mais como estímulo do espírito de autonomia, do municipalismo, que devia contrastar o oficialismo reinícola da capital. A riqueza feita a muitos dos seus moradores pela mineração, do mesmo passo que os excitava a uma vida larga e de luxo, largueza e luxo relativos mas consoantes com o meio, e para ele até ostentoso, movia-os a mandarem os filhos não só a Portugal, mas também a outros países europeus, seguir estudos superiores. No século XVIII, mormente na sua segunda metade, o número de doutores, leigos e eclesiásticos, e de clérigos com estudos superiores dos seminários, era com certeza em Minas Gerais maior do que em qualquer outra capitania. Já então, devido justamente a serem principalmente de religiosos os estabelecimentos de ensino e as aulas avulsas de latim criadas em várias localidades pelas reformas de Pombal, andava muito espalhado o estudo do latim e sabê-lo era vulgar em Minas. A ciência do latim constituía ainda, mesmo na mais adiantada Europa, o fundamento e o essencial de toda a cultura. Nas festividades feitas em Mariana, em 1748, por ocasião da ereção do bispado e posse do seu primeiro prelado, nos outeiros e academias realizadas como partes das festas, numerosos versejadores e letrados recitaram, além de discursos congratulatórios e sermões penegíricos, grávidos de erudição latina e hidrópicos de hipérboles, dúzias de poemas, curtos e longos, décimas, sonetos, elegias, acrósticos, cantos heróicos, glosas, silvas, epigramas, em latim e em português.69 Da lição e cultura da capitania podemos fazer idéia pelas livrarias particulares nela àquele tempo existentes. Dão-nos informação a respeito os autos de seqüestros feitos nos bens dos implicados na chamada Conjuração Mineira. Além dos livros profissionais de estudo e consulta, constituíam-nas geralmente os melhores autores latinos no original e gregos no original e em traduções latinas, e mais os franceses Descartes, Condillac, Corneille, Racine, Bossuet, Montesquieu, Voltaire, tratados e dicionários de história e erudição, as décadas de Barros e Couto, os poetas clássicos portugueses, e também Tasso, Milton, Metastásio, Quevedo, afora dicionários de várias línguas, obras de matemáticas, ciências naturais e físicas e outras.

Ainda em antes de findar o primeiro quartel do século, começaram a manifestar-se em Minas sintomas de descontentamento da metrópole e de hostilidades aos seus propostos à governança da capitania. Contam-se desde então alguns alvorotos e motins, pomposa e impropriamente apelidados de revoltas e até de revoluções pelos historiadores indígenas, contra o governo colonial. Reprimidos alguns com a bruta violência com que em todos os tempos todos os governos presumem impedir o natural levante contra os seus desmandos, a sua repressão apenas serviu para desenvolver ou acirrar a animadversão do brasileiro contra o reinol. Dos governadores da capitania os houve fidalgos da melhor nobreza portuguesa, homens de corte e de sociedade, talvez com os vícios e defeitos nessas comuns, mas em todo caso com as prendas que eram o apanágio de sua classe. Acompanhavam-nos outros gentis-homens, que com os filhos da terra mais graduados por educação, haveres, famílias e postos, faziam em Vila Rica, a pitoresca capital de Minas, uma pequena corte. Festas de igreja, freqüentes e pomposas, cavalhadas, canas e outros divertimentos do Reino para aqui, a que acudiam os vizinhos desde Diamantina, Mariana e mais longe, e animavam.

Mais numerosa e mais densa que nenhuma outra do Brasil, a população de Minas, aquela ao menos que tinha Vila Rica por centro imediato, sentia-se melhor o contacto recíproco, criador da solidariedade. Sendo a mais rica, era também a mais isenta, a mais desvanecida de suas possibilidades. Este desvanecimento bairrista tinha-o Tiradentes em sumo grau. O espírito localista, feição congênita dos mineiros, oriundos das condições físicas e morais do desenvolvimento da capitania, fortificava ali o nativismo ou nacionalismo regional. O sentimento da liberdade e da independência, atribuído geralmente aos montanheses, parece ter em Minas mais uma vez justificado o conceito. Foi este meio que produziu a floração de poetas que é a plêiade mineira. Em qualquer outro do Brasil o seu aparecimento se não compreenderia.

Esses poetas são: Santa Rita Durão (17...-1784), Cláudio da Costa (1729-1780), Basílio da Gama (1741-1795), Alvarenga Peixoto (1744-1793), Tomás Gonzaga (1744-1807?), Silva Alvarenga (1749-1814). Estes são os que formam o grupo até aqui impropriamente chamado de escola mineira, e que chamaremos, porventura, com mais propriedade, a plêiade mineira. Além destes, e pelo mesmo tempo, produziu Minas muitos outros poetas, somenos a este, meros versejadores ocasionais, como sempre os houve aqui, dos quais nenhum ultrapassou a fama local contemporânea. Os mais miúdos noticiadores nomeiam: Joaquim Inácio de Seixas Brandão, Joaquim José Lisboa, Antônio Caetano Vilas Boas da Gama, irmão de Basílio, Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, Francisco Gregório Pires Monteiro Bandeira, Miguel Eugênio da Silva Mascarenhas, Silvério Ribeiro de Carvalho, Francisco e Domingos Barbosa, Matias Alves de Oliveira. São nomes sem outra significação e valia que o de servirem para atestar a existência em Minas de forças poéticas que ajudam a explicar a formação daquela plêiade.

Mas a só influência deste meio, onde nasceram e se criaram, não bastaria a explicar-lhes o estro e surto poético, e menos a atividade literária. A esse primeiro influxo pátrio juntou-se preponderantemente o de sua longa permanência na Europa, do seu convívio em um ambiente social e literário mais estimulante dos seus dons nativos do que seria a sua terra e o meio, em suma acanhado, em que se haviam criado. O contrário aliás passou com Tomás Gonzaga, do grupo o único que não era brasileiro, e o único de quem se pode dizer que foi o Brasil que o fez poeta. Não se conhece com efeito nenhuma produção anterior às liras de Marília de Dirceu, e estas resultaram de seus amores malfadados com uma brasileira, e, concomitantemente, de sucessos em que se achou envolvido no Brasil, que aos seus louros de poeta juntaram a coroa de mártir da liberdade.


I. Os líricos Quando se lhes formou o espírito aos poetas mineiros ou começavam eles a poetar, viçava em Portugal o arcadismo, movimento propositadamente iniciado ali por meados do mesmo século XVIII contra o gongorismo do século antecedente. O arcadismo, porém, foi mais que uma escola, um estilo literário. Ao contrário dos seus manifestos intuitos não conseguiu, se não muito parcialmente, nem desbancar o seiscentismo, nem fazer regressar as letras portuguesas, como era o seu propósito, à natureza e ao natural, à nobre simplicidade, à pureza da frase, à verossimilhança dos pensamentos. Aliás estas virtudes nunca foram comuns nessas letras. E no arcadismo ficaram ainda ressaibos demasiados do sescentismo contra o qual se organizara.

Os poetas mineiros, como os demais poetas brasileiros da mesma época, nenhum benemérito de menção particular, são antes de tudo Arcades, ainda quando não pertencem efetivamente a alguma das Arcádias do Reino. No Brasil nenhuma houve com existência real de sociedade organizada de poetas. As de que se fala não passaram de imaginações e fingimentos seus. Como Árcades portugueses, eles não foram somente ao geral dos seus contemporâneos da metrópole, antes, como reconheceu Garrett e o têm verificado outros historiadores da literatura portuguesa, contribuíram para lhe avultar e enriquecer a poesia naquela época. O que decididamente os sobreleva àqueles e os torna mais notáveis e, para nós ao menos, mais interessantes, são as suas novas contribuições à poesia portuguesa, com as quais também entra a nossa a se distinguir dela. Introduzem um novo elemento de emoção, o seu nativismo comovido, o seu patriotismo particular; um novo assunto, a gente e a natureza americana, e com isto, e resultante disto, novos sentimentos e sensações, indefiníveis talvez mais sensíveis, que o meio novo de que eram, do qual ou no qual cantavam, lhes influía nas almas. Escapando, pelo seu mesmo exotismo ao predomínio absoluto das tradições literárias portuguesas, ao rigor da moda poética então na metrópole vigente, puderam ser e foram mais naturais, mais isentos dos defeitos e vícios em que se desmanda ali essa moda. São, em suma, menos gongóricos que os portugueses, sacrificam muito menos à mitologia e ao trem clássico do que eles.

Segundo a ordem cronológica de sua manifestação, Cláudio da Costa é o primeiro destes poetas. Nasceu no Sítio da Vargem, distrito da cidade de Mariana, aos 5 de junho de 1729, de João Gonçalves da Costa, português, e Teresa Ribeiro de Alvarenga, mineira. Seu pai ocupava-se de mineração e lavoura. Por parte de pai, seus avós eram portugueses, e de mãe brasileiros, de São Paulo e de boa geração. Eram gente abonada, pois quatro dos seus cinco filhos cursaram a Universidade de Coimbra. Tinha em Minas um tio frade e doutor, Fr. Francisco Vieira, que fora opositor daquela Universidade e era agora procurador-geral da Religião da SS. Trindade no Brasil. Com ele iniciou os primeiros estudos de latim em Ouro Preto, donde aos quatorze anos se passou ao Rio de Janeiro. Aqui, no colégio dos jesuítas, estudou filosofia. Com vinte anos embarcou para Portugal, com destino a Coimbra, em cuja Universidade se formou em cânones. Entre 1753 e 54 recolheu ao Brasil, dando-se à advocacia em Vila Rica, onde também exerceu o importante cargo de secretário do Governo. Por sua idade, boa lição clássica, fama de douto e crédito de autor publicado, exerceu Cláudio da Costa ali uma espécie de magistério entre os seus confrades em musa, maiores e menores, que todos lhe liam as suas obras e lhe escutavam os conselhos. Aos sessenta anos foi comprometido na chamada Conjuração Mineira. Preso, e sem dúvida apavorado com as conseqüências da tremenda acusação de réu de inconfidência, suicidou-se na prisão.

Na minuta manuscrita de seus escritos que acompanha os citados apontamentos, declara Cláudio que «aplicado desde os primeiros anos ao estudo das belas-letras» conservava inéditos em 1759: Rimas nas línguas latina, italiana, portuguesa, castelhana e francesa em poesia heróica e lírica, dois tomos in 4º. É preciosa a confissão, menos como testemunho da capacidade poética do nosso patrício em cinco línguas, que por mostrar quanto, com mais de meio século de permeio, e a despeito da Arcádia, estava ainda perto de Botelho de Oliveira, o poeta seiscentista da Música do Parnaso em quatro coros de rimas portuguesas, castelhanas, italianas e latinas. Cláudio Manoel da Costa é aliás, e ficaria, o mais português dos poetas mineiros, o mais seiscentista e simultaneamente o mais arcádico, o mais achegado à inspiração e poética portuguesa tradicional e a do momento em que se lhe formou o espírito, em suma, o menos brasileiro do grupo. Di-lo bastantemente o só título de seus escritos inéditos e publicados, Rimas pastoris ou Musa bucólica, centúria sacra, poema ao glorioso parto de Maria Santíssima, Monúsculo poético, Culto métrico a certa abadessa, e quejandos.

Poetou e escreveu com abundância segundo se vê das suas mesmas citadas informações, e o testemunha a parte publicada de sua obra.

Nos citados «Apontamentos» figuram entre os seus manuscritos Poesias dramáticas que se têm muitas vezes representado nos teatros de Vila Rica, Minas em geral e Rio de Janeiro e Várias traduções de dramas de Metastásio. Alguns destes dramas em rima solta, outros em prosa, proporcionados ao teatro português. Sobre confirmarem a variedade de aptidões poéticas de Cláudio da Costa, seriam estas obras contribuição porventura estimável para a história da nossa literatura dramática e ainda do nosso teatro. Parece que se perderam todas. De sua copiosa obra poética, a porção verdadeiramente insigne são os Sonetos, entre os quais os há rivalizando os mais excelentes da língua. Obedecendo à poética preconizada pelos fautores da Arcádia, embora com sobrevivências do seiscentismo, duas feições distinguem os sonetos de Cláudio Manuel da Costa: um vago perfume camoniano e uma sensibilidade particular porventura a primeira manifestação da nostalgia brasileira, depois repetida por tantos poetas nossos. São amostras destes dois traços os sonetos:

Se os poucos dias que vivi contente foram bastantes para o meu cuidado, que pode vir a um pobre desgraçado que a idéia do seu mal não acrescente!

Aquele mesmo bem, que me consente, talvez propício, meu tirano fado esse mesmo me diz, que o meu estado se há de mudar em outro diferente.

Leve pois a fortuna os seus favores; eu os desprezo já; porque é loucura comprar a tanto preço as minhas dores:

Se quer que me não queixe, a sorte escura ou saiba ser mais firme nos rigores ou saiba ser constante na brandura.

Onde estou! Este sítio desconheço; quem fez tão diferente aquele prado! tudo outra natureza tem tomado; e em contemplá-las tímido esmoreço.

Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço de estar a ela um dia reclinado: ali em vale um monte está mudado: quanto pode dos anos o progresso!

Árvores aqui vi tão florescentes que faziam perpétua a primavera: nem troncos vejo agora decadentes.

Eu me engano: a região esta não era: mas que venho a estranhar, se estão presentes, meus males com que tudo degenera!

Este é o rio, a montanha é esta, estes os troncos, estes os rochedos, são estes inda os mesmos arvoredos; esta é a mesma rústica floresta.

Tudo cheio de horror se manifesta, rio, montanhas, troncos e penedos que de amor nos suavíssimos enredos foi cena alegre, e urna é já funesta.

Oh! Quam lembrado estou de haver subido aquele monte, e às vezes, que baixando deixei do pranto o vale umedecido!

Tudo me está a memória retratando; que na mesma saudade do infame ruído vem as mortas espécies despertando.

Memórias do presente, e do passado fazem guerra cruel dentro em meu peito; e bem que ao sofrimento ando já feito, mais que nunca desperta hoje o cuidado.

Que diferente, que diversos estado é este, em que somente o triste efeito da pena, a que meu mal me tem sujeito, me acompanha entre aflito e magoado!

Tristes lembranças! E que em vão componho a memória da vossa sombra escura! Que néscio em vós a ponderar me ponho!

Ide-vos; que em tão mísera loucura todo o passado bem tenho por sonho; só é certa a presente desventura.

Adorador fiel das musas européias, age não obstante nele o incoersível império da terra natal, para onde quisera trazer e onde quisera aclimatar aquelas musas, e o seu cortejo clássico de «ninfas, o pastor, a ovelha, o touro»:

Musas, canoras Musas, este canto vós me inspirastes, vós meu tenro alento erguestes brandamente àquele assento. Que tanto, ó Musas, prezo, adoro tanto.

Lágrimas tristes são, mágoas e pranto, tudo o que entoa o músico instrumento; mas se o favor me dais, ao mundo atento em assunto maior farei espanto.

Se em campos não pisados algum dia entre a Ninfa, o Pastor, a ovelha, o touro, efeitos são da vossa melodia;

que muito, ó Musas, pois, que em fausto agouro cresçam do pátrio rio à margem fria a imarcescível hera, o verde louro!

Sem embargo dos seus poemas de intuitos nativistas, como a Fábula do Ribeirão do Carmo e Vila Rica, faltou-lhe infelizmente talento para desta transplantação fazer melhor do que instalar na paisagem e no ambiente americano os estafados temas e motivos da cansada poesia pastoril portuguesa, sem ter ao menos, como Gonzaga, alguma forte paixão que os reviçasse. Influenciado sem dúvida pelo exemplo de Basílio da Gama e de Durão, compôs o seu poema brasileiro, se não pelo sentimento e inspiração, pelo assunto, Vila Rica. É uma obra medíocre, indigna do poeta dos Sonetos e ainda de outros versos, a qual apenas revê o apego à tradição que fazia anacronicamente viver esse gênero na literatura da nossa língua.

Vernáculo nesta e correto na forma e estilo poético de fino e delicado sentimento, com tons bastante pessoais, apenas um todo nada gongórico, Cláudio Manoel da Costa é, todavia, julgando-o pelo conjunto da sua obra, o mais árcade dos árcades brasileiros. Não tem alguma emoção grande ou profunda, poetiza por poetizar, academicamente, seguindo de perto a escola na inspiração, nos temas preferidos, nas formas métricas. É um virtuose e um diletante, se podemos juntar os dois termos, mas o é com engenho e não raro, nos Sonetos, formosamente. Nenhum dos seus poemas em que se pode enxergar algo de sentimento pátrio, ou de influxo da terra natal, se distingue na sua obra. Revelam, porém, todos, ainda que vagamente, como tais motivos começavam a impor-se aos engenhos brasileiros, dos quais volvido meio século se iam tornar prediletos.

Nasceu Tomás Antônio Gonzaga em Portugal, na cidade do Porto, em 1744, de pai fluminense e mãe portuguesa, filha de inglês. Como o pai houvesse exercido a magistratura na Bahia, Tomás Gonzaga passou algum tempo da adolescência nessa cidade, ainda então a principal do Brasil. Voltando com a família a Portugal, aos vinte e quatro anos bacharelou-se em leis em Coimbra. Por ter sido opositor a cadeiras da faculdade jurídica, fez jus ao título de desembargador. Com essa graduação veio para o Brasil, em 1782, nomeado ouvidor de Vila Rica, a pitoresca e sombria capital de Minas Gerais. Afora a declaração de uma de suas liras, de que por amor de Marília destruíra os versos que antes de a conhecer consagrara a outras mulheres, declaração que apenas será gentileza de namorado, não se conhece testemunho de que Gonzaga houvesse poetado antes de vir para o Brasil. Ao contrário, nenhum indício há de o ter feito. Foi o Brasil que o fez poeta, e é isto que o naturaliza brasileiro. Aqui se lhe depararam os motivos do seu poetar, primeiro a mulher que parece ter amado de um grande e terno amor, principal estímulo do seu estro até então adormecido; depois os sucessos que, a despeito da sua inocência, o envolveram na chamada Conjuração Mineira. Despedaçando-lhe a existência, que se lhe antolhava auspiciosamente fagueira, esses sucessos ajuntaram às emoções dolorosas dos seus contrariados amores o abalo cruel de uma calamidade inaudita: a acusação do crime de lesa-majestade, a prisão, os ferros, os maus tratos, a masmorra, um longo e martirizante processo, a perspectiva da forca, em suma o desmoronar súbito e brutal de todas as suas risonhas esperanças de namorado e funcionário, em via de realização. De sua dor fez as formosas canções que o imortalizaram, como um dos bons poetas do amor da nossa língua. A brasileira sua amada era uma jovem matuta, sem outra cultura e espírito que as suas graças naturais. Para ser dela entendido e tocá-la, versejou-lhe naturalmente, simplesmente, com o mínimo de artifícios clássicos possível à poética portuguesa, quase sem arrebiques literários, nem rebuscas de expressão, que ela pudesse desentender. Assim como lhe forneceu o motivo e o estímulo de inspiração, deu-lhe o Brasil também o estilo que o distingue e sobreleva aos seus pares. Como poeta é, pois, Gonzaga um lídimo produto brasileiro.

Comutada a pena de morte, imposta pela alçada que julgou a presumida conspiração, em degredo para Angola, em África, ali morreu de miséria moral e física pelos anos de 1807 a 1809. A primeira edição de suas liras, sob o título que se devia tornar famoso de Marília de Dirceu, apareceu em Lisboa, em 1792, no mesmo ano da sua condenação e desterro. E desde então se tem feito delas, aumentadas de suas partes, cuja autenticidade é questionável, trinta e quatro edições. Nenhum outro poema da nossa língua, com a só exceção dos Lusíadas, teve tão grande número de edições.

Marília de Dirceu, o título consagrado das liras de Gonzaga, é a mais nobre e perfeita idealização do amor da nossa poesia. Clássica embora de língua e poética, é uma obra pessoal, escapa e superior às fórmulas e competências das escolas. Canta de amor numa toada sinceramente sentida e por isso tocante, do amor como a grande e fecunda e honesta paixão humana nas suas relações com a vida, ainda nos seus aspectos prosaicos, a existência e os sentimentos vulgares ou sublimes. Por essa expressão é Gonzaga um grande poeta.

No que em Gonzaga se revê o português, como aliás em Cláudio da Costa, brasileiro nato, é nos afeites portugueses de sua poesia, os fingimentos pastoris, imagens e tropos de ambos derivados. Isso mesmo, porém, não é mais essencialmente português do que italiano ou espanhol, se não puramente arcádico. Mas a realidade da sua situação, a verdade do seu sentimento, a sinceridade da sua emoção, sobrelevaram as máculas postas no seu poema pelos inevitáveis estigmas da poética em voga e quase as apagaram. Se o Brasil o naturalizou seu, fazendo-o poeta, ele por sua vez foi o principal agente de naturalização aqui da sentimentalidade voluptuosa do lirismo português. Foi ele, com efeito, o primeiro que no Brasil cantou tão constante, tão exclusiva e tão ternamente de amor.

Dos poetas desta plêiade, o de obra menos considerável é Inácio José de Alvarenga Peixoto. Natural do Rio de Janeiro, filho de Simão de Alvarenga Braga e de D. Ângela Micaela da Cunha, que ignoramos se eram brasileiros ou portugueses, gente se não de bom nascimento, abonada. Feitos os primeiros estudos com os jesuítas, na sua cidade natal, por volta de 1760 foi concluí-los em Portugal. Em Coimbra formou-se em leis, em Cintra foi juiz de fora e no Reino demorou-se até depois de 1775. Neste ano ainda se encontrava ali, onde, com outros poetas e versejadores brasileiros, Basílio da Gama e seu irmão Antônio Caetano Vilas Boas da Gama, Joaquim Inácio de Seixas, da família da futura namorada de Gonzaga, Silva Alvarenga e outros mais versejou à inauguração da estátua de D. José I. De Portugal voltou despachado ouvidor da Comarca do Rio das Mortes. Este cargo, e o seu posterior casamento com uma senhora mineira de família paulista, levou Alvarenga Peixoto a domiciliar-se e estabelecer-se em Minas, onde trocou a profissão de magistrado pela de fazendeiro e minerador e o título acadêmico de doutor pelo de coronel, pelo qual ficou mais conhecido. Dera-lhe esta patente, com o comando do regimento de cavalaria da campanha do Rio Verde, o Governador D. Luís da Cunha Menezes. Vivendo em São João del Rei, ia freqüentemente a Vila Rica, onde era hóspede habitual de Gonzaga, de quem devia ter sido companheiro em Coimbra e era ainda parente. Estes dois poetas e Cláudio da Costa encontravam-se em fraternal convívio, comunicando-se mutuamente as suas composições e conversando de letras e, naturalmente, das cousas da capitania. Destas conversações, em que tomariam parte outros homens de letras ou de alguma representação na capitania, mal entendidas por uns, deturpadas por outros, originou-se a suspeita de uma conjuração contra o domínio português, com o intento de conflagrar a capitania e proclamar a sua independência. Não obstante o seu aulicismo e a constância de suas manifestações bajulatórias de veneração a soberanos e magnates portugueses seus delegados, foi Alvarenga Peixoto comprometido nela, preso e, com Gonzaga e seus outros companheiros de suspeição, trazido algemado para as lôbregas masmorras do Rio de Janeiro. Após um longo processo de três anos, delas saiu para o desterro de Ambaca em África, onde pouco depois morreu em 1793.

A crermos os seus biógrafos, incluindo o melhor deles, Norberto Silva, Alvarenga Peixoto escreveu muito maior número de composições do que as que se lhe conhecem, e que Norberto foi quem mais completa e cuidadosamente colecionou. Voltando de Portugal ao Rio de Janeiro, aqui o acolheu benignamente o vice-rei Marquês de Lavradio. No teatro ou «casa da ópera», como lhe chamavam, criado por este vice-rei, fez Alvarenga Peixoto, sempre chegado aos magnates, representar uma tradução em versos de Mérope, tragédia de Maffei e também um drama original, igualmente em versos, Enéias no Lácio. Tal é ao menos a versão de Cunha Barbosa propalada por Norberto, ignoramos com que fundamento. Infelizmente essas tentativas, como as de Cláudio da Costa, e outros que porventura houve, perderam-se totalmente. Assim também se teriam perdido, levadas no tufão da devassa e seqüestros de que foram objeto os acusados de inconfidência e seus bens, muitas outras composições de Alvarenga Peixoto. No que dele nos resta -vinte sonetos, duas liras, três odes incompletas, uma cantata e um canto em oitava rima- percebese um bom poeta, de seu natural fácil e fluente. Não lhe falta imaginação nem conceito. Infelizmente o motivo principal de sua inspiração no que dele nos ficou, versos na maior parte de encômios a magnates, versos de cortesão, lhe haveria prejudicado dotes que mais se adivinham que se sentem. Passa como um dos seus melhores sonetos A saudade, feito depois da sua sentença de morte. Não lhe seriam inferiores A lástima, composta «na masmorra da Ilha das Cobras, lembrando-se da família», nem o feito à Rainha D. Maria I suplicando-lhe a comutação da pena de morte, se não houvesse em ambas demasiados traços da ruim poética do tempo, empolada e campanuda. Comparticipa Alvarenga Peixoto do sentimento comum a estes poetas de afeto, pode mesmo dizer-se de ufania, da terra natal, unido a um sincero apego a Portugal. Manifesta-se na maior parte dos poemas que lhe conhecemos, particularmente na ode à Rainha D. Maria I, da qual se poderia inferir ter havido aqui a esperança de que ela cá viesse, em visita à sua colônia:

Se o Rio de Janeiro só a glória de ver-vos merecesse já era vosso mundo novo inteiro

[...]

Vinde, real senhora honrar os nossos mares por dous meses vinde ver o Brasil que vos adora

[...]

Vai, ardente desejo, entra humilhado na real Lisboa sem ser sentido do invejoso Tejo aos pés augusto voa, chora e faze que a mãe compadecida dos saudosos filhos se condoa

[...]

Da América o furor perdoai, grande augusta; é lealdade são dignos de perdão crimes de amor.

Este sentimento, que é manifesto em todos os poetas, desdiz do que lhes imputou a torva e suspicaz política dos governadores e vice-reis portugueses, cujo excessivo zelo lhes transformou apenas indiscretas conversações em conjuração e fez destes árcades ideológicos réus de inconfidência, destruindo estúpida e maldosamente três destes amáveis poetas. Este íntimo sentimento casava-se-lhes na fantasia com a ambição patriótica de que se aumentasse na monarquia portuguesa a importância de sua terra e que as nobres estirpes daquela dessem aqui rebentos que lhe quisessem como a sua. Estas e outras quimeras, vagos e indecisos sonhos de poetas, se encontram no Sonho e no Canto genetlíaco, de Alvarenga Peixoto, em que, a propósito do filho do governador D. Rodrigo de Menezes, se rejubila de que:

Os heróis das mais altas cataduras principiam a ser patrícios nossos.

Chegamos ao último, na ordem do tempo, dos líricos deste belo grupo. É Manoel Inácio da Silva Alvarenga, natural de Vila Rica, em Minas, onde nasceu em 1749, donde saiu apenas adolescente e aonde não mais voltou. Era filho de um homem pardo, Inácio Silva Alvarenga, músico de profissão, como têm sido tantíssimos de sua raça no Brasil, e pobre, e de mãe desconhecida. A benevolência de pessoas a quem a sua inteligência e vocação estudiosa interessava, deveu poder vir para o Rio estudar, e daqui, feitos os preparatórios, seguir para Coimbra, onde se bacharelou em cânones, sempre com as melhores aprovações, em 1775 ou 76, com 27 anos de idade. Em Portugal relacionou-se com alguns patrícios, como Alvarenga Peixoto e Basílio da Gama, mais velhos do que ele e também poetas. Do último, parece, foi grande amigo. Celebrou-o mais de uma vez, e efusivamente, em seus versos. No círculo destes e de outros brasileiros dados às musas, ter-se-ia primeiro feito conhecido. Em 1774 publicara em Coimbra o poema herói-cômico. O Desertor (8º, 69 págs.), metendo à bulha o escolasticismo coimbrão, pouco antes desbancado pelas reformas pombalinas, e celebrando estas reformas. Franco é o mérito literário deste poema. Não é, todavia, despiciendo como documento de um novo estado de espírito, mais literal e desabusado, da sociedade portuguesa sob a ação de Pombal, e do caminho que havia feito em espíritos literários brasileiros o sentimento pátrio, manifestado no poema em alusões, referências, lembranças de cousas nossas. Quando foi do dilúvio poético da inauguração da estátua eqüestre de D. José I, em 1775, Silva Alvarenga o engrossou com um soneto e uma ode. O mesmo motivo inspirou-lhe ainda a epístola em alexandrinos de treze sílabas Ao sempre augusto e fidelíssimo rei de Portugal o Senhor D. José I no dia da colocação de sua real estátua eqüestre. Era então estudante, e tal se declara no impresso da obra. Dois anos depois vinha a lume o Templo de Netuno, poemeto (idílio) de sete páginas em tercetos e quartetos, muito bem metrificados, com que, ao mesmo tempo que celebra a aclamação da Rainha D. Maria I:

Possa da augusta filha o forte braço por longo tempo sustentar o escudo, que ampara tudo o que seu reino encerra e encher de astros o céu, de heróis a terra.

se despede sinceramente sentido de seu amigo o patrício Basílio da Gama:

Ainda me parece que saudoso te vejo estar da praia derradeira cansando a vista pelo mar undoso.

Sei que te hão de assustar de quando em quando os ventos, os vários climas e o perigo de quem tão longos mares vai cortando.

Vive, Termindo, e na inconstante estrada pisa a cerviz da indômita fortuna, tendo a volúbil roda encadeada aos pés do trono em sólida coluna.

Com este conselho baixamente prático ao recém-protegido de Pombal para que angarie também o patrocínio da rainha de pouco aclamada, e que ia ser o centro da reação contra aquele, termina Silva Alvarenga o seu poema. Antes de lhes exprobrarmos a vileza do sentimento, consideremos que era muito menor e muito mais desculpável do que iguais que agora vemos em todo o gênero de plumitivos. Ele procedia consoante o tempo e o uso geral de poetas e literatos, que ainda não tinham outro recurso que a proteção dos poderosos. Precede imediatamente esta quadra menos digna, e acaso por isso mesmo menos bela, o formoso e sentido terceto:

Se enfim respiro os puros climas nossos, no teu seio fecundo, ó Pátria amada, em paz descansem os meus frios ossos,

que revê o sentimento do amor da terra natal comum a todos estes poetas, que todos o manifestaram de forma a lhe sentirmos o trabalho de transformação do limitado nativismo, se não apenas bairrismo, de seus predecessores em um patriotismo mais consciente e amplo. Vinha este poema assinado por «Alcindo Palmireno, árcade ultramarino» e era endereçado a «José Basílio da Gama, Termindo Sepílio». Estas alcunhas arcádicas, e outras que tomaram vários poetas do mesmo grupo, como a de Dirceu, de Gonzaga, não indicam nos que as traziam a qualidade de associados de alguma das sociedades literárias então existentes com o nome de Arcádias. Somente de Cláudio e Basílio se pode crer que a tais sociedades pertencessem. Na maioria dos outros, do grupo mineiro ou não, era apenas um apelido genérico. Arcádia quer dizer assento de poetas, e por extensão poesia, e, em Portugal e aqui, a poesia na época vigente. Árcade valia, pois, o mesmo que poeta. «Árcade ultramarino» não dizia mais que poeta do ultramar, sem de forma alguma indicar a existência no Brasil dessas sociedades, que de fato nunca aqui existiram.

Foi Silva Alvarenga um dos mais fecundos e melhores poetas da plêiade mineira. Desde o Desertor das letras, o seu poema herói-cômico contra o carrancismo do ensino universitário, não cessou de versejar. Em folhas avulsas, folhetos, coleções e florilégios diversos, jornais literários portugueses e brasileiros (pois ainda foi contemporâneo dos que primeiro aqui apareceram), foram publicadas as suas muitas obras. A de mais vulto, o poema madrigalesco Glaura, saiu em Lisboa em 1799 e 1801. As notas de aprovação obtidas em Coimbra por Silva Alvarenga lhe argúem hábitos de estudo sério, que tudo faz supor conservasse depois de graduado e pela vida adiante. Era seguramente homem de muito boas letras, com a melhor cultura literária que então em Portugal se pudesse fazer. Quanto a ela, juntava, além do engenho poético, talento real, espírito e bom gosto pouco vulgar no tempo; sobejam-lhe as obras para o provar, nomeadamente os seus prefácios e poemas didáticos. Assenta consigo mesmo, embora segundo a Arcádia e Garção, que na «imitação da natureza consiste toda a força da poesia», e a sua Epístola a José Basílio, insistindo nesta opinião, está cheia de discretos conceitos de bom juízo literário. Se nem sempre os praticou, é que mais pode com ele a influência do momento literário que as excelentes regras da sua arte poética. Lera Aristóteles, Platão, Homero. Lida com eles e os cita de conhecimento direto, e a propósito. Conhece as literaturas modernas mais ilustres, inclusive a inglesa. Não lhe são estranhas as ciências matemáticas, físicas ou naturais. No seu poema As artes, as figura, ou se lhes refere com apropriadas alegorias ou pertinentes alusões.

Formado em cânones voltou Silva Alvarenga ao Rio de Janeiro em 1777, e aqui se deixou ficar, talvez porque nenhum afeto ou interesse de família, que não a tinha regular, o chamasse a Minas, sua terra natal. Vários poemas seus, nomeadamente a sua Ode à mocidade portuguesa, a epístola a Basílio da Gama e As artes, acima citado, mostram em Silva Alvarenga um espírito ardoroso de cultura, de progresso intelectual, e entusiasta de letras e ciências. Ele traria para o Brasil desejos e impulsos de promover tudo isto aqui. Angariando a boa vontade do vice-rei de então, Marquês do Lavradio, fundou, com outros doutos que aqui encontrou, uma sociedade científica, cujo objeto principal «era não esquecerem os seus sócios as matérias que em outros países haviam aprendido, antes pelo contrário adiantar os seus conhecimentos». Foi efêmera a existência desta sociedade. Num outro vice-rei, Luís de Vasconcelos e Sousa, encontrou igualmente o nosso poeta animação e patrocínio. Por ele teve a nomeação de professor régio de uma aula de retórica e poética, solenemente inaugurada em 1782, e sob os seus auspícios restaurou, em 1786, com a denominação agora de Sociedade Literária, a associação extinta. Dela foi secretário e porventura a alma. A mal conhecida existência destas duas associações literárias fundadas por Alvarenga deu azo às hipóteses e imaginações que têm aliás ocorrido como certezas, de uma Arcádia Ultramarina, criada por ele com o concurso de Basílio da Gama, que entretanto estava em Portugal, donde nunca mais saiu. Dos sócios destas duas sociedades, médicos, letrados, padres, o único nome que escapou ao completo esquecimento e a história literária recolheu além do de Silva Alvarenga, foi o de Mariano José Pereira da Fonseca, o futuro Marquês de Maricá, autor das Máximas. A esta atividade literária juntava Alvarenga a profissão de advogado. Mudado o vice-rei liberal pelo Conde de Rezende, que não o era (1790), este, tornado mais desconfiado pelos recentes sucessos da Inconfidência Mineira, enxergou nessa reunião de estudiosos e homens de letras não sei que sinistros projetos de conjura contra o poder real. Preso em 1794, após múltiplos interrogatórios e mais de dois anos de prisão nas lôbregas masmorras da fortaleza de Santo Antônio, foi Silva Alvarenga restituído sem julgamento à liberdade. Teve sorte. Não eram acaso mais culpados do que ele os seus confrades de Minas, dois anos antes, comutada a sentença de morte em desterro, mandados morrer nas inóspitas areias africanas. Faltou apenas um pouco mais de zelo ao vice-rei Rezende e ao principal juiz da nova alçada, o poeta do Hissope, Dinis. Viveu até 1814 e colaborou ainda no Patriota, a revista literária que fomentou o movimento intelectual anterior à independência.

Pelo espírito, pelo temperamento literário, pelo estilo tanto como pela idade, é Silva Alvarenga o mais moderno dos poetas do grupo, o menos iscado dos vícios da época, o mais livre dos preconceitos da escola, cujas alusões e ridículo não desconhecia, como se vê na sua Epístola a José Basílio. Tem além disso bom humor, espírito e, em suma, revê melhor que os outros a emancipação produzida em certos espíritos pela política antijesuítica de Pombal. Com ser mestre de retórica, evita mais que os outros os recursos do arsenal clássico e mitológico. E quando cede à corrente, o faz com muito mais personalidade senão originalidade, mesmo com desembaraço e liberdade rara no tempo. É disso prova a sua formosa heróide Teseu e Ariana, uma das melhores amostras da nossa poesia, naquela época.


II. Os épicos É principalmente na épica que os brasileiros, se não sobrelevam aos portugueses da segunda metade do século XVIII, concorrem dignamente com eles. Os dois poemas brasileiros, o Uraguai, de Basílio da Gama, e o Caramuru, de Santa Rita Durão, não desmerecem das melhores epopéias portuguesas da época.

José Basílio da Gama nasceu nos arredores da antiga Vila de S. José do Rio das Mortes, depois S. José de El-Rei, hoje Tiradentes, 1741. Foram seus pais o capitão-mor Manoel da Costa Vilas Boas, português, e D. Quitéria Inácia da Gama, brasileira, ambos de bom nascimento. A mãe descendia da nobre família Gama de Portugal, motivo por que talvez o filho lhe preferisse o apelido ao do pai. De seus ascendentes somente eram brasileiros a mãe e a avó materna. Órfão de pai em anos verdes, e talvez minguado de bens, veio para o Rio de Janeiro cursar de favor o colégio dos jesuítas. Estava para professar na Companhia quando foi esta dissolvida e seus membros expulsos dos domínios portugueses. Aproveitando a exceção em favor dos não professos, abandonou Basílio da Gama a Companhia. Do Brasil passou a Portugal e daí a Roma, onde foi admitido à Arcádia Romana. De Roma voltou ao Brasil em fins de 1766 ou princípios de 1767. Em meados do ano seguinte tornava a Portugal, com destino à Universidade de Coimbra. Preso em Lisboa como ex-jesuíta, esquivou o conseqüente desterro para Angola consagrando um formoso poema ao casamento de uma filha do Marquês de Pombal, ministro todo-poderoso de D. José I. No próprio ano (1769) desse Epitalâmio, saiu da Impressão régia o Uraguai. Como no mesmo volume vinha a Relação abreviada, famosa diatribe contra os jesuítas, obra pessoa de Pombal, é legítimo conjeturar que por conta deste correra a publicação do poema. Dedicado no texto ao irmão de Pombal, ex-governador do Pará, Maranhão, era oferecido ao marquês em um soneto preliminar. Desde então não saiu mais Basílio da Gama de Portugal, sendo inexata a notícia corrente de uma segunda vinda ao Brasil depois da publicação do Uraguai. Além deste, que é a sua obra capital, compôs mais de trinta poemas, entre maiores e menores, sem contar algumas glosas. Em 1754 foi nomeado oficial da Secretaria do Reino. Sucessivamente obteve mais tarde o título de escudeiro fidalgo da Casa Real (1787) e o hábito de Santiago da Espada. Emprego e mercê lhe davam uma renda anual que não só o punha ao abrigo de privações, mas lhe facultava viver com relativa largueza. Aos cinqüenta e quatro anos, ou perto deles, faleceu em Lisboa, solteiro, a 31 de julho de 1795.

Pouco adequado a um poema épico segundo os moldes clássicos, era o assunto de Basílio da Gama: a guerra que Portugal, auxiliado pela Espanha, fez aos índios dos Sete Povos das Missões do Uruguai, rebelados contra o tratado de 1750, que os passava ao domínio português, tirando-os aos seus padres os jesuítas que os haviam descido, amansado e aldeado, e os despejava de suas terras. Tal tema, ainda exagerado por uma imaginação épica, daria apenas um episódio em poema de mais vulto. Demais faltava ao poeta o recuo do tempo para uma possível idealização do acontecimento, cujos autores ainda viviam. A epopéia tinha, pois, de ser uma simples narrativa histórica em versos de fatos recentíssimos, a que uma animosidade contra os jesuítas, que se manifestava já na Espanha e Portugal, e iria breve resultar nos atos de Pombal e de Aranda, dava um desmesurado relevo. Limitado pela realidade material do acontecimento, ainda a todos presente, peado pela contemporaneidade das personagens, de todos conhecidas, não podia o poeta dar à sua imaginação a liberdade e o alor necessários à idealização do seu tema. Pelas circunstâncias da sua composição, tinha fatalmente o seu poema de lhe sair limitado no tempo e no espaço, e sobretudo despido das roupagens e feições propriamente épicas. Varnhagen notou que a ação não chega a durar um ano, e o leitor atento observará como o poeta se cinge à realidade prosaica dos sucessos.

Ao poeta não prejudicou, antes serviu, esta situação que lhe criou o assunto. Obrigou-o a limitar as proporções do seu poema e impediu-o de seguir os moldes clássicos, inventando ao redor do fato principal os desenvolvimentos que a coetaneidade deles não comportava. Fossem estas causas mais que o engenho do poeta que deram ao Uraguai a sua feição particular entre os últimos poemas ainda oriundos da corrente camoniana, em lhes haver cedido o patenteou ele. O gênio não é a emancipação absoluta das condições que nos rodeiam e limitam. Consiste principalmente em compreendê-las no que elas têm de mais sutil, de mais fugaz e de mais difícil. A superioridade de Basílio da Gama está em ter compreendido, ou antes sentido, que os poetas são principalmente entes de sensação, que o assunto não lhe dava para uma epopéia como aquelas que então, à cola da de Camões, se faziam, e haver, contra o gosto, a voga, a corrente do seu tempo avançado muito além dele e dado à literatura portuguesa o seu primeiro poema romântico. Com efeito, não se parece o Uraguai com qualquer outro poema do tempo. Desvia-se do trilho costumeiro da poética em vigor. Não começa pela invocação, antes entre ex-abrupto na matéria do poema, o que era absolutamente novo:

Fumam ainda nas desertas praias lagos de sangue tépidos e impuros, em que ondeiam cadáveres despidos, pasto de corvos.

Não obedece à quase indefectível prática da oitava endecassílaba; é em verso branco, e os demais deles belíssimos. Não recorre ao maravilhoso pagão ou outro, não se encontra mácula de gongorismo. A língua é a do seu tempo, castiça, sem rebusca, clara, límpida, e o estilo natural e simples, apenas com o mínimo de artifício que a mesma composição exigia. Não refuge a misturar o burlesco com o grave, nem disfarça as feições realistas do seu reconto épico. Por todos estes rasgos, e por alguns outros sinais intrínsecos de metrificação, linguagem e estilo e mais pela liberdade espiritual e sentimentos liberais e humanos que o animam, é já o Uraguai um poema romântico, o precursor na poesia do tempo do romantismo americano, o iniciador do indianismo, que viria a ser no século XIX o traço mais distinto e significativo da renascença literária do Brasil.

Basílio da Gama tem de raiz a inspiração épica. Além do Uraguai, em que a provou excelentemente, do Quitubia (1791), que é, com pouca sorte aliás, outra demonstração dela, afetava o poeta o tom épico de preferência a outro, ainda em poemas de natureza a o não pedirem. Quase não cantou de amor, faltando por isso ao seu lirismo esse poderoso elemento sentimental e estético. É, porém, um espírito livre e um coração terno. Da liberdade de seu espírito que faz dele um liberal de antes dos tempos, há indícios sobejos não só no Uraguai, mas em vários poemas seus. Revela-se ainda o seu gosto por Voltaire, de quem traduziu a tragédia Mahomet, e a sua desafeição à guerra e às mesmas façanhas e glórias militares, insólitas no seu tempo. Não sabemos de outro poeta contemporâneo que haja tão declaradamente anteposto os labores e artes da paz, «às bélicas fadigas» e augurado uma futura era pacífica, em que fugissem do mundo

As guerras sanguinosas detestadas das mães e das esposas,

e em que

No capacete a abelhas os favos cria, curva-se em foice a espada reluzente.

Também da sua ternura há exemplos bastantes nos seus versos, particularmente nas lembranças do seu amigo Alpoim, no Uraguai, e de outro amigo seu, o árcade romano Mireu, no mesmo poema, e em vários outros menores, aludindo enternecido a amigos e benfeitores. A sua obra deixa uma grata impressão de admirativa simpatia.

Na história literária, a importância de Basílio da Gama é o maior do que a de qualquer outro da mesma plêiade. Sobre se revelar no Uraguai porventura o melhor engenho de entre esses poetas, foi o primeiro a tomar por motivos de inspiração cousas americanas e pátrias. Soube demais cantá-las com um raro espírito de liberdade cívica e poética, sem as escravizar a fórmulas consagradas e ainda com peregrinas qualidades de invenção e estilo. Observou Costa e Silva que foi Santa Rita Durão o fundador da poesia brasileira, por ser «o primeiro que teve o bom senso de destacar-se das preocupações européias que havia bebido nas escolas, para compor uma epopéia brasileira pela ação, pelos costumes, pelos sentimentos e idéias e pelo colorido local». Esqueceu-lhe que o Uraguai precedera o Caramuru de doze anos e que mais do que estes se mostrava estreme de preocupações européias bebidas nas escolas.

Deste grupo de poetas é Frei José de Santa Rita Durão o mais velho, pois nasceu em Cata Preta, distrito de Mariana, no qual também viu a luz Cláudio da Costa, pelos anos de 1717 a 1720. Seu pai, o sargento-mor Paulo Rodrigues Durão, era português e abastado. Ignoramos a nacionalidade da mãe, D. Ana Garcêz de Morais. Era o pai homem religioso e nimiamente devoto. Por sua morte deixou importantes legados para quantidade de objetos e esmolas por sua alma e pelas de seus pais, escravos e outros. Iguais sentimentos piedosos seriam os da família, consoante era então comum em Minas. Explica-se assim a vocação religiosa de seu filho José, o nosso poeta, que depois de estudos preparatórios no colégio dos jesuítas do Rio de Janeiro, onde a vocação incipiente se lhe teria desenvolvido, passou-se a Portugal. Ali, na ordem de Santo Agostinho, entrou, fez o noviciado e, em 1738, entre os vinte e vinte três anos, professou. Para seus alimentos dera o pai à ordem dois mil cruzados. Já professo num colégio desta, em Coimbra, fez os estudos para a formatura na Universidade, onde se doutorou em teologia. Foi lente na sua Ordem e teve o título de substituto na Universidade. Viveu uma vida feliz de estudos e alguns pequenos trabalhos literários. Cultivou então a amizade do célebre erudito português, o futuro arcebispo de Évora, Frei Manoel do Cenáculo, que associou o nosso patrício aos seus estudos das línguas orientais contra o estreito confinamento dos jesuítas na só literatura latina. Não se sabe ao certo por que se achou Durão na contingência de deixar Portugal, retirando-se, senão fugindo, para Espanha. Na carta em que conta a Fr. Manoel do Cenáculo a sua escapula e lhe reclama o apoio, apenas diz: «As minhas desgraças me levaram inconsideradamente à Cidade... em 1762», sem explicar quais desgraças foram. Após alguns vexames que por motivo de estado de guerra entre a Espanha e Portugal ali sofreu, inclusive a prisão, pôde transferir-se à Itália, onde se achava já em 1764. Em Roma soube fazer-se patrocinar por alguns figurões da Cúria, entre os quais o famoso Ganganeli, o futuro papa Benedito XIV, que lhe arranjou o lugar de bibliotecário da livraria pública Lancisiana, onde esteve por nove anos, bem aceito dos literatos romanos, que o meteram em várias das suas sociedades literárias. É notável que ele não figure com algum nome arcádico, indicando ter pertencido à Arcádia Romana. Naquele cargo aposentou-se, no propósito de concorrer a uma cadeira das que se esperava vagassem na Universidade de Coimbra com a iminente expulsão dos jesuítas. Graças, parece, ao apoio de Cenáculo e à benevolência do nosso compatriota D. Francisco de Lemos, amigo de Durão, recém-nomeado por Pombal reitor da Universidade, realizou-se-lhe aquele propósito, pois o encontramos em 1778 recitando como opositor a oração de sapiência na abertura das aulas.

Por esse tempo teria começado o seu poema, cuja composição continuaria quando, acaso receoso da reação antipombalina, recolheu à casa de sua ordem em Lisboa, em 1779. Aí concluído ou limado, foi publicado em 1781.

Em nenhum dos poetas da plêiade mineira, ou quaisquer outros seus contemporâneos, o nativismo que preludiou aqui o nacionalismo e o patriotismo, como estímulo de inspiração literária, manifesta-se tão claramente como em Santa Rita Durão. O seu poema tinha já, por volta de 1778 a 80, quando foi imaginado e escrito, um propósito patriótico. «Os sucessos do Brasil, escreveu o poeta nas Reflexões prévias, antepostas ao seu livro, não mereciam menos um poema que os da Índia. Incitou-me a escrever este o amor da pátria.» Como por trás de Camões, trazido aqui à memória por Durão, vemos a João de Barros, o insigne historiador do descobrimento e conquista da Índia, assim atrás de Santa Rita Durão enxergamos Rocha Pita, o autor vanglorioso da História da América portuguesa. Não precisava Durão confessar que o lera. O seu poema bastaria para o atestar e certificar-nos de que dele principalmente derivam não só passos, incidentes e digressões do Caramuru, mas principalmente o seu entusiasmo patriótico. Patriotismo, porém, que não era ainda o brasileirismo estreme, senão um sentimento misto, comum a todos esses poetas, de lealdade portuguesa e de amor à terra natal, sentimento que se dividia entre a nação, que era Portugal, e a pátria, que era o Brasil.

Sobre ser impertinente fazer do descobrimento da Bahia, ou ainda do Brasil, uma epopéia, à luz da estética não era muito melhor que o de Basílio da Gama o tema de Durão. Tinha, porém, sobre o daquele a vantagem do maior recuo do tempo, menor precisão ou maior incerteza histórica, dando ao poeta ensanchas a desenvolvimentos em que aproveitou a História do Brasil do descobrimento ao governo-geral e ainda a previsão da luta contra os holandeses. Como todos sabem, o assunto do poema do episódio meio histórico, meio lendário, do naufrágio do aventureiro português Diogo Álvares Correia, que, soçobrando nas costas orientais do Brasil, justamente no recôncavo da Bahia, escapou do naufrágio e caiu nas mãos dos índios que aí havia. Guardado para servir-lhes de repasto, conseguiu esquivar a sua triste sorte e dominar-lhes com o pavor que lhes causou matando no vôo um pássaro, e fazendo outras façanhas com um arcabuz que acertara salvar da catástrofe. Sobre esse fato verossímil, e que se teria repetido entre navegadores e selvagens, ignorantes das armas de fogo, bordou a imaginação popular circunstâncias e acrescentou desenvolvimentos que a história mais tarde, por mão do operosíssimo Varnhagen, provaria lendários, como a viagem de Diogo Álvares à França em companhia da gentia Paraguaçu, sua noiva, o batismo desta em Paris e o casamento deste casal, sendo padrinhos em ambas as cerimônias Henrique II e a sua mulher, a célebre Catarina de Médicis, que deu o seu nome à sua exótica afilhada. Diogo Álvares, dizia a lenda, perfilhada pelos cronistas, recebeu dos índios, por causa da arma flamante com que dava a morte, a alcunha de Caramuru. Este nome, que é simplesmente o de um peixe, e que lhe deram por o terem apanhado no mar, a nossa fantasia etnológica o interpretou de vários modos, todos evidentemente falsos. Não havia aliás em Diogo Álvares, nem houve nos seus atos, os predicados de um herói de epopéia, e a mesma lenda não lhos dá. Nem o poeta lhos soube emprestar que os relevassem.

Pela sua concepção e execução era o Caramuru, mais do que o Uraguai, um dos muitos poemas saídos da fonte camoniana. Sem embargo desta falta de originalidade inicial, da mesma forma e estilo poético, e de reminiscências do poema de Camões, tem o Caramuru qualidades próprias e estimáveis. Como poema nacional leva a primazia ao Uraguai, apesar da sua inferioridade poética. Além da intenção manifesta que o gerou como a epopéia do descobrimento do Brasil, é o Caramuru mais nosso pela sua ação e teatro dela, o Recôncavo, o berço por assim dizer da nacionalidade que se ia criar aqui, e ainda pelos múltiplos testemunhos do seu interesse e amor do país. Descreve-o e conta-o Durão já com o desvanecimento de sua grandeza e excelência e a previsão de seus altos destinos. Estes, porém, se lhe não antolhavam ainda na formação de uma nacionalidade distinta, mas apenas no concurso decisivo que a sua pátria de nascimento traria à restauração da grandeza da nação cuja era parte

O Brasil aos lusos confiado será, cumprindo os fins do alto destino, instrumento talvez neste hemisfério de recobrar no mundo o antigo império.

Infelizmente o modo, imposto pelo seu estado de frade, e frade de bons costumes, por que tratou o drama amoroso, e que serve de núcleo ao seu poema, privou-o de dar-lhe a emoção que nos poderia ainda comover. Gravíssima falta de senso estético foi o fazer de Diogo Álvares e Paraguaçu, o aventureiro português e a índia sua namorada e depois sua mulher, um casal de castos amantes. É uma situação contra a natureza, contra os fatos, contra a verossimilhança, e mais que tudo inestética. Não se imagina um rude aventureiro português do século XVI, ardente e voluptuoso, quais se mostraram na conquista, na situação singular, e como quer que seja esquerda, descrita por Durão, com uma formosa índia, moça e amorosa, em meio desta natureza excitante e dos fáceis costumes indígenas, e sem nenhum estorvo social, comportando-se qual se comportou o seu, isto é, como um santo ou um lendário cavaleiro cristão, e a reservando, num milagre de continência, para sua esposa segundo a Santa Madre Igreja e ainda em cima doutrinando-a que nem um missionário profissional sobre as excelências da castidade. Não obstante o seu profundo catolicismo, Camões não caiu neste erro, e ao contrário enalteceu o seu poema com os conhecidos passos de uma tão artística voluptuosidade.

Como o Uraguai, o Caramuru insinua o americanismo na poesia portuguesa, abre aos índios e às cousas indígenas maior espaço na brasileira do que o fizera aquele, e funda o primeiro indianismo. Não os acompanharam os outros poetas do grupo. Nestes mesmos, porém, sentimentos e inspirações mais nativos e mais nativistas do que até aí, as suas repetidas alusões ou referências a cousas pátrias, a nostalgia dela em alguns deles entremostrada, procedem incontestavelmente de Basílio da Gama e Durão, mormente do primeiro, do qual há claras impressões em quase todos estes poetas. Durão parece não os haver tocado tanto. Não se encontram reminiscências, e menos memória deles, em seus poemas. É que o seu trazia ainda muito da velha fórmula que o arcadismo desses poetas menosprezava. Sem embargo do propósito patriótico de Durão, e das manifestações eloqüentes do seu brasileirismo, eles, mais artistas que patriotas, lhe preferiram, como nós hoje, Basílio da Gama, a quem Cláudio da Costa, Alvarenga Peixoto e Silva Alvarenga louvaram com admirativa estimação e imitaram, mostrando sentirem o que de novo, inspirado e alto havia no seu gênio.

A três dos representantes da plêiade mineira, Cláudio da Costa, Alvarenga Peixoto e Tomás Gonzaga, tem sido atribuído o poema satírico das Cartas Chilenas, composto em Minas, na segunda metade do século XVIII. É mais que uma sátira, uma diatribe contra o governador D. Luís da Cunha Menezes e sua administração. Ele figura como o herói burlesco sob o pseudônimo de Fanfarrão Minésio. Fingem-lhe a ação e sucessos passados em Santiago do Chile, nomes que, conforme já notara Varnhagen, cabem no verso tanto como Vila Rica e Minas.

Escrito em forma de cartas dirigidas por um tal Critilo e certo Doroteo, ambos poetas, tem este poema, se assim se lhe pode chamar, real valor literário. Saíram à luz pela primeira vez, em edição da revista Minerva Brasiliense, no Rio de Janeiro, em 1845, em número de sete. Deu uma segunda, mais completa do que esta, com treze cartas ou cantos, a Livraria Laemmert, desta cidade, em 1863. Dirigiu-a Luís Francisco da Veiga, autor conhecido de vários estimáveis trabalhos históricos, o qual, entre os papéis de seu pai, encontrara um manuscrito do poema. Nesse manuscrito, que aliás não era um autógrafo, ocorre a assinatura de Tomás Antônio Gonzaga (sic) sob a data: Vila Rica, 9 de fevereiro de 1798, no fim da dedicatória em prosa, que precede imediatamente o «Prólogo» igualmente em prosa. O pai do editor literário, Saturnino da Veiga, ainda contemporâneo daqueles poetas, o acreditava de Gonzaga. O primeiro editor das Cartas Chilenas, o escritor chileno aqui residente e redator da Minerva Brasiliense, Santiago Nunes Ribeiro, com a sua edição publicara um outro testemunho da autoria de Gonzaga. É o de Francisco das Chagas Ribeiro, abonado por Nunes Ribeiro como «ancião entusiasta da literatura brasileira, depositário de muitos dos seus tesouros e cujo testemunho, se não é irrecusável, é muito poderoso e digno de respeito». (Apud Cartas Chilenas, edição Laemmert, introdução de L. F. da Veiga). Francisco das Chagas Ribeiro, sobre o qual se me não deparou outra informação, pôs no seu manuscrito esta declaração: «Tenho motivos para certificar que o Dr. Tomás Antônio Gonzaga é o autor das Cartas Chilenas». E assinou.

Estas duas atribuições, por sujeitos ainda contemporâneos do poeta, e ao que parece respeitáveis, bastariam, em boa crítica, para dirimir a questão, se não houvesse contra elas valiosos testemunhos ou documentos.

Depois de estudo mais atento das Cartas, eu, que de primeiro não acreditava fossem de Gonzaga, pendo hoje a crer que dele são, e não vejo razão entre as muitas dadas, que prevaleça contra a atribuição que de sua autoria lhe fazem Saturnino da Veiga e Chagas Ribeiro. Ao contrário, militam a favor do seu testemunho os seguintes motivos: a) pelo seu valor literário e poético (que é muito maior do que se tem dito) não podem essas Cartas ser senão de algum dos poetas conhecidos que viviam em Minas na época da sua composição, não sendo provável a existência de nenhum outro capaz de as escrever e que ficasse de todo incógnito; b) esse poeta devia reunir duas condições, manifestas no contexto do poema: ser português e ser inimigo rancoroso do governador satirizado. Que o autor das Cartas Chilenas é português de naturalidade mostram-no os versos 5 e 15 da pág. 149 da edição Laemmert, em que positivamente alude à sua vinda da Europa e ao seu nascimento em Portugal. Revela-se ainda português nas suas várias alusões todas pouco simpáticas à terra e às suas cousas, e em que, atacando acrimoniosamente o governador e a sua administração, não malsina jamais do regime ou do governo colonial. Revê-se ainda o reinol, branco estreme e de categoria fina, na sua manifesta antipatia aos mulatos, a quem não perde ensejo de apodar (págs. 106, 203, 312 e passim). A sua linguagem nimiamente castiça, de boleio de frase e vocabulário muito de Portugal, e outros sinais idiomáticos que uma análise miúda revelaria, traem também o português. Ora, como o único português do grupo era Gonzaga, a ele se deve atribuir o poema, onde aliás se encontram pensamentos, imagens e expressões que coincidem com as da Marília de Dirceu. (Cp. pág. 100: «Que importa que os acuses...» com a lira XXXVI da 1ª parte).

As Cartas são evidentemente de um inimigo acérrimo do governador, a quem não poupam as mais terríveis acusações e convícios. Ora, dos três poetas que somente podiam ser os seus autores, e únicos a quem têm sido atribuídas, só Gonzaga era sabidamente inimigo dele. Alvarenga Peixoto, ao contrário, é um favorecido, um protegido de Cunha Menezes, que o fez coronel, honraria que o desvaneceu mais que o seu título de doutor, e lhe concedeu adiasse o pagamento de certa dívida à Fazenda Real.

Cláudio era personagem quase oficial, ligado ao governo da Capitania, que por duas vezes (1762-1765 e 1769-1773) secretariara, era já setuagenário, idade menos apropriada às violências da sátira. Gonzaga, ao contrário, como ouvidor da comarca e deputado à Junta de Fazenda, achou-se em conflito com aquele governador, quando foi da arrematação do Contrato das entradas no triênio de 785 a 787, em que Cunha Menezes «de sua própria particular autoridade», segundo o Ministro do Reino, Martinho de Melo e Castro (V. Rev. do Inst., VI, 54 e seg.) e contra o voto fundamentado de Gonzaga, mandou adjudicar ao seu protegido José Pereira Marques, o Marquesio das Cartas Chilenas, aquele contrato. Foi esta questão do contrato das entradas, em que, talvez, tanto o governador como o ouvidor estavam empenhados por martes diversas, que criou a recíproca hostilidade de Cunha Menezes e Gonzaga, e principalmente motivou as Cartas Chilenas, e que fez o poeta tomá-lo «entre dentes», segundo a sua expressão, muito portuguesa, do início da 4ª. E a 8ª é inteiramente consagrada à prevaricação do governador em contratos e despachos, de que o poeta o acusa e malsina quase com as mesmas razões e palavras que a Gonzaga ouvidor atribuiu o Ministro Melo e Castro no documento acima citado. Repetirei que é notável que, maldizendo este poema tão afrontosamente do governador e da sua roda, jamais deixa perceber o menor sentimento de desgosto da metrópole e do regime colonial. Um português qualquer poderia aliás deixá-lo transparecer; não o podia Gonzaga, que, como magistrado reinol e vogal da Junta da Real Fazenda, fazia parte conspícua do governo da Capitania. Não obstante esta sua cautela, só a sua autoria conhecida, ou desconfiada, de tão terrível libelo contra um recente governador e vários funcionários seus parciais explica que ele fosse, contra a sua manifesta inocência, comprometido numa conspiração, se conspiração houve, de que tudo -os seus sentimentos de português, a sua lealdade de funcionário, o seu interesse pessoal e a sua situação de noivo amorosíssimo- forçosamente o afastava. O argumento de que o poeta sentimental e mimoso de Marília não podia escrever aquelas violentas Cartas, de virulenta sátira, roçando às vezes pela obscenidade, é de uma pobre psicologia, contradita por mil exemplos da história literária.

Todos os poetas deste grupo, o que talvez se não reproduza mais na história da nossa literatura com qualquer dos grupos literários que nela possamos distinguir, além do estro, tinham a mais completa cultura literária do tempo. Todos fizeram com aproveitamento as suas humanidades, todos, exceto Basílio da Gama, tinham o seu curso universitário, eram doutores em leis ou cânones. Todos parecem a par do saber da sua época, ao menos do que, sem estudos especiais, se adquire com aquela cultura. Os brasileiros do grupo todos saíram do seu país, estanciaram largos anos em Portugal e alguns, como Durão e Basílio, estiveram em Espanha e Itália. Liam os enciclopedistas franceses. Quase todos, além do latim, sabiam o grego, e de ambas as línguas versavam os poetas no original. Durão, afora essas duas línguas clássicas, sabia o hebraico. A todos eram familiares os escritores antigos, particularmente os poetas, e os principais escritores e poetas modernos, italianos, franceses e espanhóis, e ainda alguns ingleses. Cláudio da Costa poetava em italiano, acaso não menos excelentemente que em português, e o podia fazer ainda em castelhano e francez; traduziu Voltaire e cantou a Milton. Basilio da Gama tambem traduziu Voltaire.

Conheceram-se, trataram-se, foram camaradas ou amigos quasi todos. Ligou-os o sentimento da patria comum, o mesmo amor as letras, a irmandade do estro, e mais, o mesmo espirito liberal, comum a todos e manifesto na obra de todos. Silva Alvarenga compreendia e admirava a Basilio da Gama e o cantou com entusiasmo, pode dizer-se patriotismo. Claudio da Costa, com igual entusiasmo, consagrou uma ode aos arcades seus patricios e endereçou poemas a Alvarenga Peixoto. Serviu tambem de centro não só a este e a Gonzaga, mas a outros menores que poetavam em Vila Rica, que todos, segundo a veridica tradição, lhe submetiam ao saber e experiencia os seus versos. Gonzaga alude carinhosamente em suas liras a Claudio e a Alvarenga Peixoto, seus intimos. Naquela epoca de acesa briga de poetas, se não sabe que hajam os nossos entre si brigado.

Todas essas coincidencias e circunstancias não foram certamente alheias á constituição deste grupo de poetas e á feição e distinção que os assinalam na nossa literatura e ainda na poesia portugueza. Para alguns deles ao menos, a sua justa celebridade foi grandemente ajudada, sem quehra aliás no seu merecimento, pelos desgraçados sucessos em que foram envolvidos. Aureolando-os de martirio, não serviriam pouco, e justo é que assim fosse, á sua gloria de poetas.

 

A tres destes poetas, Claudio da Costa, Alvarenga Peixoto e Tomaz Gonzaga, tem sido atribuido o poema satirico das Cartas Chilenas, composto em Minas, na segunda metade do seculo XVIII. É mais que uma satira, uma diatribe contra o governador D. Luiz da Cunha Menezes e sua administração. Ele figura como o heroe burlesco sob o pseudonimo de Fanfarrão Minesio. Fingem-se-lhe a acção e sucessos passados em Santiago do Chile, nomes que, conforme já notara Varnhagen, cabem no verso tanto como Vila Rica e Minas.

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