História da Literatura Brasileira/V

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Capítulo V

Aspectos literários do século XVIII

Literariamente, o século XVIII se caracteriza pela escassez de poetas na sua primeira metade, pela fundação das academias literárias do fim do seu primeiro quartel aos começos do último, pela abundância da sua literatura histórica, e, o que principalmente o ilustra, pelo advento, no seu terço final, de um grupo de poetas, que foram os melhores no período colonial.

Excluído Antônio José da Silva, o engenhoso e mal-aventurado judeu fluminense, queimado pela Inquisição de Lisboa, em 1739, nenhum poeta de algum valor se nos depara no Brasil naquele momento. Antônio José, de brasileiro só teve, porém, o acidente do nascimento. Sua formação e atividade literária foi toda portuguesa, e não há no seu estilo, quer de prosador quer de poeta, bem como na sua inspiração, nada que não seja genuinamente português. E o que porventura não é português é antes italiano (como as coplas de que misturou as suas óperas) ou espanhol do que brasileiro.

Não houve nesse tempo nenhum poeta equivalente a Gregório de Matos ou mesmo a Botelho de Oliveira. É, entretanto, crescido o número de escrevedores e versificadores do século XVIII, de que se encontram menções. Só Jaboatão, e unicamente na sua ordem franciscana, nomeia perto de trinta e lhes menciona as obras, muitas impressas, outras manuscritas: de devoção, panegíricos de santos, sermões e também versos e história7. O mesmo sucedia nas outras ordens religiosas. A prosa, porém, tirante a dos pregadores, nenhum de mérito que mereça recordação, e a de algum memorialista ou noticiador da terra, igualmente somenos, não deixou de si lembrança estimável.

Dos poetas do século XVII anteriores aos mineiros, não há nenhum que se salve por uma inspiração feliz como a da Ilha de Maré, ou por qualquer feição particular como a satírica de Gregório de Matos. Somenos sob todos os aspectos, o poeta dos Eustáquidos, Fr. Manoel de Santa Maria Itaparica, merece todavia comemorado pela sua Descrição versejada da ilha de Itaparica. Os Eustáquidos são um «poema sacro e tragicômico» da vida de S. Eustáquio. Esta classificação do próprio autor e o seu objeto já deixam ver que sensaboria metrificada não é. Vem-lhe apensa a Descrição, interessante somente por ser a segunda manifestação na poesia brasileira da mesma emoção nativista, patriótica se quiserem, que produziu a Ilha de Maré e que constituiria um rasgo particular da nossa poesia8.

Como na Prosopopéia de Bento Teixeira e geralmente em todos os versejadores do período colonial, é manifesta neste poema de sessenta e cinco oitavas a lição de Camões. Esta infelizmente revela-se apenas na imitação canhestra e até na paródia de algum verso do grande épico ou ainda no arremedo de situações ou passos dos Lusíadas.

Não sem galanteria invoca o poeta a Musa, como sua companheira de todos os tempos, bons e maus:

Musa que no florido de meus anos teu furor tantas vezes me inspiraste e na idade em que vêm os desenganos também sempre fiel me acompanhaste, tu, que influxos repartes soberanos deste monte Helicon, que já pisaste, agora me concede o que te peço para seguir seguro o que começo.

O seu verso tem quase sempre esta facilidade e correção. A descrição da sua ilha natal, mais vasada nos moldes clássicos que a de Botelho de Oliveira, tem, conquanto topográfica, a emoção nativista que falta a Bento Teixeira. Pinta a vida dos pescadores da ilha, a pescaria da baleia, sua principal indústria, a fabricação do seu azeite, e noticia os produtos, dons e bens da terra, seus frutos e novidades. E terminando, frouxamente aliás, a descrição da ilha que fica no

Porto em que está hoje situada A opulenta e ilustrada Bahia

assim conclui:

Até aqui Musa: não me é permitido que passe mais avante a veloz pena; a minha pátria tenho definido com esta descrição breve e pequena; e se o tê-la tão pouco engrandecida não me louva mas antes me condena, não usei termos de poeta esperto, fui historiador em tudo certo.

Com o mesmo sentimento nativista sensível, embora sem emoção notável, desde a Prosopopéia e mais manifesto em Botelho de Oliveira, precedeu este poema de alguns anos o de Santa Rita Durão. Também no canto V do seu poema Eustáquidos, Fr. Santa Maria Itaparica, num sonho que finge, põe certo Postero a profetizar o advento do Brasil e nascimento do poeta, anunciando o poema da Descrição da sua ilha natal, que ele

Há de cantar em lira temperada.

Tudo isto com grande insulsez. O tal poema sacro e herói-cômico por si só não daria ao nome do frade poeta o mínimo relevo se lho não levantasse a emoção simpática com que cantou a sua pátria, como à ilha do seu nascimento chamou, e não documentasse a continuidade da inspiração que se ia criando e ficaria na poesia brasileira como um dos seus traços distintivos. Sob aspecto da língua não deixa de ser interessante a medíocre produção de Fr. Itaparica. A língua literária do Brasil ainda era então e seria por todo o período colonial, apenas talvez com menos arte e menos número, a mesma de Portugal. Não havia ainda tempo para que os cruzamentos e outras influências mesológicas houvessem modificado o falar brasileiro, e menos para que as modificações porventura havidas passassem do falar corrente à língua dos escritores educados por portugueses e feitos só, ou muito principalmente, na leitura de livros portugueses ou latinos. A de Fr. Itaparica é, pois, a língua do tempo, gongórica, empolada e sobretudo amaneirada. Todas as impressões e idéias se lhe reduzem em adjetivos, que apenas com variações sinonímicas se repetem copiosamente com pouca propriedade. Aliás o defeito não é raro, mesmo nos chamados clássicos. Usa abundantemente de termos pouco vulgares ou já então obsoletos e também de espanholismos e neologismos, tudo denotando rebusca de linguagem. Encontram-se-lhe: elado, fenestras, temblar, gateando, lesura, trufatil(?), olorizar, cláveo, estúpeo (do grego stupeo, caule, mas feito adjetivo?), pevidosa, ahulidos(?). Descrevendo o preparo do azeite da baleia em Itaparica, fala dos negros empregados nesse serviço:

Cujos membros de azeite andam untados daquelas cirandagens salpicados.

em que a palavra cirandagem desviada do seu sentido vernáculo (=sarandalha) alimpaduras que se apartam cirandando (joeirando) e se lançam fora, tem já a acepção brasileira de restos imprestáveis, imundície miúda, guloseimas vis.

Nenhum outro poeta que mereça lembrado ou mesmo que o não mereça, mas com obra conhecida, nos depara este sáfaro período da poesia no Brasil. A música do parnaso foi publicada em 1705, mas os seus poemas são incontestavelmente dos últimos anos do século anterior, nos quais passou também a atividade literária do seu autor. Outrossim poetou nesta época Sebastião da Rocha Pita, acaso a melhor figura literária dela. A sua produção poética, porém, nos seria totalmente desconhecida não foram os documentos relativos às academias literárias de que fez parte, existentes na Biblioteca Nacional e as transcrições deles feitas por Fernandes Pinheiro.56 Há notícia vaga e insegura de que escrevera também um romance em verso castelhano. É como historiador que ele tem um lugar na nossa literatura colonial.

Só para o fim da terceira década do século XVIII, se nos antolham alguns escritores em prosa mais estimáveis que os aludidos. Seguindo de perto o seu aparecimento o das academias literárias aqui fundadas desde meados da segunda década, não é porventura indiscreto ver neles influências destas.

Como assembléia ocasional de literatos que reciprocamente se recitavam os seus versos e prosas, havia academias no Brasil ainda em antes do século XVIII. Gregório de Matos, notavelmente, e elas se refere nos seus versos satíricos. Mas como associações literárias e regularmente organizadas datam de 1724. Foi nesta era criada a primeira, a Academia Brasileira dos Esquecidos. Para em tudo imitar as da metrópole, cujo arremedo era, fundava-se conforme aquelas com a proteção real, sob os auspícios do vice-rei, ou antes estabelecida por ele no seu próprio palácio. Nestes termos, imagem acabada do estilo da época e seu, lhe noticia a fundação Rocha Pita, que foi um dos seus membros mais conspícuos:

A nossa portuguesa América (e principalmente a província da Bahia), que na produção de engenhosos filhos pode competir com Itália e Grécia, não se achava com as academias introduzidas em todas as repúblicas bem organizadas, para apartarem a idade juvenil do ócio contrário das virtudes e origem de todos os vícios e apurarem a sutileza dos engenhos. Não permitiu o vice-rei que faltasse no Brasil esta pedra de toque no estimável oiro dos seus talentos, de mais quilates que o das suas minas. Erigiu uma doutíssima academia, que se faz em palácio na sua presença. Deram-lhe fama as pessoas de maior graduação e entendimento que se acham na Bahia, tomando-o por seu protetor. Têm presidido nela eruditíssimos sujeitos. Houve graves e discretos assuntos, aos que se fizeram elegantes e agudíssimos versos; e vai continuando nos seus progressos, esperando que em tão grande proteção se dêem ao prelo os seus escritos, em prêmio das suas fadigas.»

A Academia dos Renascidos fundava-se em 1759 com quarenta sócios de número, ou efetivos, e oitenta supranumerários, ou correspondentes. A maioria versejava ou fazia prosa oficial ou acadêmica. Glosando motes, versificando temas preestabelecidos ou também amplificando retoricamente assuntos oferecidos aos seus curtos engenhos, nenhum destes versejadores ou prosistas tinham virtudes literárias por que perdurasse na memória dos homens e as suas obras, ainda as impressas, é como se não existissem.

No Rio de Janeiro foi instituída em 1736 a Academia dos Felizes, e mais tarde, em 1752, a dos Seletos, que de fato se resumiu a uma sessão magna literária, como diríamos hoje, consagrada a celebrar o governador e capitão-general Gomes Freire de Andrade, que a presidiu. Tinham estas reuniões a vantagem de serem prazo dado e auditório fácil e benévolo de letrados e poetas e portanto um estímulo oferecido ao seu estro.

Criadas quando acaso já não correspondiam às condições da sua origem européia, mais por imitação das do Reino, vontade e inspiração oficial do que como uma exigência e produto na incipiente cultura indígena, tiveram as academias literárias no Brasil, uma existência transitória e inglória. Mas não de todo inútil e sem efeito nessa cultura e na literatura que a devia representar. Apesar da origem oficial, e de serem um arremedo, havia porventura nelas um sentimento de emulação com a metrópole, e portanto um primeiro e leve sintoma do espírito local de independência. Acaso a denominação da primeira, de Academia Brasileira dos Esquecidos, revê o despeito dos seus fundadores contra o esquecimento dos letrados coloniais na formação das academias portuguesas anteriores. O propósito que não só essa, mas a dos Renascidos e a dos Felizes declaradamente tiveram, de estudar sob os seus diversos aspectos o Brasil e a sua história, traduz evidentemente um íntimo sentimento de apego à terra, com a intenção, ainda certamente pouco consciente, da parte que no seu desenvolvimento devia caber aos seus letrados.

A qualificação que todas, apesar do oficialismo da sua origem ou existência, se deram de Brasileiras (brasílica), quando ainda não existia ou não era vulgar o patronímico da terra, porventura já revela um sentimento de separação, do qual não tinham quiçá esses acadêmicos consciência, mas que o despeito ou motivos menos egoísticos, como a ufania da sua terra, criara. Como quer que seja apontavam todas ao progresso das letras e da cultura espiritual do Brasil, e trabalhando, ainda mal, como trabalharam, por esse propósito, trabalharam primeiro pela nossa emancipação intelectual e, por esta, sem aliás disso se aperceberem, pela nossa emancipação nacional. Isso, entretanto, não as impediu de continuarem a fazer a mesma obra literária dos portugueses, e fazerem-na inferiormente. Sobre haverem iniciado o comércio e trato recíproco dos homens de letras do Brasil, convocando-os de toda a parte dele para se lhes associarem, tiveram o efeito imediatamente útil de chamar a atenção e despertar o gosto e o amor do estudo da nossa história e das nossas cousas. São testemunho desse seu influxo a História da América Portuguesa, com que Rocha Pita realizou um dos propósitos da Academia Brasílica dos Esquecidos, e a História militar do Brasil, de José de Mirales, sócio da dos Renascidos, e confessadamente escrita por sua influência.

Estes, com Nuno Marques Pereira, o autor do Peregrino da América, são os escritores de prosa mais conhecidos desta fase da nossa literatura. Deles, porém, só merecem a atenção da história literária Rocha Pita e Marques Pereira.

De Nuno Marques Pereira não sabem os biógrafos senão que nasceu em Cairu, na Bahia, em 1652, e faleceu em Lisboa em 1728. Dos seus estudos, vida e feitos nada se conhece, que não seja suspeito de infundado. Era presbítero secular. No intuito piedoso de denunciar ou de emendar os costumes do Estado, que se lhe antolhavam péssimos, escreveu o livro citado, único lavor literário que se lhe sabe, e cujo título completo lhe define o estímulo e propósito. Chama-se compridamente: Compêndio narrativo do peregrino da América em que se tratam vários discursos espirituais e morais com muitas advertências e documentos contra os abusos que se acham introduzidos pela milícia diabólica no Estado do Brasil.

O Peregrino da América, como abreviadamente se lhe chama, não é de modo algum um conto ou novela, não tem o menor parentesco com a chamada literatura de cordel, cousa que no Brasil é do século XIX, quando aqui apareceu como imitação seródia ou contrafação da portuguesa, então já em decadência. Não se pode dizer que o livro de Marques Pereira haja iniciado o gênero romanesco ou novelístico no Brasil. É, porém, uma ficção, como o são também os Diálogos das grandezas do Brasil. Uma ficção de fim e caráter religioso, obra de devoção e edificação. Consiste totalmente a ficção em o autor, ou quem finge escrever a narrativa, dizer-se um peregrino ou viajor que trata da sua salvação (p. 3, ed. 1728) e que andando pelo mundo aproveita ensejos e oportunidades de doutrinar cristãmente os diversos interlocutores que se lhe deparam, e esse mundo que, segundo um destes, o Ancião do cap. I, «é estrada de peregrinos e não lugar nem habitação de moradores, porque a verdadeira pátria é o Céu». Este pensamento do misticismo cristão é o de todo o livro. Nem ele tem outra fabulação que os repetidos fingidos encontros do Peregrino com indivíduos com quem troca reflexões morais e religiosas, no propósito manifesto de os doutrinar. Seria ele de todo desinteressante para nós, que não nos compadecemos mais com estas exortações parenéticas, se o autor lhes não houvesse freqüentemente misturado cousas da vida real, contado anedotas, citado ditos e reflexões profanas, aplicado a sua doutrina e moralidade a casos concretos, revendo a vida e os costumes do tempo e lugar, referido fatos da sua experiência e feito considerações através das quais divisamos sentimentos e idéias contemporâneas e aspectos da existência colonial. Infelizmente esta feição do seu livro, que seria para nós hoje a mais importante e aprazível, é de muito excedida pela de prédica de moral caturra e trivialíssima, na pior maneira do mau estilo da época. Os moralistas só os sofremos em literatura com originalidade, agudeza e bom estilo. Nada salva, pois, o Peregrino da América de ser a sensaboria que se tornou mal passado o século em cujo primeiro terço foi publicado. Não pensavam assim os seus contemporâneos. Este livro, que raros serão capazes de ler integralmente, foi um dos mais lidos no seu tempo e no imediatamente posterior, como provam as cinco edições que dele se fizeram em menos de quarenta anos, número considerável para a época.

Não era romance ou novela, mas em prosa e impressa era a primeira obra de imaginação escrita por natural da terra. E dizia de cousas desta, e de envolta com referências aos seus costumes, notações de sua vida, alusões aos seus moradores, derramava-se em considerações de suas manhas. Talvez esteja principalmente nesta atualidade o segredo da sua estimação e sucesso. Já não era, todavia, tanta a dos letrados seus patrícios para o fim do século, pois Silva Alvarenga, no canto V do seu poema herói-cômico O desertor das letras (1774), enumerando livros então considerados somenos e desprezíveis, cita entre eles o Peregrino da América.

Ao Peregrino da América excedem sem dúvida muito em valor literário, em distinção de pensamento e excelência de expressão as Reflexões sobre a vaidade dos homens, de Matias Aires da Silva de Eça, publicada em Lisboa em 1752. Entretanto são quase desconhecidas, mesmo dos eruditos e dos historiadores mais minuciosos da nossa literatura, não obstante o apreço que parece haverem merecido dos contemporâneos, se tal se pode inferir das quatro edições que teve até 1768. Matias Aires nasceu em São Paulo a 27 de março de 1705, de José Ramos da Silva, Cavaleiro da Ordem de Cristo e Provedor da Casa da Moeda de Lisboa, e de sua mulher D. Catarina de Horta. Não se lhe conhece a data da morte. Na companhia de seus pais foi para Portugal com menos de 12 anos, ali graduou-se de mestre em artes na Universidade de Coimbra e substituiu o pai na Provedoria da Casa da Moeda, e, parece, nunca mais tornou ao Brasil. Seria, pois, um espírito de pura formação portuguesa, apenas melhorando, ou somente modificado, quanto à cultura, pela estadia em França, onde se formou em direito canônico e direito civil. Pode ser estivesse também em outros países europeus. Além das Reflexões sobre a vaidade dos homens ou discursos morais sobre os efeitos da vaidade, com o mesmo objeto de filosofia moralizante escreveu mais uma Carta sobre a fortuna, que saiu anexa à 4ª edição das Reflexões (1786). Há também da sua lavra, mas já em outra ordem de idéias, o Problema de arquitetura civil, por que os edifícios antigos têm mais duração e resistem mais ao tremor de terra que os modernos? (Lisboa, 1777) e um Discurso congratulatório pela felicíssima convalescença e real vida de El-Rei D. José, saído em 1759.

Como moralista, Matias Aires ainda seria hoje benemérito de leitura e estima, sequer pela maior isenção do seu espírito das estreitezas do moralismo eclesiástico dominante no seu tempo, e também pela sua expressão mais desempeçada dos vícios estilísticos do tempo, mais livre, menos pesada e até mais elegante. Encontra-se-lhe mesmo, não obstante não fazer senão glosar a velha lição judaico-cristã sobre a vaidade, um ou outro conceito menos vulgar finamente enunciado. Ele seria o melhor dos nossos moralistas se de fato a sua obra não valesse principalmente ou quase somente como uma curiosidade literária daqueles tempos, sem tal superioridade de pensamento ou de expressão que lhe determine a integração nas nossas letras, e menos qualquer repercussão ou influxo nelas9.

O aparecimento destas duas obras é um acontecimento literário acaso mais importante que a numerosa produção poética anterior. A prosa é a linguagem da virilidade e da razão. Entrando a exprimir-se também em prosa quando até aí, salvo o exemplo isolado de Fr. Vicente do Salvador, só em verso se exprimira, dava a mentalidade que se ia formando, mostra de maior madureza e variedade de aptidões. O versar das letras históricas e outras, no mesmo século, pelos Mirales, Jaboatões, Taques, Madres de Deus, Borges da Fonseca, Velosos, sem embargo da insuficiência literária dos seus produtos, mais claramente o comprova.

Sebastião da Rocha Pita nasceu na cidade da Bahia a 3 de maio de 1660. Foram seus pais João Velho Godin e D. Brites da Rocha Pita, filha do Capitão-Mor Sebastião da Rocha Pita, «uma das primeiras e mais poderosas pessoas de Pernambuco», informa, justamente desvanecido da sua prosápia, o neto. Estudou com os jesuítas no seu colégio da Bahia, até os dezesseis anos. Como no tempo faziam tantos rapazes da colônia de famílias abastadas, da Bahia foi estudar a Coimbra, em cuja Universidade se bacharelou em cânones. De volta à terra, foi feito coronel de um regimento de infantaria de ordenanças. Casando com uma patrícia, retirou-se para uma rica fazenda às margens do Paraguaçu, perto da Cachoeira, onde fez vida de cavalheiro agricultor, dando-se também às letras. Além de um romance em verso, que parece haver merecido pouca estimação, deu à luz, em Lisboa, duas obras pequenas, e de assunto mais de reportagem que de literatura, Breve compêndio e narração do fúnebre espetáculo que na cidade da Bahia se viu na morte d'El-Rei D. Pedro II, em 1709, e Sumário da vida e morte da Ex.ma Sr.ª D. Leonor Josefa de Vilhena e das exéquias que se celebraram à sua memória na cidade da Bahia, em 1721. Com estas obrinhas teria tomado gosto das notícias da sua terra. A fundação contemporânea da Academia Brasílica dos Esquecidos porventura o estimularia nesse sentido.

Seus sócios deviam «tomar por matéria geral dos seus estudos a história brasileira», segundo dizia o próprio auto da sua fundação. Rocha Pita, que fora dos seus fundadores e dos mais conspícuos, empreendeu escrever a do Brasil, mais cabalmente do que havia sido ainda escrita. Para realizar o seu intento passou-se a Lisboa e aí publicou, no dito ano de 1730, a História da América portuguesa.

Nem pela intuição e sentimento histórico, nem pelo sabor literário, emparelha a História de Rocha Pita com a do Fr. Vicente do Salvador. Está em tudo e por tudo obsoleta, e além da feição por assim dizer oficial da sua composição, é perluxa, enfática e inchada de pensamento e linguagem. Justamente o excessivo floreio de estilo com que foi intencionalmente escrita, e que no-la torna desagradável, fazia-a no seu tempo estimável e foi, não de todo sem razão, estimada.

Escrita em estilo de prosa poética, como se fora um poema em louvor do Brasil, com mais entusiasmo e arroubo de sentimento patriótico do que com a serenidade e o bom juízo da história, marca justamente a transição da poesia a que quase exclusivamente se reduzia a nossa produção literária para a prosa em que íamos começar a mais freqüentemente exprimir-nos. Os seus censores oficiais, sujeitos dos mais doutos do tempo, cobriram-na de louvores, não só à sua composição, mas ao seu merecimento de obra histórica. Gostava-se então do que ora nos despraz. A frase de Rocha Pita acham-na eles «verdadeiramente portuguesa, desafetada, pura, concisa e conceituosa». Afora o casticismo, aliás de mau cunho, não pode a crítica hoje senão verificar-lhe as qualidades opostas, isto é, a prolixidade, a afetação, o inchado do frasear e o abuso de conceitos corriqueiros ou rebuscados. De seu valor histórico disseram os censores cousas justas e boas, se bem prejudicadas pelo seu tom hiperbólico, aliás consoante com o do livro.

O mérito incontestável da História de Rocha Pita, ainda com as restrições que do ponto de vista das exigências da história se lhe possam fazer, o de ser a mais completa publicada, como lhe reconheceram os censores oficiais, não o era só para os portugueses que assim podiam melhor informar-se dos sucessos da sua grande colônia. Aos brasileiros, o livro do historiador baiano, escrito num estilo que lhes seria muito grato ao paladar literário e sentimento nativista, ensinava-lhes a história da sua terra, sublimando-a por tal forma, que eles se ufanariam de serem seus filhos.

A velha tendência de apreço e gabo da terra, primeiro vagido do nosso brasileirismo, gosto e louvor não artificial e de estudo, mas natural e espontâneo, por inspirá-lo realmente a grandeza e opulência dela, tendência manifesta, como temos visto, desde os primeiros representantes espirituais do povo aqui em formação, aparecia agora na obra de Rocha Pita como que raciocinada, sistematizada na prosa túmida e florida do seu primeiro historiador publicado. E desde então esse feitio empolado e hiperbólico de dizer da nossa pátria (casando-se aliás perfeitamente com o excesso de detratação ela) seria um rasgo notável do nosso sentimento nacional, manifestando-se literariamente. Apenas haverá d'ora avante poeta ou prosador que não a celebre e cante com os arroubos líricos do seu historiador Rocha Pita. Graças à sua influência, tão consoante com o nosso próprio gênio, será ela magnificada sobre posse, a exata noção da sua natureza deturpada, a sua geografia falsificada, as suas verdadeiras feições escondidas ou desfiguradas sob postiços e arrebiques de patriotismo convencional ou simplório. Das nossas mofinas montanhas, pouco mais que colinas comparadas com as do antigo continente, ou com as de outras regiões do nosso, não teve Rocha Pita pudor de escrever que «umas parecem ter os ombros no céu, outras penetrá-lo com a cabeça». E os demais aspectos naturais do Brasil são assim por ele engrandecidos.

Ufana-se e embevece-se na enumeração hiperbólica da nossa fauna e flora, e no seu ingênuo entusiasmado aceita e propala as noções errôneas que ainda viciam a nossa história natural popular com a existência de feras temíveis, de gados que se alimentam de terra, cobras que trituram o «maior touro» e o devoram. Muitas das nossas abusões e enganos da opulência e feracidade da nossa terra, ilusões umas porventura auspiciosas, outras certamente funestas, vieram de Rocha Pita e de sua influência.

Em meio onde a história era apenas um tema literário e até retórico, sem disciplina científica ou rigoroso método de investigação e crítica, não era despicienda a obra do escritor brasileiro. Compendiava e ordenava não sem capacidade e num estilo ao sabor da época, as dispersas e desconcertadas noções da história do país e vulgarizava-as em forma acessível e simpática. Os seus defeitos e falhas não seriam aos contemporâneos tão patentes quanto avultam para nós.

Poder-se-ia incluir aqui, e não deixaram de fazê-lo os historiadores da nossa literatura, um outro brasileiro, o padre Francisco de Souza, natural da ilha de Itaparica, na Bahia, onde nasceu em 1628, falecido em Goa, na Índia portuguesa, em 1713. Em Lisboa publicou ele em 1710 o seu grosso livro Oriente conquistado a Jesus Cristo pelos padres da Companhia de Jesus na província de Goa, notável exemplar da historiografia e da linguagem e estilo do tempo. Tendo vivido mais de 80 anos, dos quais a máxima parte em Portugal e na Ásia, e escrito de cousas de todo estranhas ao Brasil e segundo o espírito e a maneira portuguesa, esse nosso patrício apenas o é pelo acidente do nascimento. Literariamente ainda nos pertence menos que Gabriel Soares ou o autor dos Diálogos das grandezas.

Da mesquinheza poética da maior parte do século XVIII, surde entretanto, pelo seu último terço, uma por todos os títulos considerável produção poética. Também, ao menos pelo número e mérito particular de informação, aparecem trabalhos históricos que constituem contribuição notável à prosa brasileira. No momento assinalado, uma plêiade de poetas brasileiros entram a concorrer dignamente com os poetas portugueses contemporâneos, a fazerem-se bem aceitos da literatura mãe. Mais brasileiros que nenhuns outros até aí, por mais vivo sentimento da terra natal ou adotiva, ao qual já porventura podemos chamar de nacional, estabelecem esses poetas a transição da fase puramente portuguesa da nossa literatura para a sua fase brasileira. Esta, iniciada pelo romantismo ao cabo do primeiro terço do seguinte século, terá nalguns deles os seus inconscientes precursores.

São em suma esses poetas, reunidos sob a denominação, a meu ver imprópria, de «escola mineira», quando apenas formam um grupo literário, sem algum rasgo característico que coletivamente os distinga, os que enchem esse período de transição e o constituem. Com a criação das academias literárias, o crescimento da população, o seu desenvolvimento mental e econômico e mais o das comunicações da colônia com o Reino, aumentou consideravelmente o número de versejadores, cujos nomes constam de repertórios e livros de consulta especiais. Da multidão desses sobressaem, com qualidades que lhes asseguram um lugar à parte, aqueles a quem, não obstante não passarem de seis, me proponho a chamar englobadamente de plêiade mineira: Santa Rita Durão, Cláudio Manoel da Costa, Basílio da Gama, Alvarenga Peixoto, Tomás Gonzaga e Silva Alvarenga. Estes merecem lugar separado nesta História.

Outros contemporâneos seus, Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), Antônio Mendes Bordalo (1750-1806), Domingos Vidal de Barbosa (1760-1793?), Bartolomeu Antônio Cordovil (1746-1810?), Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1769-1811), e que tais versejadores que impertinentemente têm sido anexados à chamada escola mineira, de todo não pertencem ao grupo de poetas com que indiscretamente a formaram. Alguns lhe não pertencem sequer cronologicamente, como Tenreiro Aranha, nascido quando este grupo já ia em adiantada formação. São demais tão insignificantes que podemos dispensar-nos de os levar em conta no estudo da nossa evolução literária. Deles é um dos de melhor engenho o mulato ou crioulo Caldas Barbosa. Nasceu no Rio de Janeiro por volta de 1740 ou nesse ano, e faleceu em Lisboa em 1800. Passou o maior tempo da sua vida em Portugal, como familiar, parasita, quase fâmulo dos condes de Pombeiro, capelão e poeta mercenário dessa família fidalga e generosa. Não tem nenhuma superioridade, porém apenas valerá menos que muitos dos poetas portugueses seus contemporâneos com quem conviveu e emulou. Vivendo a vida portuguesa, conservou, entretanto, alerta, o sentimento íntimo da poética popular brasileira revelado no estilo de algumas composições suas em que desce até as formas indecorosas ou delambidas do verso popular:

Meu bem está mal com eu gentes de bem pegou nele tape, tape, tipe, tipe, ai Céu ela é minha iaiá o seu moleque sou eu.

E que tais modos triviais do nosso lirismo popular de mistura com reminiscências, sentimento e sensações de cousas brasileiras.

Cuidei que o gosto de amar sempre o mesmo gosto fosse mas um amor brasileiro eu não sei por que é mais doce.

Gentes como isto cá é temperado que sempre o favor me sabe a salgado: nós lá no Brasil a nossa ternura a açúcar nos sabe tem muita doçura Ó! Se tem! Tem Tem um mel mui saboroso é bem bom, é bem gostoso.

Cantados à viola, com os requebros e denguices da musa mulata, e o sotaque meloso do brasileiro, versos tais teriam em Portugal o sainete do exótico, para resgatar-lhes a mesquinhez da inspiração e da forma. Não enriquecem a poesia brasileira. Na história desta, Caldas Barbosa apenas terá a importância de testemunhar como se havia já operado no fim do século XVIII a mestiçagem luso-brasileira, que, primeiro física, acabara por influir a psique nacional. Era natural que essa influência no domínio mental se principiasse a manifestar num mestiço de primeiro sangue, como parece era o «fulo Caldas», dos apodos dos seus rivais portugueses. Depois de Gregório de Matos, na segunda metade do século XVII, o qual pode ser, apesar da sua jactância do contrário, não fosse branco estreme, é com Caldas Barbosa que expressamente se revela na poesia brasileira, a musa popular brasileira na sua inspiração dengosamente erótica e no seu estilo baboso.

Ao contrário da poesia, a prosa aqui escrita no mesmo momento, a prosa a que, sequer pelo seu gênero e intuitos, possamos chamar de literária, não deixou documentos que a valorizassem. Os que existem são todavia, relativamente numerosos, e alguns meritórios no tocante à nossa historiografia e informação geral do país. Mas como escritores minguam a todos, ou pouco avultam em todos, os atributos que lhes valeria essa qualificação. De outros a atividade mental e literária foi inteiramente portuguesa e passou-se em Portugal. Estão neste caso os irmãos Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724) e Alexandre de Gusmão (1695-1753), ambos paulistas, de Santos. O primeiro nada tem de comum com a literatura, senão uns medíocres sermões nunca mais lidos; o segundo, alto e versátil engenho, pertence por toda a sua formação e atividade à literatura portuguesa, que justificadamente o adotou.

Os brasileiros a que primeiro nos referimos como autores de obras em prosa são: Pedro Taques de Almeida Pais Leme (17..-1777); Fr. Gaspar da Madre Deus (1730-1800); Antônio José Vitorino Borges da Fonseca (1718-1786); Fr. Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-176.). São todos estes autores de crônicas e relações históricas de nenhum ou de ruim sabor literário ou de secas e insípidas genealogias, acaso subsídios valiosos para a nossa história, mas somenos como boas letras. Sobre o aspecto literário os sobreleva Fr. Vicente do Salvador com a sua História do Brasil, e o mesmo Rocha Pita com a da América portuguesa. Entretanto esta abundância de escritos históricos e outros que poderíamos citar, no século XVIII, não é sem importância e significação na história da nossa literatura, como expressão da nacionalidade. Testemunha que se continuava a operar aqui o trabalho íntimo e lento de uma consciência nacional que buscava apoio e estímulo na indagação dos fastos da terra, da prosápia e feitos de seus filhos, de que já tirara desvanecimento. Também provava a nossa capacidade para lucubrações que no Reino haviam dado renome e consideração aos seus cultores. Se tivessem sido então publicados, houveram esses escritos podido ser um fator do sentimento de solidariedade nacional, que é o mesmo fundamento das nações. Eram em todo caso prova desse sentimento manifesto neles no apreço exagerado e na ufania, não raro indiscreta, dela. O isolamento completo e a separação dos que aqui cultivaram letras não eram já tão completas graças à fundação das academias literárias, que os chamaram donde quer que viessem, para si, como supranumerários ou correspondentes. A literatura dessa época, tomada a expressão do seu mais lato sentido, revela a formação vagarosa e ainda obscura mas certa de uma gente que começa a ter o sentimento de si mesma, que dá provas de inteligência e capacidade mental e que, tendo a confiada opinião da excelência da sua pátria, não tardará muito que não entre a pensar na sua autonomia política. O estímulo daquilo que, na obscuridade dos seus rincões pátrios, escreviam e guardavam esses historiógrafos desinteressados e modestos, andaria já recôndito no sentimento popular. É por isso que, sem embargo da sua formação portuguesa e do seu respeito e apego às tradições espirituais da metrópole, os poetas brasileiros das últimas décadas do século XVIII foram, com espontaneidade que lhes explica a distinção, os intérpretes de tal sentimento. Fato significativo, a poesia de então, pelo estro de Santa Rita Durão, propõe-se claramente a cantar o Brasil, com a mesma intenção patriótica com que Camões cantara Portugal.