Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/IV
Eduardo livrando a filha do fazendeiro das garras de um animal feroz, sem querer a tinha entregado indefesa nas mãos de um algoz talvez ainda pior, – a uma forte e irresistível paixão. A onça a teria estrangulado em poucos instantes; mas a paixão enleando-se astuta e sutilmente como uma serpente em torno de seu coração, nele distilava gota a gota toda a sua mortífera peçonha.
O caráter melancólico e apaixonado de Paulina, a solidão plácida, porém monótona e triste em que vivia, sua imaginação viva inflamada pelos raios daqueles vagos horizontes uberabenses, cujas linhas se perdem indecisas por longes fumacentos, tudo contribuía para que suas impressões fossem vivas e enérgicas, seus sentimentos profundos e cheios de paixão. O primeiro amor que lhe entrasse na alma, devia decidir por uma vez de sua sorte futura, e torná-la para sempre feliz, ou eternamente desventurada.
Enfim aquele vago de emoções, em que lhe ondeava o espírito perdido em cismas melancólicas, aquele anelo de uma felicidade ignota, que lhe fazia ofegar intumescido o seio num doce e indefinível anseio, achou um objeto em que fixar-se, deparou a encarnação do seu ideal; concentrou-se em Eduardo.
Se bem que até ali não tivesse descoberto nem nas palavras nem nos olhares de Eduardo o menor sintoma de amor, todavia nem lhe passava pelo espírito a idéia de que pudesse deixar de ser amada por ele mais tarde ou mais cedo, – credulidade e confiança muito natural naquela alma ingênua e inexperiente, que no enlevo e exaltação de seu afeto acreditava que aquele mancebo não podia ter aparecido a seus olhos tanto a propósito e em tão extraordinária situação, senão expressamente enviado pelo céu para ser seu companheiro e protetor, seu anjo tutelar durante toda a sua existência.
Paulina era bonita, muito bonita, e posto que nada tivesse de vaidosa, nem de faceira, tinha plena consciência de sua incomparável formosura. Não era só no espelho, que se fiava; a impressão de assombro, que produzia em qualquer parte, onde chegava, os cumprimentos e homenagens de que se via rodeada em qualquer reunião que se achasse, a inveja das outras moças, os rumores, que lhe chegavam aos ouvidos quando rompia alguma multidão – que linda moça! – que prodígio! – é um anjo!... é um sol! – tudo a confirmava na convicção de que era a mais bela dentre as belas.
Uma moça com tais predicados, rica e bem educada, não podia deixar de agradar por toda a parte, de render todos os corações, e se Eduardo por ora só lhe falava com fria polidez, e a olhava com indiferença, era provavelmente porque o seu estado de extrema debilidade ainda não lhe permitia observar nem sentir nada, principalmente na alcova escassamente alumiada em que se achava recolhido.
Estas idéias e sentimentos formulavam-se no espírito de Paulina, não assim limpa e distintamente como as vamos formulando à maneira de cálculo; eram idéias e sentimentos confusos, palpites e aspirações, que lhe ondeavam na alma, como os vapores transparentes da aurora ondeando na valada ao sopro das brisas matinais.
Assim se passaram alguns dias. Eduardo, graças à sua boa compleição, e aos extremosos cuidados e desvelado tratamento, que lhe dispensavam seus hóspedes, restabelecia-se com rapidez; o amor e as inquietações de Paulina, e os ciúmes de Roberto cresciam na mesma proporção.
Roberto andava inteiramente estomagado com sua formosa prima; mas não ousava queixar-se, nem dizer-lhe nada. Não deprimia mais o muladeiro, e nem se atrevia a tocar na desastrada caçada de onça, que era o seu eterno pesadelo; tinha medo de alguma estralada pior do que a que já houvera, e que a fizesse romper inteiramente com ele. Assim, pois, assentou de mudar de estratégia, e como tinha ouvido dizer que o desdém é o melhor meio de atrair a afeição das moças, esforçou-se por aparentar o maior pouco caso do mundo para com a linda prima; fingiu-se curado da paixão que por ela tinha; quando acontecia falar com Paulina ou olhar para ela era com um ar da maior indiferença e para afastar toda a idéia de arrufos e ciúmes, era ele mesmo, quem convidava a prima para irem conversar ao quarto de Eduardo. Ali tagarelava ele a torto e a direito soltando o dique de uma torrente de parvoíces sem conta; falava em namoradas que dizia ter, fingia saudades de uma, exaltava a beleza e as qualidades de outra, contava os riscos e vantajosos casamentos que tinha à sua disposição, esforçando-se por afetar o tom o mais descuidoso e despreocupado do mundo. Todas essas frioleiras introduzia na conversação, viessem ou não a propósito, porém com ar tão aparvalhado e com tal desazo, que bem se estava vendo que tudo aquilo não passava de um expediente muito cediço, de que lançava mão a ver se picava o amor-próprio de Paulina, e se com o seu desdém ela se mostrava ofendida. Foi tempo e trabalho perdido. Paulina bem pouca atenção lhe prestava, e Eduardo sorria-se interiormente de tantas parvoíces e impertinências.
Vendo com o maior desgosto que nenhum lucro tirava de semelhante estratégia, Roberto mudou as guardas, e tratou de ensaiar o sistema contrário. Começou a rodear Paulina de tantos cuidados e atenções, a dirigir-lhe tais lisonjas e galanteios, que além de ridículo o tornavam soberanamente importuno. Todas as vezes, que Paulina aparecia na sala, na varanda, no jardim, lá surgia pela frente o primo, endereçando-lhe finezas as mais cediças, cumprimentos os mais grotescos, que fariam rir Paulina, se não tivesse o espírito tão preocupado, o coração tão cheio de cuidados e inquietações.
– Ah! prima da minha alma! não faz idéia como está bonita!... esta prima é um peixão!... é mesmo um sol!...
Outras vezes tornava-se todo solícito pela sua saúde. – Bons dias, prima; – amanheceu hoje tão amarelinha!... coitada!... parece uma defuntinha! mas sempre bonita assim mesmo; bonita como ninguém!... é tal qual uma santinha de cera!... eu já vi uma Nossa Senhora de gesso, que era essa sua carinha sem tirar nem pôr... é preciso a prima dar um passeio lá em casa... suas primas estão com uma saudade da senhora! também há de ser bom para seu incômodo; a mana Mariquinha também costuma sofrer disso e dá-se bem com o passeio.
Outras vezes saía com uma espingarda pelo mato, e fazia as maiores diligências para trazer à prima uma caça delicada, um jaó, uma paca, uma perdiz.
A prima anda com tanto fastio! talvez esta caça lhe faça abrir a vontade de comer; mande a Susana prepará-la bem feita para o seu jantar.
Ai! todos aqueles obséquios, todas aquelas finezas eram perdidas. Paulina bem via que Roberto a amava extremosamente; tinha pena dele, e não desejava magoá-lo, ainda que suas contínuas atenções e galanteios não deixassem de importuná-la. E quanto mais crescia o amor que Eduardo lhe inspirara, mais fria, reservada e mesmo triste se mostrava, não de propósito, mas até mesmo a pesar seu, para com o pobre Roberto. Nem por isso deixava de dirigir-lhe algumas palavras de agradecimento, e um sorriso, mas tão frio, tão repassado de melancolia, que não podia fazer desabrochar muita esperança no coração do infeliz rapaz.
Roberto trincava de raiva e desesperava-se por não poder vencer a cruel apatia, em que para com ele se achava o coração de Paulina, e lançava mão de todos os recursos que seu fraco bestunto lhe sugeria. Por fim procurou vencê-la com dádivas e presentes. Uma rica e grossa cadeia de ouro, em que trazia preso o seu relógio, pediu-lhe que aceitasse em penhor de sua amizade, e firmeza. Ofertou-lhe mais uma linda e excelente besta de sela, além de muitos outros mimos delicados e de preço. Dádivas quebrantam penhas, e “a Deus rogando e com la mano dando”, tinha ele talvez ouvido dizer senão ao próprio Sancho Pança, ao menos a algum de seus confrades. Importunada para aceitar, Paulina via-se em torturas para recusar semelhantes donativos de um modo que o não desgostasse. Pobre amante! infeliz pretendente! disputava com admirável ardor e tenacidade a posse de um coração, e como não era repelido terminantemente em termos claros e rudes, em sua simplicidade não compreendia quanto era completa a sua derrota.
Mas Paulina também, coitada! era porventura mais feliz do que ele? É verdade que Eduardo mostrava com ela o mais terno interesse, e a tratava sempre com a mais lisonjeira deferência. Nem outra coisa se poderia esperar de um moço polido e de fina educação, e Paulina atraía as homenagens e a admiração de todos que a viam. Todavia era ela bastante inteligente e perspicaz para deixar de compreender que nem nas expressões nem nos olhares de Eduardo, nem em toda aquela afeição, aliás íntima e sincera, que o mancebo revelava por ela, não havia a mínima centelha de amor. Notava com extremo desgosto que Eduardo andava sempre distraído e pensativo, que seus olhos andavam sempre passeando ao longe, e como querendo transpor as distâncias com o pensamento. A conversação de Eduardo rolava freqüentemente sobre lembranças de sua terra, da qual se mostrava extremamente saudoso, e dando-se por feliz por ter sido como um instrumento da Providência para proteger a vida de Paulina, não deixava de lastimar o incômodo, que viera atrasar seus negócios, e retardar sua volta ao país natal. Um cruel desalento, uma tristeza mortal se apoderava então do coração da moça; mas como a esperança é a última companheira que nos abandona no infortúnio, ela procurava iludir suas tristes apreensões, e pensava consigo:
– Talvez ele seja frio e reservado de seu natural. – O amor nem sempre brilha nos olhos, ou se derrama em palavras de fogo, e dizem que quando existe oculto assim e guardado no coração, é ele mais forte e violento... Tem saudades de sua terra?... que tem isso?... há nada mais natural?... tem lá sua mãe, seus parentes e amigos... Quem sabe!... talvez que um dia vamos juntos para lá.