Histórias diversas (anos 70)/13

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CONTO ARGENTINO


DIA 5 DE JANEIRO. Dona Dolores voltou do quintal com uma ruga de apreensão na testa. Seu marido, na sala de jantar, a ler os jornais, falou-lhe do programa das festas do dia seguinte. "Aqueles dois camelos do Zoológico vão desfilar pelas ruas com os Reis Magos. Estou vendo a surpresa da criançada . . ." Mas nem essa nota pitoresca desfez a ruga de Dona Dolores. O marido o notou e:

— Que cara é essa? Que há?

— Há que Panchito anda a revelar maus instintos. Outro dia quebrou um galho da macieira que plantei o ano passado e hoje, apesar das minhas recomendações, pilhei-o a descascar a pobre arvorezinha. É preciso castigá-lo.

Dom Francisco, homem de espírito filosófico, não tinha grande fé nos castigos à moda clássica e por isso sempre tomava a si a correção do menino; ponderou um momento com os olhos no forro, e:

— Ele que se vista para sair e venha ter comigo.

Dona Dolores estranhou a resolução, mas foi vestir o filho. Meia hora depois aparecia Panchito em sua roupa nova de marinheiro, gola branca e gorro com inscrição dourada: "Fragata Belgrano."

— Que é, papai? — indagou o menino em tom vagamente receoso. — Vai levar-me à cidade para o meu presente?

— Sim, meu filho.

Saíram. Na rua Dom Francisco tomou um "coletivo", e depois outro, e por fim desceu na Praça Lavalle, diante do Teatro Colón. Entrou no parque com o menino pela mão.

— Já andou por aqui, Pancho?

— Creio que não, papai. Não me lembro.

— Pois quero apresentar a você duas velhas árvores que conheço desde pequenote. As árvores são como navios ancorados nos portos. Mas os navios depois de certo tempo levantam a âncora e saem mar a fora, a correr mundo; já as árvores, onde nascem morrem; ficam toda a vida ancoradas pelo raizame no mesmo ponto, até que envelheçam e um dia um pé-de-vento as derrube. Veja. Todas estas árvores aqui nasceram e aqui vão morrer — menos uma. Uma há que nasceu muito longe de Buenos Aires, lá pelas fronteiras da Bolívia e se mudou para cá.

— Como se mudou, papai, se elas não levantam as raízes, como os navios levantam as âncoras?

— Foi mudada pequenina quando ainda não era árvore e sim “muda" — e assim falando Dom Francisco levou Pancho a certo ponto do parque, onde se deteve diante de uma velha árvore estropiada. Escoras de madeira sustinham seus galhos já bastante pendidos para o chão. Em três galhos-mestres se subdividia o tronco, a menos de um metro do solo, dando a idéia de um W tosco; e na base do tronco havia largas manchas de cimento — o cimento com que a municipalidade vai tapando os ocos abertos pelo tempo nas velhas árvores dos parques.

— E há aqui um letreiro, papai — disse o menino apontando para um quadrado de tábua na ponta de um espeque.

FLOR DE CEIBO TRAIDA DE
JUJUY PLANTADA EN 1876
PELA SOCIED DE FOMENTO
DON TORQUATO DE ALVEAR
EL PRIMERO INTENDENTE
DE BUENOS AIRES

— Em 1876? — exclamou o menino admirado. — Setenta e um anos que esta árvore veio parar aqui? A idade do vovô...[1]

— Sim. Já está bem velha, e de há muito que teria desaparecido se não fossem os cuidados da municipalidade. Esses remendos nos ocos e essas escoras é que lhe permitem ir vivendo.

Panchito não tirava os olhos do velho ceibo enfeitado com algumas flores muito vermelhas nos ramos mais vivos. Tão velho e ainda gaiteiro.

— Parece bem perto do fim, papai. Eu, se fosse a municipalidade, deixava-o cair e plantava um novo. Para que conservar velharias assim?

Dom Francisco riu-se da impaciência juvenil.

— Por essa teoria, meu filho, nós velhos estaríamos condenados. Felizmente não é assim. Todos os seres têm o direito de viver suas vidas até o fim. É nos velhos, como teu avô, que estão a experiência e a sabedoria da vida, e é nas velhas árvores, como este ceibo, que estão a beleza e a poesia dos parques. Se aparecesse por aqui um pintor com sua caixa de tintas, que árvores iria ele pintar: esta aqui, velhinha, ou aquela ali, tão nova que não terá mais de um ano de idade?

— Oh, esta papai! Aquela nem cara de árvore tem, parece ainda "muda". Não é pintável.

— Realmente. Ainda não tem nenhum pitoresco. Sabe o que quer dizer pitoresco?

Pancho vacilou.

— Quer dizer justamente a qualidade de ser pintável, como você disse. Os pintores andam pelo mundo à caça do pitoresco para o fixarem em seus quadros. Mas note que neste ceibo há algo mais que velhice, há história — essa curta história resumida no letreiro. Naquele tempo Buenos Aires, a imensa metrópole de hoje, não passava de uma cidade-menina ...

Pancho voltou a pousar os olhos no letreiro.

— Será que esta árvore ainda se lembra de Jujuy, o lugar onde nasceu?

Se tem boa memória. há de lembrar-se. O vovô, que já passou dos 70, não vive contando coisas da sua meninice?

Depois de bem visto e comentado aquele ceibo de Jujuy, Dom Francisco levou Pancho a outro ponto do parque, onde se erguia uma grande árvore muito diferente do ceibo, um "gomero". O tronco, logo ao sair da terra, se dividia em numerosos galhos irradiantes, alguns em posição quase horizontal. Embaixo, em plena sombra, uma série de bancos de pedra, num dos quais se sentaram.

— Que frescura! — exclamou Dom Francisco. — A sombra das árvores é uma das bênçãos da natureza. Depois de penosa caminhada, quando um viandante dá com uma sombra destas, sente uma felicidade das inesquecíveis.

Pancho tinha os olhos naquele tronco enorme, ao pé do qual havia uma laje com inscrição em chapa de bronze.

— É histórica também esta árvore, papai?

— Sim, a seu modo — respondeu Dom Francisco — pois tem a honra de abrigar uma inscrição famosa.

O menino leu:


Tu que passas e levantas contra mim teu braço, antes de fazer-me mal olha-me bem.

Sou o calor de teu lar, nas longas e frias noites de inverno.

Sou a sombra amiga que te protege contra os rigores do sol.

Meus frutos saciam tua fome e acalmam tua sede.

Sou a viga que suporta o teto de tua casa; a tábua de que está feita a tua mesa; e a cama em que dormes e descansas.

Sou o cabo de teus instrumentos de trabalho e a porta de tua casa. Quando nasces, embala-te um berço feito de minha madeira, e quando morreres o teu ataúde o será também — e te acompanhará ao seio da terra.

Sou "pano de bondade" e flor de beleza.

Se me amas como mereço, defende-me dos insensatos.

Faz-me respeitar: sou a árvore.


— Que bonito, papai! — exclamou Pancho, sentindo pela primeira vez em sua vidinha de criança a misteriosa impressão da beleza pura. — Quem escreveu isto?

— O maior educador das Américas. Seu nome está no fim da inscrição.

Panchito leu: Domingos Faustino Sarmiento.

— Não sei de palavras mais belas, meu filho, mas Sarmiento não disse tudo. A árvore é tudo isso e ainda muito mais.

— Mais, papai? — admirou-se o menino. — Que mais pode ser?

— Se Sarmiento voltasse ao mundo e fosse refazer sua inscrição poderia acrescentar o seguinte: "Sou também a condicionadora dos climas, a purificadora do ar atmosférico, o amparo contra os ventos, a defensora do solo contra as erosões. Sou a fonte da mais preciosa matéria-prima da indústria moderna. Do meu lenho se faz o papel em que os poetas escrevem seus poemas e os sábios lançam a sua ciência. Sou a produtora duma substância mágica, a celulose, que os homens transformam em seda na paz e em explosivos na guerra. Também de mim se faz a matéria plástica com que se constroem os mais rápidos aviões e mil peças da civilização. Do alcatrão extraído do meu lenho saem os mais reluzentes vernizes — esses vernizes espelhantes que brilham nos automóveis. E ainda produzo um álcool que serve de substituto da gasolina para acionar esses maravilhosos veículos. Sou riqueza e poder..."

Panchito estava surpreso. Nunca supôs que da madeira das árvores pudesse sair tanta coisa. Seus olhos não se despregavam daquela grande massa de galhos e folhas que cobria de sombra as palavras de Sarmiento. Ele olhava para a velha árvore como para um milagre vivo e silencioso.

— Guarde as palavras de Sarmiento, meu filho. O melhor bronze para fixá-las não é o metálico, e sim, justamente, a memória fresca dum menino esse bronze vivo. E nunca mais faça a uma árvore o que fez hoje àquela pobre macieirazinha lá de casa.

Panchito, apanhado de surpresa, corou vivamente. Mas defendeu-se.

— É que eu não sabia, papai. E o que fiz foi apenas arrancar uma parte da casca.

— Apenas? Não sabe então que é pela casca que as árvores vivem? Que é por dentro da casca que correm os canaizinhos por onde a seiva bebida no solo as alimenta? A nossa macieira descascada não crescerá — secará — breve estará miúda reduzida a lenha. Se este grande gomero nos está dando sombra é porque nenhum menino lhe arrancou a casca quando novo.

Panchito ouvia com os olhos muito abertos e o olhar distante. Fizera aquilo porque não sabia. Seu pai não insistiu no caso. Desviou a conversa.

— Esta árvore viu muita coisa em sua vida — disse ele. — Viu grandes cantores que subiram aquelas escadas ali do Colón para arrebatar o público com a magia de sua voz. Viu Maria Barrientos descê-las depois do espetáculo, ainda tonta com os aplausos da sua noite de triunfo — e citou outras celebridades de seu tempo que conheceu naquele teatro famoso.

Depois mudou de assunto:

— Amanhã é dia de Reis, Pancho. Que presente quer ganhar? Escolha.

O menino pensou uns instantes, num esforço mental; depois explodiu, como tomado de súbita inspiração:

Quero um vidro de cola bem forte, papai!

Dom Francisco estranhou a extravagância, mas respeitou a escolha. Ao sair do parque deteve-se numa papelaria e pediu um vidro de cola. Panchito, com os olhos muito brilhantes e contentes, guardou-o carinhosamente no bolso. Estava feliz.

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De noite, quando se recolheram, Dona Dolores interpelou o marido.

— Que é que você disse a Pancho no passeio de hoje?

— Nada. Por quê?

— Encontrei-o no quintal, com um vidrinho de cola, grudando na macieira os pedaços de casca arrancados esta manhã. Esquisito...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. O conto foi escrito em 1947.