Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/III
Que pedaço de bruto não é o tal senhor primo Roberto! ficou pensando consigo Eduardo, apenas os três se retiraram. – Pelo que vejo tem paixão pela prima, e quer me parecer que o paspalhão começa a coçar a canela por minha causa. Forte bobo! e entrar nos cascos de um tal palerma ser o amante de uma menina tão meigazinha, tão delicada!... Entretanto, se eu não tivesse o coração tão cheio de amor, tão ocupado com a imagem da minha Lucinda, teria de amar por força esta menina. Tão meiga, tão formosa, disputada a uma fera quase à custa da minha vida!... ah! parece que o céu a tinha destinado para mim!... é estranho encontrar-se nestes sertões uma criaturinha tão mimosa, tão perfeita. Ah! senhor Roberto! senhor Roberto! dê parabéns à sua fortuna de eu já ter empenhado o meu coração e a minha palavra, quando não impreterivelmente o tirava do lance, e então é que lhe havia de amargar a boca!
– Então prima, o que lhe parece o maluco daquele matador de onças? ia Roberto dizendo a sua prima, depois que saíram do quarto de Eduardo, e enquanto atravessavam um comprido corredor, que ia terminar numa varanda aberta dando para o vasto curral da fazenda. – Matar uma onça então é para qualquer?... o pateta cuidou que uma onça se mata assim como se mata um gambá; coitado! não foi má a esfrega que levou. Tão cedo não lhe voltará a vontade de andar pelos matos às escaramuças com as onças.
– Quem sabe, primo Roberto, ainda pode escaramuçar muitas, e matá-las como matou a de ontem, e talvez com mais felicidade. É um valente e destemido moço aquele!...
Este elogio foi uma seta, que partiu da boca de Paulina para o coração de Roberto.
– Valente! – exclamou ele com um sorriso forçado e amarelo; – ora não fale, prima. É paulista, e basta. Dizer paulista, é o mesmo que dizer bazófia e fanfarrice. Eu tenho matado mais onças, antas, queixadas, jacarés, sucuris, e quanto bicho bravo há pelo mato, do que a prima mata de pulgas na sua cama, e disso nem dou fé e nem ando me gabando. Agora porque aquele pelintra de um muladeiro matou por acaso uma onça estão fazendo um escarcéu, meu Deus! já pensam que estão em casa com um Roldão ou um Ferrabrás de Alexandria.
– Não é por ter matado a onça, primo... arre lá! quem ouvisse isto, havia de dizer que o primo ou tem a cabeça muito dura ou o coração muito mau; não é por ter matado ao nça, já se lhe disse, – mas por me ter salvado a vida, que damos e havemos de dar sempre a nossa amizade e gratidão a esse digno moço.
– Ora gratidão!... outro qualquer teria feito o mesmo. Eu também quando a prima era mais pequena, não se lembra? não a livrei de ser atravessada pelos chifres de um boi bravo?... se eu não agarro e carrego-a no ombro, e pulo de um salto a cerca do curral, adeus, prima Paulina! já estava comendo terra há muitos anos. E nem por isso eu vi ninguém vir derreter-se em agradecimentos...
– Ora, primo, nem fale nisso. Eu era uma criancinha, não podia dar o devido apreço a esse imenso serviço que me fez o primo. Mas hoje eu o reconheço, e beijo-lhe as mãos agradecida, meu bom e valente primo. Mas se também lhe devo a vida, primo, não é isso razão para que eu deixe de mostrar-me também agradecida a quem acaba de prestar-mo um serviço não menos importante.
Quanto mais Paulina procurava encarecer as qualidades de Eduardo, e a nobre e valerosa façanha de que fora herói, tanto mais se exacerbava o ciumento Roberto, e mais procurava deprimir e abocanhar aquele que em sua imaginação já era um rival perigoso.
– Enfim, prima, – disse ele com fingida indiferença – faça lá e pense lá o que quiser. O que sei dizer é que se aquela maldita onça o tivesse alinhavado ali, bem pouco se perdia.
– Não fale assim, primo. Que agravo lhe fez esse moço para lhe desejar tanto mal?
– Quem sabe se a prima está pensando, que aquela figura é alguma coisa neste mundo. Se a prima o não conhece, conheço-o eu muito bem. Não passa de um tocador de bestas muito ordinário e muito gangolina, que tem passado a manta a meio mundo. A mim mesmo empurrou-me ele por duzentos mil-réis uma besta pêlo de rato, que não vale cem, e que vem a não servir nem para cangalha. Mesmo esse punhado de bestas, que vem tocando, a prima pensa que é dele? Qual! O biltre não é mais do que um capataz, que vem impingir o refugo da tropa do patrão aos bobos do sertão.
– E que nos importa isso, meu primo, o que sei é que ele me salvou galhardamente a vida das garras de uma onça e é motivo de sobra para que eu lhe seja eternamente agradecida, e creio que também para que o primo não abocanhe e não despreze assim um homem, que não lhe fez mal algum.
– Nenhum mal!... eu sei!.. e também que me importa a mim esse homem. Ou por sim, ou por não, amanhã ou depois, logo que ele possa montar a cavalo, hei de levá-lo para minha casa, porque é nosso hóspede, e meu tio nenhuma obrigação tem de agüentá-lo.
– Alto lá, primo! – atalhou Paulina com vivacidade;– menos essa!... temos muito mais obrigação do que o senhor, e havemos de agüentá-lo com muito prazer. Enquanto não sarar de todo, ele é nosso, e não arreda pé daqui.
– Isso era bem belo!.. e a mulada dele que lá fica à toa?... não hei de ser eu que hei de tomar conta dela. Aquele arranhão, que levou, ora bolas! aquilo sara num instante, e nestes dois ou três dias ele que trate de montar a cavalo, vá tomar conta da sua tropa, e depois... puxe para a sua terra, e passe por lá muito bem.
– Arre! primo! que ojeriza é essa que tomou com o pobre moço! pois ele não tem camaradas, que tomem conta da tropa!...
– Muito ordinários; uma súcia de preguiçosos.
– Nesse caso mandaremos uma pessoa capaz de tomar conta da mulada; mas ele não; tão cedo não se poderá mover daqui. Coitado! perdeu tanto sangue; está tão fraco.
– Coitadinho do nhonhô cheiroso! olhem não vá morrer de fraqueza – exclamou Roberto com uma expressão de ironia e um trejeito de cara indefinível – o tal maganão, prima, parece que caiu-lhe no gosto... não quererá também guardá-lo no seio?... Prima, olhe que não fica bonito a uma moça filha-família mostrar tamanho empenho assim por um... um... pé de poeira, que ninguém sabe donde veio, nem para onde vai...
Esta grosseira reprimenda fez enrubescer até os olhos a filha do fazendeiro. O rústico primo tinha tocado do modo o mais rude e brutal em uma ferida recente, de que a menina ainda nem dava fé, e a fazia sangrar cruelmente.
Mas aquela primeira perturbação do pudor virginal para logo passou e deu lugar ao despeito e à indignação. Vermelha como lacre, e mal retendo uma lágrima, que lhe pendia da pálpebra trêmula e cintilante, levantou a cabeça com altivez e respondeu:
– Senhor meu primo, não sei quem lhe deu o direito de me repreender e regular as minhas ações!.. O senhor é muito tolo em pensar que eu lhe devo dar satisfação do que faço e do que digo. Felizmente ainda tenho pai, e é só dele e de mais ninguém que aceito repreensões, ouviu, meu primo?... Se vosmecê faz garbo de ser ingrato, eu não quero e nem posso fazer o mesmo; hei de ser sempre muito reconhecida e grata ao moço generoso e delicado que fez por mim, que lhe era inteiramente estranha e desconhecida, o que o senhor, sendo parente e amigo, não pôde ou não quis fazer.
Esta violenta apóstrofe fulminou o pobre do Roberto.
– Oh! prima da minha alma!... o que é isso?... por quem é... não se enfeze... espere... olhe, venha cá... não foi por lhe ofender que eu falei... oh! prima... pelo amor de Deus... não dê o cavaco...
Assim exclamava o desapontado primo com voz chorosa e balbuciante, enquanto a prima que voltara-lhe as costas com o mais soberano desdém, desaparecia no fundo do corredor sem lhe dar a mínima resposta.
Roberto, que com razão desconfiava de si mesmo, e tinha talvez alguma consciência do seu pouco merecimento individual, de sua imensa inferioridade em relação à sua inteligente e encantadora prima, não tinha motivo para contar muito com a afeição e o amor de Paulina. Por isso era ele ciumento como um tigre, e seu coração vivia sempre em contínuos sustos e sobressaltos.
Não podia aportar à fazenda de seu tio um mancebo, um homem qualquer de boa aparência e de algum tratamento, que não tremesse logo pelo seu tesouro, julgando que já lho queriam roubar, e que logo não voasse para lá sombrio e desconfiado a vigiá-lo com seus próprios olhos, como o jacaré de sentinela ao seu ninho.
Julgava, – e nisso tinha alguma razão, – que ninguém podia ver Paulina sem que logo morresse de amores por ela, e não desejasse a todo o custo possuí-la por esposa.
O casamento dele com a prima também não passava de uma coisa apenas conversada entre as duas famílias, uma hipótese plausível no futuro, e nada tinha de um compromisso sério, que rigorosamente os obrigasse. Roberto portanto, se bem que nenhum obstáculo até então se opunha à futura realização de seu mais ardente desejo, todavia nenhuma garantia segura tinha também que o pudesse tranqüilizar, e por isso razão de sobejo tinha ele para andar com alma entregue a contínuos cuidados e inquietações.
À vista disto faça-se idéia de como não ficaria o coração do pobre rapaz, quando viu instalar-se em casa de seu tio aquele belo e galhardo mancebo, debaixo de tão lisonjeiros auspícios, e rodeado do prestígio das extraordinárias e romanescas circunstâncias, que ali o trouxeram. O moço, além de seu nobre e belo porte, tinha maneiras as mais polidas e afáveis, e todas as qualidades próprias para inflamar o coração das moças, e atrair as simpatias dos homens, prescindindo mesmo desse ato de dedicação e coragem, que o tornara um ídolo aos olhos do dono da casa.
Considere-se tudo isso, e diga-se se o pobre Roberto tinha ou não carradas de razão para ficar rebentado de inveja, de despeito e de ciúme.
Naquelas ardentes regiões, tão cheias de largos e luminosos horizontes, de grandiosas perspectivas, naquelas veigas risonhas, onde tudo convida a amar, onde a viração quente e embalsamada só respira amor e voluptuosidade, naquele clima de luz e fogo, se o amor é uma chama voraz, o ciúme é uma peçonha que mata.
E tanto mais cruel e pungente devia ser o ciúme de Roberto quanto mais leal e extremosa era a sua afeição; pois o amor que o pobre moço consagrava a sua prima, era puro e santo, como primícias que eram de um coração virginal e novo, de uma alma infantil e cândida. Debaixo daquela crosta grosseira havia muita força de amor, muita paixão, muita energia de sentimento.
Roberto, pois, que tinha o coração quente, mas a cabeça fraca e a índole estouvada, não gostou nada de ver a terna e assídua solicitude com que Paulina e seu pai tratavam do caçador ferido, e dava aos diabos a maldita caçada, que deu ocasião a que viesse parar à casa da sua querida aquele importuno trambolho.
Para desvanecer a impressão que o jovem caçador tinha feito, ou porventura poderia fazer no espírito de Paulina, Roberto no seu bestunto de criança julgou que não havia melhor meio do que menoscabá-lo, deprimi-lo, procurando desmerecer aos olhos da prima o imenso serviço que acabava de fazer-lhe.
Tempo perdido!