História do Palonço Brutamontes

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VIRGÍNIA DE CASTRO E ALMEIDA
 

 
HISTÓRIA DO PALONÇO BRUTAMONTES
 
(BONECOS DE PAM)
 

LIVRARIA CLÁSSICA EDITORA
LISBOA
1944

Era uma vez um rei viúvo que só tinha uma filha. Gostava tanto dela que lhe fazia tôdas as vontades.

O que valia era que a princesa Smercantina tinha bom coração, de modo que não queria coisas más ou que fizessem sofrer os outros.

Quando Smercantina chegou à idade de se casar, o pai começou a apresentar-lhe noivos. Como aquêle rei tinha muitas riquezas e muito poder, e como a princesa era muito perfeita e linda, não faltaram príncipes e reis coroados, e grandes senhores fidalgos cobertos de glórias e de riquezas, vindos de perto e de longe a apresentar-se como pretendentes à mão da princesa.

Mas ela olhava para todos e abanava a cabeça; não escolhia nenhum; nenhum lhe agradava. Dizia que um tinha o nariz muito comprido, e que outro tinha as orelhas grandes ou pequenas demais, que aquêle tinha as pernas tortas, ou bôca de peixe, ou mãos de macaco, ou que o seu fato era feio. Enfim, nenhum lhe servia.

O pobre pai arrepelava-se todo de desespêro; já não sabia o que havia de fazer. Os pretendentes iam-se embora amuados ou furiosos dizendo que a culpa era do rei que educara mal a filha; e o rei já estava a ver que mais dia menos dia, aquêles senhores descontentes acabariam por lhe fazer guerra.

A princesa não se ralava. Não queria saber dos pretendentes para nada; não pensava em casar. Quando saía do salão onde estavam os reis, príncipes e grandes senhores, abanava a cabeça e dizia a rir: — nenhum, nenhum, nenhum! — e ia para o seu quarto, com as suas damas, e punha-se à janela a ver quem passava.

Ora um dia, estando ela assim à janela, viu passar no largo defronte do palácio, um rapaz que lhe pareceu a
 

A princesa viu passar um rapaz...

 
criatura mais linda que os seus olhos tinham enxergado.

Ia descalço, levava uns calções rotos, um gibão sujo e esfarrapado, uma gorra muito sebenta sôbre os cabelos esguedelhados, a cara e as mãos tôdas enfarruscadas. Devia ser algum miserável carregador do pôrto.

A princesa levantou-se e foi a correr pelas escadas abaixo. Saíu do portão do palácio que nem uma seta e, com as damas e aias espavoridas correndo atrás dela, foi ter com o tal rapaz.

— Anda comigo, — disse ela, — tu é que vais ser o meu noivo.

O carregador que era muito bruto, olhou para ela de revés e respondeu com mau modo:

— Não quero cá saber de cantigas. Deixe-me.

A princesa quis pegar-lhe na mão, mas êle virou-lhe as costas e seguiu o seu caminho a assobiar, como se não fôsse nada com êle.

A princesa pôs-lhe a mão no ombro, agarrou-se-lhe ao gibão quási a chorar, dizendo com uma voz tão meiga que cortava o coração:

— Vem comigo para o palácio. Morro por ti! Quero casar contigo!

— Não me importo com palácios nem casamentos. Larga-me! Quero ir cear.

— Vem cear comigo, meu amor! O rapaz zangou-se e deu-lhe um encontrão.

— Vá à fava! — gritou êle. — Que maçadora!

E continuou o seu caminho sem olhar sequer para trás.

A princesa desatou a chorar e as damas levaram-na quási desmaiada para o palácio. Mas uma delas que era tôda espertalhona foi disfarçadamente seguindo de longe o carregador até que o viu entrar numa casita miserável à beira do rio largo que atravessava a cidade.

A tal dama da princesa, chamava-se Furabolos; e o nome dizia com ela porque era tôda despachada e resoluta.

Sabendo onde morava o rapaz, andou por ali, pelas vizinhanças, falando com uns e com outros até descobrir que êle se chamava Palonço Brutamontes, que era estúpido e bruto, que tinha fama de ser o homem mais forte daqueles sítios e que trabalhava como carregador de navios.

Entretanto a princesa voltara para o palácio e metera-se no quarto a chorar. Chorava sem consolação. As damas à roda dela faziam tudo quanto podiam para a distrair. Mas ela nem as ouvia. Era só chorar e gemer; entre lágrimas e suspiros dizia assim:

— Tragam-me aquêle rapaz tão lindo, senão morro. Aquêle é o noivo do meu coração. Ou caso com êle ou me deixo morrer!

Á força de chorar e de se atormentar com aquêles pensamentos, veio-lhe uma grande febre. O rei parecia doido na sua aflição e no seu desgôsto. Mandou vir médicos e curandeiros e até feiticeiros e bruxas a ver se algum lhe curava a filha daquele triste mal. Mas nenhum atinava com a doença da princesa nem dava alívio ao seu desgôsto.

A princesa Smercantina não comia, nem bebia, nem dormia. No delírio da sua febre era só gritar:

— Dêem-me o carregador! Tragam aqui o meu lindo noivo, senão morro!

A dama Furabolos tirou-se dos seus cuidados e foi ter com o rei. Contou-lhe que tinha ido atrás do carregador e que sabia onde êle morava; e o rei que já tinha mandado os seus oficiais pela cidade tôda à procura do rapaz, respondeu:

— Vou já dar ordem que mo tragam aqui a bem ou a mal. Não me importo que êle seja carregador e bruto e estúpido. Se a sua presença é precisa para a felicidade da minha querida filha, há-de vir para o palácio nem que seja metido em ferros; há-de vir, nem que seja o próprio demónio!

Mas a dama Furabolos que era muito esperta, disse-lhe assim:

— Se Vossa Majestade o manda vir à fôrça êle chega aí que nem uma fera e até pode ser perigoso para a princesa. Talvez não fosse má idéia Vossa Majestade ordenar umas festas aqui no largo defronte do palácio; torneios para os fidalgos e lutas para o povo. Como o carregador é muito forte e tem presunção na sua fôrça bruta, virá com certeza para as lutas. A princesa daria os prémios e pode ser que assim aquêle rapaz bestial se amansasse mais.

O rei achou que a dama Furabolos tinha razão, e logo deu as suas ordens para uma grande festa de torneios e lutas no largo defronte do palácio, com prémios lindos e riquíssimos para os vencedores.

Vieram logo carpinteiros e outros artífices armar o recinto e fazer os palanques. Os reis, príncipes e fidalgos que ainda estavam na Côrte trataram de mandar limpar e polir as suas armaduras e lanças e de escolher os seus melhores cavalos. Não se falava em tôda a cidade senão na grande festa e todos se preparavam para ela o melhor que podiam. Os homens do povo conhecidos como bons lutadores, exercitavam-se por todos os cantos. Mas o carregador continuava a fazer a sua vida do costume; e se alguém lhe falava na festa e lhe preguntava se tinha tenções de ir lutar, respondia com palavrões e arremessos muito feios, de modo que ninguém sabia quais eram as suas tenções.

A princesa estava melhor desde que lhe contaram da festa; encheu-se de esperanças; não fazia senão rezar e pedir aos Santos que mandassem o carregador às lutas e lhe dessem a vitória.

Por fim chegou o grande dia. Estava a praça tôda enfeitada e embandeirada; era a coisa mais linda que se podia ver. E charamelas a tocarem, e os fidalgos e fidalgas muito bem aparamentados, e o povo era tanto que não se via senão um mar de cabeças.

Começaram os torneios que foram lindíssimos. Aquêles grandes senhores, reis, príncipes e fidalgos, apareceram com armaduras muito ricas que luziam ao sol e grandes plumas no alto dos capacetes; e fizeram coisas do arco da velha com o sentido de agradarem à princesa Smercantina e de conquistarem a sua admiração. Mas a princesa nem para êles olhava; só procurava avistar entre a multidão do povo, o carregador bruto que lhe roubara o coração.

Por fim chegou a vez das lutas e, quando menos se esperava, apareceu o Palonço Brutamontes. Aquilo foi uma coisa nunca vista. O Brutamontes venceu todos os lutadores. Não houve um só que lhe resistisse. O povo estava doido de entusiasmo. Mas êle não se importou; nem sequer agradeceu os aplausos. Virou costas; queria abalar dali para fora. Tiveram que o levar à fôrça diante da princesa para ela lhe dar o prémio que era um colar riquíssimo de ouro maciço todo cravejado de pedras preciosas. Mas quando a princesa Smercantina, com as mãos a tremer de admiração e de amor, quis enfiar-lho pela cabeça, êle deitou a mão ao colar e arremessou-o, ao chão, dizendo:

— Quero cá prémios! Larguem-me! Quero ir para casa! Vão todos à fava!

Só pensava em abalar; mas o rei, que via o desgôsto da filha, mandou-o prender. Levaram-no à fôrça e fecharam-no num quarto do palácio.

O rei estava tristíssimo. Não sabia como havia de amansar aquêle bruto. Mandou-lhe dar os melhores manjares que havia; mandou-o vestir com os fatos mais lindos e ricos do seu guarda-roupa; mandou os melhores fidalgos da sua Côrte falar com o Palonço Brutamontes e distraí-lo.

Nos primeiros dias o bruto parecia uma fera. Quebrava tudo que estava no quarto, atirava os fatos ricos pela janela fora, corria os fidalgos a murros e pontapés. Mas, a pouco e pouco, vendo que aquelas brutalidades não serviam de nada, começou a amansar. Como a fome apertasse, lá foi comendo os manjares deliciosos que lhe mandavam. Foi-se costumando aos fatos lindos e ricos que lhe vestiam. Por fim começou a gostar daquela vida. Dava ordens, aos berros:

— Não quero molhos nem picados! Quero carneiro com batatas! E pão com queijo!

Atirava para o chão com vinhos preciosos e gritava:

— Não bebo águas de cheiro! Quero vinho carrascão!

De vez em quando o rei ia vê-lo. O Brutamontes, muito bem repimpado numa cadeira, nem se levantava para o receber; e dizia-lhe assim:

— O que vem você cá cheirar com essa coroa de ouro na cabeça? Cuida que me mete mêdo? Não tenho
 

De vez em quando o rei ia vê-lo…

 
mêdo de você nem de cem como você! Gire daqui para fora.

O rei tinha vontade de lhe mandar dar uma carga de pau ou de chibatadas, para o ensinar; mas como fazia tudo que a princesa queria e não era capaz de a contrariar fôsse no que fôsse, lá ia aturando aquelas brutalidades do carregador. Andava tristíssimo e um dia disse assim à dama Furabolos:

— Bem dura é a minha sorte! Ser como sou um rei tão poderoso, senhor de tão grandes e ricos Estados, e não poder correr com esta bêsta bronca que me ofende! E ver a minha filha, herdeira dêstes reinos, assim namorada de um lorpa, um bruto dêstes! Ai de mim! O que será do meu reino em tais mãos!

E largou-se a chorar e a arrancar as barbas.

A dama Furabolos, que respeitava e amava muito o seu rei, ficou tôda aflita ao vê-lo tão desesperado. Fechou-se no quarto a dar volta ao pensamento, a ver se poderia fazer qualquer coisa que remediasse tamanho mal. Lembrou-se de mandar chamar uma bruxa de grande fama; tinham-lhe dito que essa bruxa possuía enormes poderes, que sabia muitos segredos e curava muitos males. A bruxa veio logo. Entrou-lhe de noite pela janela dentro a cavalo numa vassoura. Era uma velhinha pequenina e magra, com um grande nariz curvo como o bico de um papagaio, um queixo muito agudo e os cabelos grisalhos muito esguedelhados.

A dama Furabolos não teve mêdo nenhum da bruxa e disse-lhe:

— Mandei-te chamar porque me disseram que és muito poderosa; quero que me ajudes. Se me servires bem, dar-te-ei o que me pedires.

— Já sei o que tu queres—respondeu a bruxa. — E como sou muito amiga da princesa Smercantina, estou pronta a ajudar-te. Mas o caso é sério. Por hoje só te posso dizer uma coisa: o Palonço Brutamontes é um príncipe encantado. Uma feiticeira muito má, para se vingar do rei, pai do príncipe, que a tinha mandado castigar pelas suas maldades, encantou-lhe o filho fazendo dêle o Brutamontes.

— Ainda bem! Ainda bem! — gritou a dama Furabolos, radiante com a idéia do Palonço ser príncipe.

Mas a feiticeira soltou um suspiro e disse-lhe assim:

— Não te alegres antes de tempo, porque eu não sei como se há-de quebrar aquêle maldito encanto.

— Mas vais agora descobrir isso! — respondeu logo a dama Furabolos. — Eu sei que podes muito e que és capaz de descobrir êsse segrêdo.

A bruxa sentou-se num banquinho, e pôs-se a cismar . Por fim levantou-se, pegou na vassoura, e disse:

— Queres vir comigo?

A dama Furabolos deu um salto de alegria e gritou:

— Pois vou; e estou pronta a fazer tudo que fôr preciso para salvar o meu rei e a minha rica princesa.

Então a bruxa montou a cavalo na vassoura e disse à dama que montasse atrás dela e, saindo ambas pela janela, ai foram a tôda a pressa pelos ares fora, cortando o vento que nem uma seta.

A princesa Smercantina ia muitas vezes visitar o Palonço Brutamontes aos seus aposentos. Ia com as damas e aias, e fazia grandes cumprimentos ao noivo do seu coração. Êle, estatelado num cadeirão, não se mexia. Punha-se a grunhir:

— Que maçada! Tanto mulherio! Ponham-se daqui para fora senão corro-as a pontapés!

As damas e as aias escondiam-se pelos cantos conforme podiam a tremer de mêdo. Mas Smercantina nem se assustava nem fazia caso do que êle dizia. Falava-lhe va-lhe com muita paciência e bom modo:

— Meu noivo adorado, morro por ti. Trouxe-te coisas boas para te dar gôsto.

E dava-lhe rebuçados e doces e licores deliciosos; mas êle atirava tudo pela janela fora com feios arremessos e palavrões horríveis.

Até que um dia uma das damas lembrou à princesa que levasse ao Brutamontes figos secos e nozes, porque êle só gostava de comeres grosseiros, e uma garrafa de água-pé. A princesa assim fêz. E o Brutamontes não atirou estas coisas pela janela fora. Pôs-se a grunhir como um porco, a comer os figos e as nozes e a beber a água-pé com tanta brutalidade que se babava todo.

— Meu amor, — dizia a princesa tôda contente, — ainda bem que gostas.

E êle grunhia:

— Dá-me mais figos e mais nozes. Quero mais água-pé.

Por fim Smercantina disse-lhe que se êle quisesse ir dar um passeio no rio na sua companhia, lhe daria muitos figos e nozes, e bacalhau cru, e sardinhas salgadas.

— Hum… hum… hum… — resmungou êle. — Mas não me toques, espantalho! Senão vai tudo raso.

E lá foram dar o tal passeio.

O barco estava aparamentado que era uma beleza. O Brutamontes atirou-se para cima de um barco forrado de ricas alcatifas e de almofadas de brocado, e ali se instalou nem que fôsse um bicho.

— Vês como o rio está bonito e como estão bem enfeitados os barcos que nos acompanham, — dizia a princesa. — Nem imaginas como me sinto feliz aqui ao teu lado!

— Hum!… Hum!… — respondia êle. — Cala a bôca. Quero mais figos e mais nozes.

Quando se encheu de figos e nozes e de água-pé, desatou a rir.

— Agora vou-me divertir, — declarou êle.

Levantou-se do fôfo assento que lhe tinham preparado à ré e galgando os bancos foi até à pôpa onde as damas e as aias, cheias de mêdo, se tinham juntado. Pegou numa delas e atirou-a ao ar com tanta fôrça que a pobre senhora subiu a uma grande altura. — Ui! Ui! Ui! — gritava a dama tôda aflita. Quando começou a descer, como naquele tempo as senhoras usavam muitas saias e com muita roda, as saias abriram-se como uma sombrinha e ela foi descendo devagar como em pára-quedas. Aflita da sua vida, agitava os braços e as pernas como se dançasse no ar e gritava que nem uma possessa. As saias espalhavam-se e viam-se as calcinhas com muitos folhos e rendinhas. Ainda ela vinha no ar e já o Brutamontes tinha atirado outra dama rindo às gargalhadas e berrando:

— Fogo de vistas! Ai que eu rebento a rir!

Assim, umas atrás das outras, lá foram pelos ares tôdas as damas e as aias. Lá iam com as saias abertas como sombrinhas e as perninhas
 

Assim lá foram pelos ares tôdas as damas e aias da princesa…

 
a dar e dar; e o vento levava-as para um lado e para outro até que caíam ao rio! — Plaff! — e ficavam a boiar com as saias tufadas em volta delas e a corrente do rio levava-as como barquinhos.

Acudiu logo muita gente em barcos e salvaram-nas tôdas, ensopadas e com os seus fatos ricos todos estragados e os penteados desfeitos que metiam dó.

Quando se viu só no barco com a princesa Smercantina, o Brutamontes, rindo às gargalhadas, caminhou para ela com tenção de a atirar também pelos ares fora. Mas quando chegou perto de Smercantina, parou. A princesa, muito serena e séria, disse-lhe:

— Isso não, Brutamontes. Eu sou a princesa real.

O Brutamontes ficou-se pasmado a olhar para ela como se a visse pela primeira vez. Não lhe tocou. Foi sentar-se nas suas almofadas e resmungou com mau modo:

— Dá-me mais figos e mais nozes.

Mas a princesa, ficou-se a olhar para êle, tôda severa e de testa franzida, e não se mexeu.

O Brutamontes não disse uma nem duas. Fechou os olhos e fingiu que adormecia. Encontrara pela primeira vez uma pessoa mais forte do que êle. E essa pessoa era uma mulher, quási uma criança, pequenina e fraca de corpo! O Brutamontes estava pasmado.

Entretanto a dama Furabolos, agarrada à bruxa e a cavalo na vassoura, ia por êsses ares fora, entre as nuvens. Chegaram por fim a casa da feiticeira, que era lá no alto de uma montanha, no meio de uma grande floresta.

— Quem vem lá? — gritou uma voz que parecia um trovão.

E apareceu o guarda-portão que era um bicho medonho do tamanho de um elefante, com cabeça de águia, patas de leão e duas asas côr de fogo.

— Nós queremos falar à feiticeira Podetudo que mora aqui, — disse a bruxa.

— Passem de largo, — rugiu o monstro. — Ninguém
 

E apareceu o guarda-portão que era um bicho medonho…

 
pode falar à minha ama sem licença especial.

— Esta que vem na minha companhia, — respondeu a bruxa com todo o desembaraço, — é uma grande rainha, senhora de enormes riquezas. Quem lhe responder aqui a uma só pregunta que ela quere fazer, terá um prémio riquíssimo.

O bicho guarda-portão, que era muito estúpido e muito cobiçoso, arregalou os olhos.

— Qual é a pregunta? — disse êle.

— Queremos saber como se quebra o feitiço com que a tua ama mudou o grande príncipe Maravilhas no bronco Palonço Brutamontes.

O monstro começou a roer as unhas das garras com o enorme bico de águia, e preguntou:

— E qual é o prémio que essa tua rainha dá a quem lhe responder?

A bruxa disse:

— Dá um saco de seis alqueires cheio de ouro, sem contar outras coisas.

O bicharoco pôs-se a alisar as penas das asas e a piscar os olhos. Por fim soltou um berro que até o chão tremeu:

— Tobalco! ó Tobalco!

E então apareceu um anão que não tinha mais de dois palmos de altura. A cabeça parecia uma bola, as pernas eram tortas e a barba vermelha e tão comprida que lhe dava duas voltas à roda do pescoço. O bicho guarda-portão levou-o para um canto e começou a falar-lhe em segrêdo. A conversa durou muito tempo. Afinal o anão Tobalco disse à bruxa e à dama Furabolos que o acompanhassem e o guarda-portão recomendou-lhes que fizessem tudo que êle lhes dissesse, fôsse lá o que fosse.

O anão levou-as por muitos corredores e escadas, ora abaixo, ora acima, sempre a dizer em segrêdo que não falassem nem fizessem barulho. Depois de andarem muito tempo, com tôda a cautela por aquêles corredores escuros e escadas que pareciam não ter fim, o anão parou defronte de uma porta e pôs-se à escuta. Depois abriu a porta muito devagarinho, espreitou lá para dentro e fêz entrar as duas. O quarto era grande e estava quási às escuras. O anão escondeu-as detrás de um reposteiro e recomendou-lhes que não se mexessem nem falassem até êle voltar. Lá as deixou e foi-se embora.

Ali ficaram as duas muito quietas e caladas durante muito tempo; por fim abriu-se a porta; entrou um vulto grande e acendeu a luz. As duas por detrás do reposteiro viram então que o quarto era enorme. A pessoa que entrara era muito esquisita e medonha. Alta e esguia, com braços e pernas compridíssimos e muito magros. Tinha cara de macaco e, em lugar de cabelo, picos de porco-espinho espetados. Era com certeza a grande feiticeira Podetudo. Atrás dela vinha o anão Tobalco que foi logo todo lépido acender uma fogueira na lareira.

A feiticeira sentou-se num banco ao pé do lume e disse com uma voz de cana rachada.

— Então conta lá. Quem eram aquelas mulheres que vieram a cavalo numa vassoura?

— Eram uma rainha e uma bruxa que vinham para saber como haviam de quebrar o feitiço do príncipe Maravilhas que Vossa Senhoria mudou no Palonço Brutamontes.

— E que respondeste tu? — preguntou a feiticeira com os olhos a luzir e tôda desconfiada.

— Ora! — disse Tobalco — respondi que não sabia nada disso e que Vossa Senhoria tinha ido viajar.

— E elas?

— Elas montaram na vassoura e abalaram.

— Hum… resmungou a feiticeira Podetudo, e desatou a rir às gargalhadas. Ria tanto que se dobrava ao meio; queria falar e não podia tal era a fôrça do riso. Por fim conseguiu falar e disse assim:

— Ai! que eu morro a rir! O feitiço do príncipe Maravilhas não se pode quebrar. Só o poderia quebrar uma princesa de sangue real, herdeira de um grande
 

— Ai! que eu morro a rir!…

 
reino, e que lhe tivesse tanto amor, tanto amor… Ah! Ah! Ah!… Deixa-me rir!.. Tanto amor, que quisesse para marido o Palonço Brutamontes!…

O anão Tobalco desatou a rir também com quanta fôrça tinha.

— Ah! Ah! Ah! — berrava êle torcendo-se de riso. — Isso é um feitiço que nunca se pode quebrar! Não há nenhuma princesa real que pudesse ter amor àquêle bruto. Só Vossa Senhoria poderia inventar um tão forte feitiço! Esta é boa! Ah! Ah! Ah!

Ali ficaram os dois a rir como possessos. E tanto riram que caíram para o chão onde se rebolaram e se torceram de riso até que a feiticeira Podetudo, estafada de rir, adormeceu. Tobalco aproximou-se dela, soprou-lhe para as ventas grandes baforadas do fumo do seu cachimbo e, quando a viu tão quieta que parecia morta foi muito devagarinho buscar lá detrás do reposteiro a bruxa e a dama Furabolos.

Mas nisto, a dama Furabolos que se constipara quando ia pelos ares a cavalo na vassoura, não podendo conter-se mais, largou um espirro que parecia uma descarga de metralhadora.

— At… chim!

— Eia! com trinta mil macacos! — disse o anão Tobalco, todo aflito.

E a correr, levou a bruxa e a dama para fora do quarto, abriu uma grande janela ao fundo de um corredor e disse-lhes:

— Agora podem fugir. Mas que é do saco de dinheiro?

A bruxa que era espertalhona, respondeu dando-lhe um sacho pequenino que tirou do bolso:

— Vai fazer uma cova debaixo da acácia grande que está à entrada desta casa. Lá encontrarás o saco de dinheiro. Mas só o hás-de encontrar quando eu e esta dama, estivermos a salvo.

Nisto ouviu-se um estrondo enorme e no meio de grande fumarada apareceu a feiticeira Podetudo, furiosa, aos berros, aos saltos, fazendo caretas horríveis:

— Onde estão elas? Onde estão essas bruxas que se atreveram a enganar-me?

Acordara com o espirro da dama Furabolos e logo percebera o que se passava; vinha como um furacão, disposta a vingar-se.

Mas a bruxa e a dama, tinham montado na vassoura e já ninguém as via, escondidas por detrás das nuvens.

Lá no palácio real, o Palonço Brutamontes, estava no seu aposento, sentado à janela, muito quieto e calado.

Desde aquêle passeio no rio, nunca mais ninguém lhe ouvira a voz. Nunca mais fizera uma brutalidade. Passava horas a cismar, com a cabeça encostada às mãos e a testa tôda franzida, no esfôrço que fazia para pensar.

Quando lá no barco se aproximara da princesa Smercantina para a atirar pelos ares, e que encontrara o seu olhar calmo e sereno, percebera de repente que havia uma fôrça muito maior do que a dos seus braços. A fôrça calma e invencível do amor verdadeiro , a fôrça de uma vontade pura e forte que nenhuma outra fôrça pode vencer. No seu coração, que o feitiço da Podetudo adormecera, acendera-se de repente uma grande claridade.

A princesa esteve muitos dias sem ir visitá-lo; e êle entristecera tanto que nem queria comer.

Por fim Smercantina, bateu-lhe uma bela manhã à porta do quarto. Furabolos e a bruxa tinham voltado e tinham dito à princesa o segrêdo do feitiço.

— Trago-te aqui mais nozes e mais figos — disse Smercantina com um sorriso lindo.

Nesse instante quebrou-se o feitiço. O Brutamontes caiu para a banda como se estivesse morto. E, quando à fôrça de cuidados e de amor, a princesa conseguiu fazê-lo voltar a si, o Brutamontes transformara-se no príncipe Maravilhas.

Levantou-se, ajoelhou aos pés de Smercantina e disse-lhe assim:

— Ai, princesa do meu coração! Fôste tu que me salvaste. Fôste tu que à fôrça de amor me livraste daquela prisão de estupidez e de brutalidade onde a maldade da feiticeira me tinha prêso. Sou o príncipe Maravilhas. Meu pai é um grande rei. E peço-te, Smercantina, que me perdôes a brutalidade e a estupidez de que tanto me envergonho. Queres casar comigo?

A princesa, abrasada de alegria, estendeu-lhe a mão e não pôde responder porque a sua felicidade era tão grande que nem a deixava falar.

As festas do casamento foram um esplendor. O rei, pai de Smercantina, não cabia em si de contente. O príncipe e a princesa viveram muitos e muitos anos, sempre muito amigos e felizes e tiveram muitos filhos tão lindos e bons como êles.

 
FIM