História da Mitologia/XIX

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Capítulo XIX[editar]

Ércules e a Hidra
ilustração de Antonio Pollaiuolo (1431–1498)

Hércules[editar]

Hércules era filho de Júpiter e Alcmena. Como Juno tinha verdadeira ojeriza pelos filhos de seu marido com as mulheres mortais, ela declarou guerra contra Hércules desde que ele nasceu. Ela mandou duas serpentes para destruí-lo quando ele estava no berço, mas a criança precoce as estrangulou com suas próprias mãos. Devido aos feitços de Juno, todavia, ele foi entregue a Euristeu e obrigado a realizar todas as ordens dele. Euristeu então, impôs a ele uma série de tarefas arrojadas, que ficaram conhecidos como "Os Doze Trabalhos de Hércules." O primeiro trabalho foi uma luta contra o leão de Nemeia.

O vale de Nemeia foi assolado por um terrível leão. Euristeu ordenou que Hércules lhe trouxesse a pele deste monstro. Depois de usar em vão sua clava e setas contra o leão, Hércules estrangulou o animal com suas mãos. Ele retornou carregando o leão morto em seus ombros; mas Euristeu ficou tão assustado ao ver o animal morto, e diante da prova da força prodigiosa do herói, que lhe ordenou que lhe desse conta de suas proezas fora da cidade dali em diante. A sua próxima tarefa seria matar a Hidra.

Este monstro aterrorizava o território de Argos, e habitava um pântano perto do poço de Amimome. Este poço tinha sido descoberto por Amimone quando uma seca assolou a região, e a história conta que Netuno, que a amava, havia permitido que ela tocasse a rocha com seu tridente, surgindo daí uma fonte com três nascentes. Nesse local, a Hidra começou a aparecer, e Hércules foi enviado para destruí-la. A Hidra tinha nove cabeças, sendo que a do meio era imortal. Hércules esmagou as cabeças dela com sua clava, mas no lugar da cabeça golpeada, duas outras surgiam a cada investida. Finalmente, com a ajuda de Iolau, seu fiel criado, ele queimou a cabeça da Hidra, enterrando a nona cabeça, que era imortal, debaixo de uma pedra gigantesca.

O outro trabalho era limpar os estábulos de Áugias. Áugias, rei de Elis, tinha um rebanho com três mil bois, cujos estábulos não haviam sido limpos há mais de trinta anos. Hércules desviou os rios Alfeu e Peneu[1] que passou a atravessá-los, fazendo a limpeza dos estábulos num único dia.

Seu próximo trabalho era de natureza mais delicada. Admeta, filha de Euristeu[2], desejava conseguir o cinto da rainha das Amazonas, e Euristeu ordenou que Hércules fosse buscá-lo. As Amazonas formavam uma nação de mulheres. Elas gostavam de guerrear e tinham a posse de várias cidades florescentes. Elas tinham o hábito de criar apenas as crianças do sexo feminino; os garotos eram enviados para suas nações vizinhas ou colocados para morrer. Hércules estava acompanhado por muitos voluntários, e depois de muitas aventuras finalmente ele chegou ao país das Amazonas. Hipólita, a rainha, o recebeu com amabilidade, e concordou em entregar-lhe o cinto, mas Juno, tomando a forma de uma Amazona, convenceu as outras que os estrangeiros estavam sequestrando sua rainha. Elas se armaram imediatamente e acorreram até o navio. Hércules, achando que Hipólita agia com deslealdade, a matou, e pegando o cinto dela, rumou para casa novamente.

Um outro trabalho que lhe foi atribuído foi trazer para Euristeu os bois de Gerião, um monstro com três corpos, que morava na ilha Eritreia (a vermelha), assim chamada porque ficava na parte oeste, sob os raios do sol poente. Acredita-se que esta descrição seja usada para se referir à Espanha, cujo país, Gerião era o rei. Depois de atravessar vários países, Hércules finalmente chegou nas fronteiras da Líbia e da Europa, onde ele ergueu as duas montanhas de Calpe e de Ábila, como monumentos do seu progresso, ou, segundo outros relatos, dividiu em dois a montanha deixando metade de cada lado, vindo a formar o estreito de Gibraltar, e as duas montanhas foram chamadas de "as Colunas de Hércules". Os bois eram guardados pelo gigante Euritião e seu cachorro com duas cabeças, porém, Hércules matou o gigante e seu cachorro e levou os bois com segurança para Euristeu.

O trabalho mais difícil de todos foi conseguir as maçãs de ouro das Hespérides, pois, Hércules não sabia onde encontrá-las. Estas eram as maçãs que Juno havia recebido como presente de casamento da deusa da Terra, e as quais ela havia incumbido à guarda das irmãs de Héspero, auxilidas por um vigilante dragão. Depois de várias aventuras, Hércules chegou até o Monte Atlas na África.

Hércules capturando Cérbero.
ilustração de Hans Sebald Beham (1500-1550)

Atlas era um dos Titãs que haviam guerreado contra os deuses, e depois que foram derrotados, Atlas foi condenado a carregar o peso dos céus em seus ombros. Ele era pai das Hespérides, e Hércules achava que se houvesse alguém, Atlas poderia encontrar as maçãs e trazê-las para Euristeu. Mas como afastar Atlas de suas funções, ou carregar os céus enquanto ele estivesse fora? Hércules assumiu a tarefa sobre seus ombros, e mandou Atlas procurar as maçãs. Atlas retornou com as maçãs, e embora tivesse alguma relutância, tomou o peso sobre seus ombros novamente, e permitiu que Hércules retornasse levando as maçãs para Euristeu.

John Milton, em seu "Comus," menciona as Hespérides como filhas de Héspero e sobrinhas de Atlas:

"... entre os belos jardins de Héspero
e de suas três filhas, que entoam canções à árvore de ouro." 

Os poetas, seduzidos pela semelhança com o aspecto encantador do céu oriental durante o por do sol, imaginavam o Ocidente como uma região de esplendor e glória. É por isso que eles deram esta denominação às Ilhas Afortunadas, a ilha vermelha da Eritreia, região esta onde pastavam os reluzentes bois de Gerião, e a Ilha das Hespérides. Muitos imaginam que as tão faladas maçãs sejam as laranjas da Espanha, cujos relatos obscuros foram ouvidos pelos gregos.

Uma façanha de Hércules que ficou célebre foi a sua vitória sobre Anteu. Anteu, filho da Terra, era um gigante e lutador poderoso, cuja força era tão invencível desde que permanecesse em contacto com sua mãe Terra. Ele obrigava a desafiar todos os estrangeiros que vinham ao seu país, com a condição de que se derrotados (como geralmente eram) deveriam morrer. Hércules decidiu desafiá-lo, e percebendo que não conseguia derrubá-lo, pois de cada queda ele sempre se levantava com forças renovadas, o levantou do solo e o estrangulou no ar.

Caco era um gigante enorme, que habitava uma caverna no Monte Aventino, e causava medo no país vizinho. Quando Hércules estava conduzindo para casa os bois de Gerião, Caco roubou parte do gado, durante o sono do herói. E para que suas pegadas não pudessem servir para mostrar para onde os bois tinham sido levados, ele os arrastou de costas puxando suas caudas até a sua caverna; de modo que todos os rastros deixados pareciam mostrar que eles tinham ido no sentido contrário. Hércules foi enganado por este estratagema, e não teria conseguido encontrar os seus bois, se não tivesse acontecido que ao conduzir o restante do rebanho diante da caverna onde estavam escondidos os bois que tinham sido roubados, estes começaram a mugir, e assim foram descobertos. Caco foi morto por Hércules.

A última façanha que iremos registrar foi a de ter ido buscar Cérbero no submundo. Hércules desceu até o Hades, acompanhado de Mercúrio and e de Minerva. Ele obteve permissão de Plutão para conduzir Cérbero até o mundo superior, desde que isso fosse feito sem o uso de armas; e apesar da força do animal, ele conseguiu capturá-lo, prendendo-o com firmeza, e o levou para Euristeu, e em seguida o trouxe de volta. Quando ele estava no Hades ele conseguiu a libertação de Teseu, seu admirador e imitador, que fora detido e aprisionado naquela região por uma tentativa mal sucedida de resgatar Proserpina.

Hércules, num acesso de loucura, matou seu amigo Ífito, filho de Eurito, e por este crime foi condenado a se tornar escravo da rainha Ônfale durante três anos. No tempo que desempenhou esta tarefa, a natureza do herói se modificou. Ele viveu como afeminado, usando, às vezes, roupas de mulher, e fiando algodão com as serviçais de Ônfale, enquanto a rainha usava a sua pele de leão. Quando ele concluiu a tarefa, ele casou com Dejanira e com ela viveu em paz por três anos. Em certa ocasião, quando ele estava viajando com sua esposa, eles chegaram perto de um rio, onde o Centauro Nesso atravessava viajantes por um preço pre-estabelecido.

Hércules atravessou sozinho o rio, mas permitiu que Dejanira fosse atravessada por Nesso. Nesso tentou fugir com ela, mas Hércules ouviu os seus gritos e projetou uma flecha bem no coração de Nesso. O Centauro agonizante pediu a Dejanira que levasse uma parte de seu sangue e o guardasse, pois ele poderia ser usado como encanto para preservar o amor de seu marido. Dejanira atendeu-lhe o desejo e depois de passado muito tempo ela imaginou que era uma ocasião para usá-lo. Hércules em uma de suas conquistas havia tomado uma bela donzela como prisioneira, cujo nome era Íole, filha de Eurito[3], de quem ele parecia gostar mais do que Dejanira permitia.

Quando Hércules estava para oferecer sacrifícios aos deuses em honra de sua vitória, ele solicitou à sua esposa uma túnica branca para que ele usasse durante os festejos. Dejanira, achando que essa seria uma boa oportunidade para experimentar o seu feitiço do amor, banhou a túnica com o sangue de Nesso. Devemos lembrar que ela tomou cuidado para remover todos os traços de sangue, porém, o poder mágico permaneceu, e assim que a túnica se aquesceu no corpo de Hércules o veneno penetrou em todos os seus membros e pernas causando-lhe a mais intensa agonia. Em seu arrebatamento, ele pegou Licas, que havia lhe trazido a túnica fatal, atirando-o ao mar.

Tentou arrancar a túnica, mas esta se colou ao corpo, e com ela, de seu corpo, saíam também pedaços inteiros de carne. E nesse estado ele tomou um barco e foi levado para casa. Dejanira, ao ver o que ela havia feito inconscientemente, se enforcou. Hércules, se preparou para morrer, e subindo ao Monte Eta, onde ele havia construído uma pira funerária de árvores, entregou seu arco e suas flechas para Filoctetes, e se deitou na pira, com a cabeça apoiada sobre sua clava, e sua pele de leão estendida sobre seu corpo. Com o semblante cheio de serenidade, como se tomasse parte à mesa de um banquete, ordenou a Filoctetes que ascendesse a tocha.

As chamas se espalharam rapidamente e em pouco tempo cobriu todo o corpo. Milton assim se refere ao frenesi de Hércules:

"Foi quando Alcides[4], coroado com a conquista de Ecália, 
vestiu a túnica envenenada, e rasgando,
Com dor, até as raízes dos pinheiros da Tessália
E Licas do topo do Monte Eta se atira ao Mar Euboico."

Os próprios deuses ficaram transtornados ao verem o campeão da terra terminar seus dias dessa forma. Mas Júpiter, com um semblante de júbilo, assim se dirigiu a eles: "Fico satisfeito em saber de vossas preocupações, meus príncipes, e sou grato ao reconhecer de que sou o governante de um povo leal, e de que meu filho desfruta de vossa benevolência."

Pois, embora vosso interesse por ele seja proveniente por seus gestos de nobreza, isso para mim não tem o menor valor. Porém, eu vos digo, não vos assusteis. Aquele que conquistou tudo não será vencido pelas chamas que estais vendo arderem sobre o Monte Eta. Apenas o seu aspecto materno poderá perecer; o que ele herdou de mim é imortal. Eu o levarei, morto na terra, até as fronteiras celestiais, e pedirei a todos vós que o recebam com gentileza. Se alguns dentre vós vos sentis ofendidos com a conquista de tal honra, ninguém, no entanto, poderá negar que ele a mereceu." Todos os deuses deram o seu assentimento; Juno ouviu apenas as palavras finais, com um certo desagrado, por lhe dizer respeito de modo particular, mas não o bastante para que se arrependesse da determinação de seu marido.

De modo que quando as chamas haviam consumido o lado materno de Hércules, o lado divino, longe de sentir qualquer dano, parecia ressurgir ainda mais revigorado, assumindo uma postura mais majestosa e uma dignidade mais impressionante. Júpiter o envolveu em uma nuvem, e o conduziu numa carruagem de quatro cavalos para morar definitivamente entre as estrelas. E quando tomou o seu lugar no céu, Atlas sentiu o peso adicional. Juno, que agora havia se reconciliado com ele, ofereceu a ela a sua filha Hebe em casamento. O poeta Friedrich Schiller (1759-1805), em uma de suas criações chamada de "O Ideal e a Vida," ilustra o contraste entre o prático e o ilusório em algumas belas estrofes, das quais passaremos a reproduzir as duas últimas:

"Profundamente reduzido a um escravo covarde,
O valente Alcides dera testemunho de incontáveis façanhas,
Através de espinhosos caminhos, conduzido pelo sofrimento;
Matou a Hydra, esmagou a força do leão,
Se arriscou para salvar a vida de um amigo,
Vivendo, no esquife que carrega os mortos.
Em todos os tormentos, em toda luta na terra
Que o ódio de Juno poderia lhe impor,
Ele cumpriu tudo, que lhe tinha sido predestinado desde o nascimento
Para um final grandiosamente triste da vida.

"Até que o deus, deixando a parte terrena,
Em chamadas do homem dilacerado,
Sorveu o hálito mais puro do éter celestial.
Feliz com a nova e extraordiária leveza,
Alçando os cimos da luz celestial,
Fardo pesado e obscuro perdido com a morte.
O Alto Olimpo oferecendo saudação harmoniosa
No salões onde seu pai reina majestoso;
A deusa reluzente da juventude, corada pelo encontro,
Oferece o néctar para o seu senhor."

--S.G. B.

Hebe e Ganímedes[editar]

O rapto de Ganímedes
ilustração de Eustache Le Sueur (1617-1655)

Hebe, filha de Juno, e deusa da juventude, era a copeira dos deuses. Diz a lenda que ela renunciou a esse ofício ao se tornar esposa de Hércules. Mas há outros relatos contados pelo nosso compatriota e escultor Thomas Crawford (1814-1957), em seu grupo formado por Hebe e Ganímedes, que atualmente se encontra na galeria do Ateneu de Boston. De acordo com a história, Hebe foi afastada de seu ofício em consequência de uma queda que ela sofreu em certa ocasião quando estava a servi dos deuses. O sucessor dela era Ganímedes, um garoto de Troia, a quem Júpiter, disfarçado de águia, a capturou quando ela se encontrava se divertindo com seus companheiros e a levou embora para o Monte Ida, subindo até o céu, e instalando-se num lugar que estava vazio.

Alfred Tennyson (1809-1892), em seu "Palácio da Arte," descreve, dentre outras decorações que estão na parede, uma imagem que representa esta lenda:

"Ali, também, corou Ganímedes, com suas coxas rosadas
Semi-sepultado nas asas da águia,
Sozinho como uma estrela cadente caindo do céu
Acima dos pilares da cidade."

E no “Prometeu” de Mary Shelley, Júpiter chama o seu copeiro desta maneira:
"Despeja o vinho celeste, Ganímedes, o ideu[5],
E como o fogo, enche as taças de Dédalo."

A bela história sobre a "Escolha de Hércules" pode ser vista na "Tatler,"[6] de número 97.

Hércules e Anteu lutando
ilustração de Auguste Couder (1790-1873)

Veja também[editar]

Notas e Referências do Tradutor[editar]

  1. Rio Peneu, rio do Peloponeso, na Grécia
  2. O cinturão de Hipólita
  3. Héracles
  4. Alcides, um dos nomes de Hércules.
  5. Ideu: relativo ao Monte Ida.
  6. A revista Tatler foi fundada em 1709 por Richard Steele (1672-1729).