História do Palonço Brutamontes
Era uma vez um rei viúvo que só tinha uma filha. Gostava tanto dela que lhe fazia tôdas as vontades.
O que valia era que a princesa Smercantina tinha bom coração, de modo que não queria coisas más ou que fizessem sofrer os outros.
Quando Smercantina chegou à idade de se casar, o pai começou a apresentar-lhe noivos. Como aquêle rei tinha muitas riquezas e muito poder, e como a princesa era muito perfeita e linda, não faltaram príncipes e reis coroados, e grandes senhores fidalgos cobertos de glórias e de riquezas, vindos de perto e de longe a apresentar-se como pretendentes à mão da princesa.
Mas ela olhava para todos e abanava a cabeça; não escolhia nenhum; nenhum lhe agradava. Dizia que um tinha o nariz muito comprido, e que outro tinha as orelhas grandes ou pequenas demais, que aquêle tinha as pernas tortas, ou bôca de peixe, ou mãos de macaco, ou que o seu fato era feio. Enfim, nenhum lhe servia.
O pobre pai arrepelava-se todo de desespêro; já não sabia o que havia de fazer. Os pretendentes iam-se embora amuados ou furiosos dizendo que a culpa era do rei que educara mal a filha; e o rei já estava a ver que mais dia menos dia, aquêles senhores descontentes acabariam por lhe fazer guerra.
A princesa não se ralava. Não queria saber dos pretendentes para nada; não pensava em casar. Quando saía do salão onde estavam os reis, príncipes e grandes senhores, abanava a cabeça e dizia a rir: — nenhum, nenhum, nenhum! — e ia para o seu quarto, com as suas damas, e punha-se à janela a ver quem passava.
Ora um dia, estando ela assim à janela, viu passar no largo defronte do palácio, um rapaz que lhe pareceu a
A princesa viu passar um rapaz…
criatura mais linda que os seus olhos tinham enxergado.
Ia descalço, levava uns calções rotos, um gibão sujo e esfarrapado, uma gorra muito sebenta sôbre os cabelos esguedelhados, a cara e as mãos tôdas enfarruscadas. Devia ser algum miserável carregador do pôrto.
A princesa levantou-se e foi a correr pelas escadas abaixo. Saíu do portão do palácio que nem uma seta e, com as damas e aias espavoridas correndo atrás dela, foi ter com o tal rapaz.
— Anda comigo, — disse ela, — tu é que vais ser o meu noivo.
O carregador que era muito bruto, olhou para ela de revés e respondeu com mau modo:
— Não quero cá saber de cantigas. Deixe-me.
A princesa quis pegar-lhe na mão, mas êle virou-lhe as costas e seguiu o seu caminho a assobiar, como se não fôsse nada com êle.
A princesa pôs-lhe a mão no ombro, agarrou-se-lhe ao gibão quási a chorar, dizendo com uma voz tão meiga que cortava o coração:
— Vem comigo para o palácio. Morro por ti! Quero casar contigo!
— Não me importo com palácios nem casamentos. Larga-me! Quero ir cear.
— Vem cear comigo, meu amor! O rapaz zangou-se e deu-lhe um encontrão.
— Vá à fava! — gritou êle. — Que maçadora!
E continuou o seu caminho sem olhar sequer para trás.
A princesa desatou a chorar e as damas levaram-na quási desmaiada para o palácio. Mas uma delas que era tôda espertalhona foi disfarçadamente seguindo de longe o carregador até que o viu entrar numa casita miserável à beira do rio largo que atravessava a cidade.
A tal dama da princesa, chamava-se Furabolos; e o nome dizia com ela porque era tôda despachada e resoluta.
Sabendo onde morava o rapaz, andou por ali, pelas vizinhanças, falando com uns e com outros até descobrir que êle se chamava Palonço Brutamontes, que era estúpido e bruto, que tinha fama de ser o homem mais forte daqueles sítios e que trabalhava como carregador de navios.
Entretanto a princesa voltara para o palácio e metera-se no quarto a chorar. Chorava sem consolação. As damas à roda dela faziam tudo quanto podiam para a distrair. Mas ela nem as ouvia. Era só chorar e gemer; entre lágrimas e suspiros dizia assim:
— Tragam-me aquêle rapaz tão lindo, senão morro. Aquêle é o noivo do meu coração. Ou caso com êle ou me deixo morrer!
Á força de chorar e de se atormentar com aquêles pensamentos, veio-lhe uma grande febre. O rei parecia doido na sua aflição e no seu desgôsto. Mandou vir médicos e curandeiros e até feiticeiros e bruxas a ver se algum lhe curava a filha daquele triste mal. Mas nenhum atinava com a doença da princesa nem dava alívio ao seu desgôsto.
A princesa Smercantina não comia, nem bebia, nem dormia. No delírio da sua febre era só gritar:
— Dêem-me o carregador! Tragam aqui o meu lindo noivo, senão morro!
A dama Furabolos tirou-se dos seus cuidados e foi ter com o rei. Contou-lhe que tinha ido atrás do carregador e que sabia onde êle morava; e o rei que já tinha mandado os seus oficiais pela cidade tôda à procura do rapaz, respondeu:
— Vou já dar ordem que mo tragam aqui a bem ou a mal. Não me importo que êle seja carregador e bruto e estúpido. Se a sua presença é precisa para a felicidade da minha querida filha, há-de vir para o palácio nem que seja metido em ferros; há-de vir, nem que seja o próprio demónio!
Mas a dama Furabolos que era muito esperta, disse-lhe assim:
— Se Vossa Majestade o manda vir à fôrça êle chega aí que nem uma fera e até pode ser perigoso para a princesa. Talvez não fosse má idéia Vossa Majestade ordenar umas festas aqui no largo defronte do palácio; torneios para os fidalgos e lutas para o povo. Como o carregador é muito forte e tem presunção na sua fôrça bruta, virá com certeza para as lutas. A princesa daria os prémios e pode ser que assim aquêle rapaz bestial se amansasse mais.
O rei achou que a dama Furabolos tinha razão, e logo deu as suas ordens para uma grande festa de torneios e lutas no largo defronte do palácio, com prémios lindos e riquíssimos para os vencedores.
Vieram logo carpinteiros e outros artífices armar o recinto e fazer os palanques. Os reis, príncipes e fidalgos que ainda estavam na Côrte trataram de mandar limpar e polir as suas armaduras e lanças e de escolher os seus melhores cavalos. Não se falava em tôda a cidade senão na grande festa e todos se preparavam para ela o melhor que podiam. Os homens do povo conhecidos como bons lutadores, exercitavam-se por todos os cantos. Mas o carregador continuava a fazer a sua vida do costume; e se alguém lhe falava na festa e lhe preguntava se tinha tenções de ir lutar, respondia com palavrões e arremessos muito feios, de modo que ninguém sabia quais eram as suas tenções.A princesa estava melhor desde que lhe contaram da festa; encheu-se de esperanças; não fazia senão rezar e pedir aos Santos que mandassem o carregador às lutas e lhe dessem a vitória.
Por fim chegou o grande dia. Estava a praça tôda enfeitada e embandeirada; era a coisa mais linda que se podia ver. E charamelas a tocarem, e os fidalgos e fidalgas muito bem aparamentados, e o povo era tanto que não se via senão um mar de cabeças.
Começaram os torneios que foram lindíssimos. Aquêles grandes senhores, reis, príncipes e fidalgos, apareceram com armaduras muito ricas que luziam ao sol e grandes plumas no alto dos capacetes; e fizeram coisas do arco da velha com o sentido de agradarem à princesa Smercantina e de conquistarem a sua admiração. Mas a princesa nem para êles olhava; só procurava avistar entre a multidão do povo, o carregador bruto que lhe roubara o coração.
Por fim chegou a vez das lutas e, quando menos se esperava, apareceu o Palonço Brutamontes. Aquilo foi uma coisa nunca vista. O Brutamontes venceu todos os lutadores. Não houve um só que lhe resistisse. O povo estava doido de entusiasmo. Mas êle não se importou; nem sequer agradeceu os aplausos. Virou costas; queria abalar dali para fora. Tiveram que o levar à fôrça diante da princesa para ela lhe dar o prémio que era um colar riquíssimo de ouro maciço todo cravejado de pedras preciosas. Mas quando a princesa Smercantina, com as mãos a tremer de admiração e de amor, quis enfiar-lho pela cabeça, êle deitou a mão ao colar e arremessou-o, ao chão, dizendo:
— Quero cá prémios! Larguem-me! Quero ir para casa! Vão todos à fava!
Só pensava em abalar; mas o rei, que via o desgôsto da filha, mandou-o prender. Levaram-no à fôrça e fecharam-no num quarto do palácio.
O rei estava tristíssimo. Não sabia como havia de amansar aquêle bruto. Mandou-lhe dar os melhores manjares que havia; mandou-o vestir com os fatos mais lindos e ricos do seu guarda-roupa; mandou os melhores fidalgos da sua Côrte falar com o Palonço Brutamontes e distraí-lo.
Nos primeiros dias o bruto parecia uma fera. Quebrava tudo que estava no quarto, atirava os fatos ricos pela janela fora, corria os fidalgos a murros e pontapés. Mas, a pouco e pouco, vendo que aquelas brutalidades não serviam de nada, começou a amansar. Como a fome apertasse, lá foi comendo os manjares deliciosos que lhe mandavam. Foi-se costumando aos fatos lindos e ricos que lhe vestiam. Por fim começou a gostar daquela vida. Dava ordens, aos berros:
— Não quero molhos nem picados! Quero carneiro com batatas! E pão com queijo!
Atirava para o chão com vinhos preciosos e gritava:
— Não bebo águas de cheiro! Quero vinho carrascão!
De vez em quando o rei ia vê-lo. O Brutamontes, muito bem repimpado numa cadeira, nem se levantava para o receber; e dizia-lhe assim:
— O que vem você cá cheirar com essa coroa de ouro na cabeça? Cuida que me mete mêdo? Não tenho
De vez em quando o rei ia vê-lo…
mêdo de você nem de cem como você! Gire daqui para fora.
O rei tinha vontade de lhe mandar dar uma carga de pau ou de chibatadas, para o ensinar; mas como fazia tudo que a princesa queria e não era capaz de a contrariar fôsse no que fôsse, lá ia aturando aquelas brutalidades do carregador. Andava tristíssimo e um dia disse assim à dama Furabolos:
— Bem dura é a minha sorte! Ser como sou um rei tão poderoso, senhor de tão grandes e ricos Estados, e não poder correr com esta bêsta bronca que me ofende! E ver a minha filha, herdeira dêstes reinos, assim namorada de um lorpa, um bruto dêstes! Ai de mim! O que será do meu reino em tais mãos!
E largou-se a chorar e a arrancar as barbas.
A dama Furabolos, que respeitava e amava muito o seu rei, ficou tôda aflita ao vê-lo tão desesperado. Fechou-se no quarto a dar volta ao pensamento, a ver se poderia fazer qualquer coisa que remediasse tamanho mal. Lembrou-se de mandar chamar uma bruxa de grande fama; tinham-lhe dito que essa bruxa possuía enormes poderes, que sabia muitos segredos e curava muitos males. A bruxa veio logo. Entrou-lhe de noite pela janela dentro a cavalo numa vassoura. Era uma velhinha pequenina e magra, com um grande nariz curvo como o bico de um papagaio, um queixo muito agudo e os cabelos grisalhos muito esguedelhados.
A dama Furabolos não teve mêdo nenhum da bruxa e disse-lhe:
— Mandei-te chamar porque me disseram que és muito poderosa; quero que me ajudes. Se me servires bem, dar-te-ei o que me pedires.
— Já sei o que tu queres—respondeu a bruxa. — E como sou muito amiga da princesa Smercantina, estou pronta a ajudar-te. Mas o caso é sério. Por hoje só te posso dizer uma coisa: o Palonço Brutamontes é um príncipe encantado. Uma feiticeira muito má, para se vingar do rei, pai do príncipe, que a tinha mandado castigar pelas suas maldades, encantou-lhe o filho fazendo dêle o Brutamontes.
— Ainda bem! Ainda bem! — gritou a dama Furabolos, radiante com a idéia do Palonço ser príncipe.
Mas a feiticeira soltou um suspiro e disse-lhe assim:
— Não te alegres antes de tempo, porque eu não sei como se há-de quebrar aquêle maldito encanto.
— Mas vais agora descobrir isso! — respondeu logo a dama Furabolos. — Eu sei que podes muito e que és capaz de descobrir êsse segrêdo.
A bruxa sentou-se num banquinho, e pôs-se a cismar . Por fim levantou-se, pegou na vassoura, e disse:
— Queres vir comigo?
A dama Furabolos deu um salto de alegria e gritou:
— Pois vou; e estou pronta a fazer tudo que fôr preciso para salvar o meu rei e a minha rica princesa.
Então a bruxa montou a cavalo na vassoura e disse à dama que montasse atrás dela e, saindo ambas pela janela, ai foram a tôda a pressa pelos ares fora, cortando o vento que nem uma seta.
A princesa Smercantina ia muitas vezes visitar o Palonço Brutamontes aos seus aposentos. Ia com as damas e aias, e fazia grandes cumprimentos ao noivo do seu coração. Êle, estatelado num cadeirão, não se mexia. Punha-se a grunhir:
— Que maçada! Tanto mulherio! Ponham-se daqui para fora senão corro-as a pontapés!
As damas e as aias escondiam-se pelos cantos conforme podiam a tremer de mêdo. Mas Smercantina nem se assustava nem fazia caso do que êle dizia. Falava-lhe va-lhe com muita paciência e bom modo:
— Meu noivo adorado, morro por ti. Trouxe-te coisas boas para te dar gôsto.
E dava-lhe rebuçados e doces e licores deliciosos; mas êle atirava tudo pela janela fora com feios arremessos e palavrões horríveis.
Até que um dia uma das damas lembrou à princesa que levasse ao Brutamontes figos secos e nozes, porque êle só gostava de comeres grosseiros, e uma garrafa de água-pé. A princesa assim fêz. E o Brutamontes não atirou estas coisas pela janela fora. Pôs-se a grunhir como um porco, a comer os figos e as nozes e a beber a água-pé com tanta brutalidade que se babava todo.
— Meu amor, — dizia a princesa tôda contente, — ainda bem que gostas.
E êle grunhia:
— Dá-me mais figos e mais nozes. Quero mais água-pé.
Por fim Smercantina disse-lhe que se êle quisesse ir dar um passeio no rio na sua companhia, lhe daria muitos figos e nozes, e bacalhau cru, e sardinhas salgadas.
— Hum… hum… hum… — resmungou êle. — Mas não me toques, espantalho! Senão vai tudo raso.
E lá foram dar o tal passeio.
O barco estava aparamentado que era uma beleza. O Brutamontes atirou-se para cima de um barco forrado de ricas alcatifas e de almofadas de brocado, e ali se instalou nem que fôsse um bicho.
— Vês como o rio está bonito e como estão bem enfeitados os barcos que nos acompanham, — dizia a princesa. — Nem imaginas como me sinto feliz aqui ao teu lado!
— Hum!… Hum!… — respondia êle. — Cala a bôca. Quero mais figos e mais nozes.
Quando se encheu de figos e nozes e de água-pé, desatou a rir.
— Agora vou-me divertir, — declarou êle.
Levantou-se do fôfo assento que lhe tinham preparado à ré e galgando os bancos foi até à pôpa onde as damas e as aias, cheias de mêdo, se tinham juntado. Pegou numa delas e atirou-a ao ar com tanta fôrça que a pobre senhora subiu a uma grande altura. — Ui! Ui! Ui! — gritava a dama tôda aflita. Quando começou a descer, como naquele tempo as senhoras usavam muitas saias e com muita roda, as saias abriram-se como uma sombrinha e ela foi descendo devagar como em pára-quedas. Aflita da sua vida, agitava os braços e as pernas como se dançasse no ar e gritava que nem uma possessa. As saias espalhavam-se e viam-se as calcinhas com muitos folhos e rendinhas. Ainda ela vinha no ar e já o Brutamontes tinha atirado outra dama rindo às gargalhadas e berrando:
— Fogo de vistas! Ai que eu rebento a rir!
Assim, umas atrás das outras, lá foram pelos ares tôdas as damas e as aias. Lá iam com as saias abertas como sombrinhas e as perninhas
Assim lá foram pelos ares tôdas as damas e aias da princesa…
a dar e dar; e o vento levava-as para um lado e para outro até que caíam ao rio! — Plaff! — e ficavam a boiar com as saias tufadas em volta delas e a corrente do rio levava-as como barquinhos.
Acudiu logo muita gente em barcos e salvaram-nas tôdas, ensopadas e com os seus fatos ricos todos estragados e os penteados desfeitos que metiam dó.
Quando se viu só no barco com a princesa Smercantina, o Brutamontes, rindo às gargalhadas, caminhou para ela com tenção de a atirar também pelos ares fora. Mas quando chegou perto de Smercantina, parou. A princesa, muito serena e séria, disse-lhe:
— Isso não, Brutamontes. Eu sou a princesa real.
O Brutamontes ficou-se pasmado a olhar para ela como se a visse pela primeira vez. Não lhe tocou. Foi sentar-se nas suas almofadas e resmungou com mau modo:
— Dá-me mais figos e mais nozes.
Mas a princesa, ficou-se a olhar para êle, tôda severa e de testa franzida, e não se mexeu.
O Brutamontes não disse uma nem duas. Fechou os olhos e fingiu que adormecia. Encontrara pela primeira vez uma pessoa mais forte do que êle. E essa pessoa era uma mulher, quási uma criança, pequenina e fraca de corpo! O Brutamontes estava pasmado.
Entretanto a dama Furabolos, agarrada à bruxa e a cavalo na vassoura, ia por êsses ares fora, entre as nuvens. Chegaram por fim a casa da feiticeira, que era lá no alto de uma montanha, no meio de uma grande floresta.
— Quem vem lá? — gritou uma voz que parecia um trovão.
E apareceu o guarda-portão que era um bicho medonho do tamanho de um elefante, com cabeça de águia, patas de leão e duas asas côr de fogo.
— Nós queremos falar à feiticeira Podetudo que mora aqui, — disse a bruxa.
— Passem de largo, — rugiu o monstro. — Ninguém
E apareceu o guarda-portão que era um bicho medonho…
pode falar à minha ama sem licença especial.
— Esta que vem na minha companhia, — respondeu a bruxa com todo o desembaraço, — é uma grande rainha, senhora de enormes riquezas. Quem lhe responder aqui a uma só pregunta que ela quere fazer, terá um prémio riquíssimo.
O bicho guarda-portão, que era muito estúpido e muito cobiçoso, arregalou os olhos.
— Qual é a pregunta? — disse êle.
— Queremos saber como se quebra o feitiço com que a tua ama mudou o grande príncipe Maravilhas no bronco Palonço Brutamontes.
O monstro começou a roer as unhas das garras com o enorme bico de águia, e preguntou:
— E qual é o prémio que essa tua rainha dá a quem lhe responder?
A bruxa disse:
— Dá um saco de seis alqueires cheio de ouro, sem contar outras coisas.
O bicharoco pôs-se a alisar as penas das asas e a piscar os olhos. Por fim soltou um berro que até o chão tremeu:
— Tobalco! ó Tobalco!
E então apareceu um anão que não tinha mais de dois palmos de altura. A cabeça parecia uma bola, as pernas eram tortas e a barba vermelha e tão comprida que lhe dava duas voltas à roda do pescoço. O bicho guarda-portão levou-o para um canto e começou a falar-lhe em segrêdo. A conversa durou muito tempo. Afinal o anão Tobalco disse à bruxa e à dama Furabolos que o acompanhassem e o guarda-portão recomendou-lhes que fizessem tudo que êle lhes dissesse, fôsse lá o que fosse.
O anão levou-as por muitos corredores e escadas, ora abaixo, ora acima, sempre a dizer em segrêdo que não falassem nem fizessem barulho. Depois de andarem muito tempo, com tôda a cautela por aquêles corredores escuros e escadas que pareciam não ter fim, o anão parou defronte de uma porta e pôs-se à escuta. Depois abriu a porta muito devagarinho, espreitou lá para dentro e fêz entrar as duas. O quarto era grande e estava quási às escuras. O anão escondeu-as detrás de um reposteiro e recomendou-lhes que não se mexessem nem falassem até êle voltar. Lá as deixou e foi-se embora.
Ali ficaram as duas muito quietas e caladas durante muito tempo; por fim abriu-se a porta; entrou um vulto grande e acendeu a luz. As duas por detrás do reposteiro viram então que o quarto era enorme. A pessoa que entrara era muito esquisita e medonha. Alta e esguia, com braços e pernas compridíssimos e muito magros. Tinha cara de macaco e, em lugar de cabelo, picos de porco-espinho espetados. Era com certeza a grande feiticeira Podetudo. Atrás dela vinha o anão Tobalco que foi logo todo lépido acender uma fogueira na lareira.
A feiticeira sentou-se num banco ao pé do lume e disse com uma voz de cana rachada.
— Então conta lá. Quem eram aquelas mulheres que vieram a cavalo numa vassoura?
— Eram uma rainha e uma bruxa que vinham para saber como haviam de quebrar o feitiço do príncipe Maravilhas que Vossa Senhoria mudou no Palonço Brutamontes.
— E que respondeste tu? — preguntou a feiticeira com os olhos a luzir e tôda desconfiada.
— Ora! — disse Tobalco — respondi que não sabia nada disso e que Vossa Senhoria tinha ido viajar.
— E elas?
— Elas montaram na vassoura e abalaram.
— Hum… resmungou a feiticeira Podetudo, e desatou a rir às gargalhadas. Ria tanto que se dobrava ao meio; queria falar e não podia tal era a fôrça do riso. Por fim conseguiu falar e disse assim:
— Ai! que eu morro a rir! O feitiço do príncipe Maravilhas não se pode quebrar. Só o poderia quebrar uma princesa de sangue real, herdeira de um grande
— Ai! que eu morro a rir!…
reino, e que lhe tivesse tanto amor, tanto amor… Ah! Ah! Ah!… Deixa-me rir!.. Tanto amor, que quisesse para marido o Palonço Brutamontes!…
O anão Tobalco desatou a rir também com quanta fôrça tinha.
— Ah! Ah! Ah! — berrava êle torcendo-se de riso. — Isso é um feitiço que nunca se pode quebrar! Não há nenhuma princesa real que pudesse ter amor àquêle bruto. Só Vossa Senhoria poderia inventar um tão forte feitiço! Esta é boa! Ah! Ah! Ah!
Ali ficaram os dois a rir como possessos. E tanto riram que caíram para o chão onde se rebolaram e se torceram de riso até que a feiticeira Podetudo, estafada de rir, adormeceu. Tobalco aproximou-se dela, soprou-lhe para as ventas grandes baforadas do fumo do seu cachimbo e, quando a viu tão quieta que parecia morta foi muito devagarinho buscar lá detrás do reposteiro a bruxa e a dama Furabolos.
Mas nisto, a dama Furabolos que se constipara quando ia pelos ares a cavalo na vassoura, não podendo conter-se mais, largou um espirro que parecia uma descarga de metralhadora.
— At… chim!
— Eia! com trinta mil macacos! — disse o anão Tobalco, todo aflito.
E a correr, levou a bruxa e a dama para fora do quarto, abriu uma grande janela ao fundo de um corredor e disse-lhes:
— Agora podem fugir. Mas que é do saco de dinheiro?
A bruxa que era espertalhona, respondeu dando-lhe um sacho pequenino que tirou do bolso:
— Vai fazer uma cova debaixo da acácia grande que está à entrada desta casa. Lá encontrarás o saco de dinheiro. Mas só o hás-de encontrar quando eu e esta dama, estivermos a salvo.
Nisto ouviu-se um estrondo enorme e no meio de grande fumarada apareceu a feiticeira Podetudo, furiosa, aos berros, aos saltos, fazendo caretas horríveis:
— Onde estão elas? Onde estão essas bruxas que se atreveram a enganar-me?
Acordara com o espirro da dama Furabolos e logo percebera o que se passava; vinha como um furacão, disposta a vingar-se.
Mas a bruxa e a dama, tinham montado na vassoura e já ninguém as via, escondidas por detrás das nuvens.
Lá no palácio real, o Palonço Brutamontes, estava no seu aposento, sentado à janela, muito quieto e calado.
Desde aquêle passeio no rio, nunca mais ninguém lhe ouvira a voz. Nunca mais fizera uma brutalidade. Passava horas a cismar, com a cabeça encostada às mãos e a testa tôda franzida, no esfôrço que fazia para pensar.
Quando lá no barco se aproximara da princesa Smercantina para a atirar pelos ares, e que encontrara o seu olhar calmo e sereno, percebera de repente que havia uma fôrça muito maior do que a dos seus braços. A fôrça calma e invencível do amor verdadeiro , a fôrça de uma vontade pura e forte que nenhuma outra fôrça pode vencer. No seu coração, que o feitiço da Podetudo adormecera, acendera-se de repente uma grande claridade.
A princesa esteve muitos dias sem ir visitá-lo; e êle entristecera tanto que nem queria comer.
Por fim Smercantina, bateu-lhe uma bela manhã à porta do quarto. Furabolos e a bruxa tinham voltado e tinham dito à princesa o segrêdo do feitiço.
— Trago-te aqui mais nozes e mais figos — disse Smercantina com um sorriso lindo.
Nesse instante quebrou-se o feitiço. O Brutamontes caiu para a banda como se estivesse morto. E, quando à fôrça de cuidados e de amor, a princesa conseguiu fazê-lo voltar a si, o Brutamontes transformara-se no príncipe Maravilhas.
Levantou-se, ajoelhou aos pés de Smercantina e disse-lhe assim:
— Ai, princesa do meu coração! Fôste tu que me salvaste. Fôste tu que à fôrça de amor me livraste daquela prisão de estupidez e de brutalidade onde a maldade da feiticeira me tinha prêso. Sou o príncipe Maravilhas. Meu pai é um grande rei. E peço-te, Smercantina, que me perdôes a brutalidade e a estupidez de que tanto me envergonho. Queres casar comigo?
A princesa, abrasada de alegria, estendeu-lhe a mão e não pôde responder porque a sua felicidade era tão grande que nem a deixava falar.
As festas do casamento foram um esplendor. O rei, pai de Smercantina, não cabia em si de contente. O príncipe e a princesa viveram muitos e muitos anos, sempre muito amigos e felizes e tiveram muitos filhos tão lindos e bons como êles.