Histórias diversas (anos 70)/12

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O CENTAURINHO



O FATO MAIS IMPORTANTE daquele ano foi a trazida de um centaurinho para o mundo moderno. Toda gente sabia o que era centauro: um ser metade homem, metade cavalo. E não havia quem não tivesse visto uma pintura qualquer de centauro. Mas centauro de verdade nunca ninguém vira nenhum — nem seco ou empalhado nos museus. E vai, senão quando, que é que aparece no sítio de Dona Benta, em companhia de Pedrinho, Emília e do Visconde de Sabugosa, quando voltaram da Grécia Antiga depois das famosas doze façanhas de Hércules? Um centauro vivo, o centaurinho Meioameio, nome com que Emília batizou o potro de centauro que Hércules havia capturado nos campos da Argólida. Era um bichinho selvagem que rapidamente se educou, e quando os três picapauenses voltaram para o sítio, ele veio também — por gosto, não à força.

A volta da Grécia foi feita por meio do pó de pirlimpimpim, cujo funcionamento todas as crianças conhecem. Basta aspirar uma pitada, ouve-se um "fiun!" e pronto!, está chegado. Assim foi daquela vez. Pedrinho deu uma pitada de pó a cada um, todos a aspiraram ao mesmo tempo... e pronto, estavam chegados ao Sítio do Picapau Amarelo.

Quando Pedrinho voltou a si e se sentou, viu logo adiante um grupo formado por Dona Benta, tia Nastácia e Narizinho, todas de mãos na cintura, em redor duma "coisa" estirada no chão e ainda profundamente adormecida: o centaurinho.

— Não estou entendendo nada — dizia a negra. — Minha vista não é boa, mas o que eu vejo é uma mistura de cavalo e cavaleiro. Parece que os dois caíram, e o cavalo escondeu as pernas do cavaleiro e o cavaleiro escondeu a cabeça do cavalo ...

Dona Benta, que também tinha a vista fraca, achava que talvez fosse isso; mas Narizinho deu uma risada.

— Aqui não há cavalo nem cavaleiro nenhum, bobas. O que há é um centauro. Veja bem, vovó. O lombo, as quatro pernas e a cauda são de cavalo; mas em vez de pescoço e cabeça temos aqui (e mostrava com o dedo) um torso de homem do umbigo para cima cima — e uma cabeça com uma carinha linda. Trata-se portanto de um centauro ainda menino, ou ainda potrinho...

Ao ouvir aquilo, tia Nastácia benzeu-se três vezes com a mão esquerda, murmurando o seu famoso "Credo!"

— E Sinhá deixa que este bicho sem propósito acorde e fique morando aqui no sítio?

— Não sei, Nastácia. Isso depende de Pedrinho — que lá vem e bem acordado.

Pedrinho, que havia caído a uns cem passos de Meioameio, vinha vindo a correr. Abraçou Dona Benta, abraçou Narizinho e disse: — Não tenham medo, é mansíssimo, e o mesmo que um irmão meu.

— E chama-se Meioameio, nome que eu dei — xeretou Emília, que também já despertara e viera correndo. — Mansissimo! No começo, quando Lelé o pegou...

— Que Lelé é esse, Emília? interrompeu Dona Benta.

— Hércules. No começo, quando Lelé o pegou com a boladeira num bando de centauros que passavam no galope, eu queria que a senhora visse como o coitadinho se debateu! Mas amansou logo, porque é inteligentíssimo e compreende tudo.

Nesse momento Meioameio deu o primeiro sinal de si: estava acordando. Abriu um olho, depois o outro. Sentou-se nas patas traseiras e ao dar com Pedrinho riu-se.

Pedrinho fez as apresentações. "Esta aqui é a vovó, Dona Benta de Oliveira; e esta é a célebre Narizinho de quem tanto falei lá na Grécia. E esta pretidão é a famosa tia Nastácia, que já esteve morando uns tempos no labirinto do Minotauro, lá na ilha de Creta."

E voltando-se para Dona Benta e Narizinho:

— Ele sabe tudo a respeito da vida aqui no sítio, porque nas nossas viagens (que eu fazia montado nele), a distração minha e o gosto de Meioameio eram a nossa vida aqui e as aventuras do Pim. Está tão afiado nas nossas aventuras que até agüenta um exame. Pergunte-lhe alguma coisa, Narizinho, para ver.

A menina perguntou: — Que foi que encontramos chorando na Via-Láctea, na nossa viagem ao céu?

— Um anjinho de asa quebrada que depois recebeu de Emília o nome de Florzinha-das-Alturas — respondeu Meioameio com a maior segurança e prontidão.

Apesar da estranheza que era a presença de um centauro no sítio de Dona Benta, uma semana depois já estavam tão familiarizados com ele como se ali tivesse nascido e vivido a vida inteira.

— E em que língua se entendiam?

— Ora, na "língua da Emília", que era a "língua geral" de todos ali — o rinoceronte, a vaca mocha. A "lingua da Emília" era uma mistura de português, castelhano, gíria, expressões inglesas como "All right", "Okay" e "Mind your business" (cuide do seu nariz), tudo misturado com caretas, micagens e gestos de todos os tipos, pinotes, botamentos de lÍngua, espirros e até pontapés. A palavra "atenção", por exemplo, fora substituída por um pontapé na canela. Era tão expressiva a "lÍngua da EmÍlia", que um filósofo inglês, que pousou uma noite no Picapau Amarelo, disse mais tarde a Bernard Shaw: "A lingua universal, com que há tanto tempo a humanidade sonha, não é em nenhuma universidade que se está formando, e sim no maravilhoso sitio de Dona Benta" — e consta que Bernard Shaw tomou a seguinte nota em sua carteira: "Descobrir Emília e conversar com ela."

O que foi a vida de Meioameio no sítio de Dona Benta requer para ser contado um livro de 300 páginas, e talvez um dia apareça com o título: "Um Centauro no Mundo Moderno"; hoje vamos apenas narrar um casinho interessante que aconteceu.

Havendo o Visconde de Sabugosa entrado para a Academia Brasileira de Letras, Dona Benta fez questão de ir ao Rio, com todo o pessoal do sítio, a fim de assistir à cerimônia da posse. A eleição do Visconde correra muito barulhenta graças à oposição dos "imortais" que não tinham em casa filhos crianças e portanto ignoravam quem fosse o tal "sabugo científico". Emilia, empenhadíssima na vitória do Visconde, teve de desenvolver uma atividade prodigiosa na remessa de leitões assados, cestas de jabuticabas, lingüiças de lombo, farinha de milho de beijuzinho, quartos de paca, pencas de codornas e perdizes — e até de cambadas de lambaris de rabo vermelho (com algumas pirapitingas entremeadas), a fim de conseguir votos. — É pela boca que se pega o "imortal" — dizia ela.

O tal caso interessante aconteceu na viagem ao Rio e foi o seguinte. Ao embarcarem na Central, na estação mais próxima do Sítio do Picapau, o chefe do trem deixou que entrassem todos, até o Quindim, mas barrou Meioameio. "Este não pode; é um passageiro não previsto no regulamento da estrada." O centauro não podia ir em vagão de passageiro porque não era integralmente homem; e não podia ir em vagão de animais, porque não era integralmente cavalo.

A trapalhada foi medonha. Dona Benta não podia seguir viagem só com os outros e deixar Meioameio largado ali na estação, rodeado de basbaques, como acontecia sempre que ele aparecia em público. Se ele não embarcava, os outros também não embarcariam; a solidariedade era perfeita — e como agir? A pobre senhora telegrafou para o diretor da Central, para o Presidente da República, para os Ministros de Estado, para o Deputado Barreto Pinto e até para o Embaixador da Grécia (o centaurinho era de nacionalidade grega). Nada conseguiu. As leis do país opunham-se terminantemente a que Meioameio viajasse em carro de passageiro por não ser integralmente homem, e em carro de animais por não ser integralmente cavalo. E o caso podia até determinar a ruptura das relações diplomáticas entre o Brasil e a Grécia, se a luminosa sugestão de Emília não fosse aceita.

— Qual foi a luminosa sugestão da Emília?

— Cortar as plataformas de dois carros, um de passageiros, outro de animais, e unir esses dois carros formando um só. Meioameio, então, viajaria de pé no ponto de junção, com a parte-cavalo no carro de animais, e a parte-gente no carro de passageiros; e pagaria meia passagem como gente e meio frete como cavalo. Só assim pôde o centaurinho ser transportado de trem ao Rio de Janeiro sem que as leis e regulamentos da República Federativa do Brasil fossem desrespeitados.

O Congresso Nacional chegou a votar uma moção de louvor a Emília pela inteligência com que salvou a Administração Pública dum terrível dilema: ou negar transporte a um passageiro ou infringir o regulamento duma estrada de ferro.

Temos aqui apenas um dos inumeráveis casos que a presença do centaurinho Meioameio no mundo moderno determinou, e que serão contados num livro grande — se as crianças quiserem.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.