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Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/VIII

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O leitor por certo pensará, que vai ter lugar um terrível duelo; que Eduardo ardendo em cólera e ciúmes desaten­de às ordens de sua mãe, espera que esta esteja adormecida, salta pela janela, e com uma pistola na mão e um punhal no seio introduz-se misteriosamente na sala, onde se festejam as bodas da formosa Lucinda, como o cavalheiro negro da Noite do Castelo, e aí prega uma bala na cabeça do feliz rival, ou pelo menos o esbofeteia em pleno baile, arranca da cabeça da noiva a grinalda nupcial e a calca aos pés rugindo. Depois de ter feito tudo isto, sem que os assistentes, imóveis de assom­bro, ousassem opor-lhe o menor embaraço, desaparece, esvai­-se como um fantasma. Isto seria por certo mais dramático, e talvez mesmo sublime. Mas eu conto uma história, e não invento um conto; quero portanto narrar os fatos com aque­la fidelidade, que permite-me a minha memória, tais quais mos contaram há bastantes anos.

É verdade que o nosso herói era valente e coraçudo, tinha muito pundonor e era dotado de nobres e altivos senti­mentos; mas o certo é que só nos primeiros dias pensou em vingança. As palavras de sua mãe tinham deixado profunda impressão em seu espírito, e talvez também que algum senti­mento íntimo ainda muito em gérmen e adormecido nas do­bras do coração, contribuísse para acalmar o seu justo ressentimento.

Doeu-lhe cruelmente a desfeita de que fora vítima, e não pôde por muitos dias disfarçar o despeito e rancor, de que se achava possuído. Mas uma imagem sedutora começava a aparecer a miúdo em seu espírito, e com seu aspecto angélico e sereno dissipava-lhe os negrumes e tormentos do coração. Era como uma fada branca e vaporosa, que vinha varrendo a bruma espessa dos horizontes, e fazia coar uma réstia de luz meiga no fundo daquela alma ulcerada. Era a imagem suave e melancólica de Paulina, que surgia por detrás da sombra de Lucinda, que se esvaecia; era o tipo nobre e delicado da filha do fazendeiro, que apagava na tela da imaginação as formas voluptuosas da rósea e faceira paulista.

Paulina, ainda que Eduardo disso não tivesse consciência, tinha-lhe ficado para sempre gravada no coração em profun­dos e indeléveis caracteres. Não havia nele ainda uma paixão, porque havia um obstáculo, outra paixão; o coração humano não pode conter a um tempo duas paixões; na tela, onde existe um retrato, não se pode estampar outro sem apagar o primeiro.

Não havia ainda paixão, mas existia o gérmen dela, gér­men que só esperava a ocasião e o terreno livre para desen­volver-se com todo o viço e energia. Assim acontece por vezes, que debaixo do chão ocupado por uma planta robusta existe oculta a semente de outra planta. Se o ardor do sol ou a geada cresta, e faz definhar a primeira, esta cresce e rebenta com tal viço e força, que sufoca e mata a primeira, e toma como conta do terreno.

Eduardo confrontara no espírito as graças tão naturais, o porte modesto, e o sorriso tão meigo de Paulina com os ademanes faceiros e pretensiosos e a garridice de Lucinda, a cândida inocência de uma com a maliciosa vivacidade de outra, e compreendia que, se tivesse tido a dita de tê-las visto ambas a um tempo com o coração livre e espírito desprevenido, nem um momento teria hesitado na escolha. Lucinda com seu gentil donaire um pouco desenvolto, seu rosto sempre corado e risonho, com o voluptuoso meneio das esbeltas e bem tornea­das formas fascinava os olhos, abrasava a imaginação, e era capaz de fazer arder em febre de sensualismo o mais estoico e frio temperamento. Paulina com a suave e angélica figura inspirava respeito, amor e adoração, insinuava-se no coração como um meigo raio da lua no seio de um lago dormente, e aí ficava para sempre estampada.

As qualidades de Lucinda, Eduardo as pesava e exagerava no espírito a ponto de convertê-las em abomináveis defeitos, enquanto Paulina lhe aparecia rodeada de uma auréola cada vez mais prestigiosa de candura e beleza. Seu pensamen­to volvia-se de contínuo com a mais viva saudade para a fa­zenda de Joaquim Ribeiro, recordava traço por traço as feições de Paulina, seus gestos, suas palavras, e admirava-se de ver como tudo lhe ficara tão intimamente gravado na memória; eram como caracteres apagados, que um reativo faz subitamente reaparecer vivos e distintos.

Lucinda era duplamente culpada para com Eduardo. Com sua deslealdade lhe havia trancado por dois lados os cami­nhos da felicidade e do amor. Mas não era a perda de Lucinda, que ele agora lastimava; antes o amor, que lhe havia consa­grado, se ia convertendo em desprezo e aversão; era sim a perda de um tesouro, que a seus olhos valia mil vezes mais do que ela, de uma formosa e adorável criatura, que o amava sincera e ardentemente, e a cujo amor por causa de Lucinda havia renunciado para sempre. Maldita a hora em que pre­ferira o fatal juramento, que fizera ao primo de Paulina! maldito o estouvado e bronco pretendente, que veio estorvar-lhe o caminho da felicidade, que o céu como que de pro­pósito tinha preparado diante de seus passos todo alastrado das rosas da esperança e do amor! mais maldita ainda a estul­ta constância e lealdade que guardara para com uma loureira caprichosa, que tão levianamente o esquecera! Um anjo como que lhe caíra dos céus, e se lhe entregava nos braços, e ele o repelira de seu seio por amor de uma mulher vulgar, de uma filha da terra sem fé e sem pudor!

Estas reflexões noite e dia amarguravam a alma de Eduardo, e quanto mais crescia a admiração e o amor, que concebera por Paulina, mais pungente era a angústia, que lhe ralava o coração. O mal era sem remédio; Eduardo, além de ser naturalmente dotado de instintos de lealdade e honradez a toda a prova, era paulista, firme e tenaz em seu propósito, incapaz de faltar à sua palavra e levando até ao fanatismo a religião do juramento. Ora, Eduardo tinha dado a sua pa­lavra de honra a Roberto, tinha-lhe mesmo jurado pelas cinzas de seu pai, que nunca serviria de estorvo ao seu enlace com Paulina.

Esta cruel situação o acabrunhava, e por mais esfor­ços que fizesse, não podia dissimular sua tristeza e abatimento aos olhos dos que com ele tratavam, e como a ninguém comunicara ainda a causa de seus desgostos, mais o afligia ainda o pensar que todos haviam de atribuí-los ao pesar de se ver traído por Lucinda.

Sua estada na Franca tornara-se-lhe insuportável; seu coração o chamava para a Uberaba e para a fazenda de Joa­quim Ribeiro; mas que iria ele lá fazer, senão avivar suas mágoas vendo de perto um paraíso, donde um ente insignifi­cante, um estólido trambolho, ou antes sua tola confiança em uma mulher o tinha expelido para sempre. E quem sabe se o amor que havia inspirado a Paulina duraria ainda, e se ela já não estaria para sempre unida ao lorpa do primo?

Mas também, pensava Eduardo, bem poderia acontecer que Paulina, a qual segundo tinha observado nenhuma incli­nação sentia por seu primo, se recusasse obstinadamente a dar-lhe a mão de esposa, e que nesse caso Roberto desen­ganado e sem esperança, apesar da sua sandice não pusesse dúvida em desobrigá-lo de um juramento, que em nada lhe poderia aproveitar.

Assim passou Eduardo mais de um mês com o espírito agitado ao embate de encontrados pensamentos, pondo a ima­ginação em torturas em busca de um meio, que o arrancasse daquele estado de irresolução e tristeza que o acabrunhava. Sua mãe, que na maior inquietação assim o via cada vez mais preocupado e abatido, procurava em vão consolá-lo e distraí-lo: mas ela também como os demais ignorava ainda a ver­dadeira causa da contínua preocupação e tristeza de seu filho.

– Arre também com isso, Eduardo! – disse-lhe ela um dia em tom de branda repreensão; – não mostrarás um dia que és homem? já vou perdendo a fé contigo... Teus irmãos estão casados uns e outros espalhados por esse mundo; res­tavas perto de mim somente tu para consolo e amparo de minha velhice; mas infelizmente vejo que também não posso contar contigo...

– Ah! minha mãe, não fale assim; por que motivo?...

– Porque pensei que eras gente, que tinhas coragem e juízo. Agora vejo que não passas de um maluco e um mo­leirão; que não tens timbre, nem disposição para nada. A Lucinda anda por aí cada vez mais trêfega e garrida, rindo, pulando e saracoteando como nunca, e tu meu fracalhão, andas aí todo embezerrado e amuado como criança que apanhou bolos, sem ter ânimo de varrer da memória aquela sirigaita!... ah! meu filho, meu filho, assim tu me desesperas!

– Ah! minha mãe, como vosmecê se engana! eu faço tanto caso hoje de Lucinda como da primeira besta que com­prei em Sorocaba, que já nem sei de que cor era.

– Deveras!... então que motivo tens mais para andar assim triste e sorumbático?

– Minha mãe não se lembra que no fatal dia em que aqui cheguei, procurando dar-me conselhos e consolações, entre outras coisas me disse: – não te dês por achado, finge mesmo que morres de amores pela linda uberabense?

– Oh! se me lembro!... como se fosse hoje, e é isso o que deverias ter feito logo.

– Pois bem, minha mãe; não é preciso fingir; eu morro mesmo de amores por ela.

– Deveras!.. tão depressa! tão longe dela!... como pode ser isso, meu filho?

– Também não sei lhe dizer, minha mãe. Quer-me parecer, que já a amava desde lá sem o saber. Apagou-se de meu coração o retrato de Lucinda, e por baixo dele achei gra­vado o de Paulina.

– É extraordinário; mas nem por isso posso compreen­der o motivo por que andas triste. Queres bem a essa moça e ela na obrigação em que está para contigo, é impossível que te desdenhe, e o pai muito menos.

– Não me desdenha não, minha mãe; disso estou certo, e até creio que me quer muito bem.

– Pois então?... ela é rica, bonita e de boa família; tu também não és nenhum pé-rapado; vai lá, pede-a em ca­samento, que estou certa que não ta negarão; casa-te com ela e está tudo acabado. Parece até que a misericórdia de Deus estava armando as coisas deste jeito, para que nunca fosses marido daquela boneca de fogo – Deus me perdoe, – e tivesses uma mulher como mereces.

– Prouvera a Deus, que assim fosse! mas, ai de mim! não pode, não pode ser assim.

– Por que não, meu filho? quem te estorva?...

– São contos largos, minha mãe!

– Pois venham esses contos largos; tens porventura segredos para mim?...

– Nenhum por certo, e peço-lhe perdão por não lhe ter contado tudo há mais tempo.

Eduardo contou então a sua mãe fiel e minuciosamente, tudo quanto lhe acontecera na fazenda de Joaquim Ribeiro desde a caçada da onça até à sua retirada.

– Já vê portanto minha mãe; – concluiu ele, – que não me é possível por forma nenhuma pretender jamais a mão dessa moça.

– Ora valha-me Deus!... aí temos outra. Pois menino, não se está vendo pela pintura que me fizeste desse Roberto, que é impossível que a moça o queira para marido, e que te prefere um milhão de vezes? Que te importa esse paspa­lhão do primo? não sejas tolo; deixa-te de escrúpulos; vai lá, e pede-a em casamento, e dá uma figa a esse Roberto.

– Eu faltar à minha palavra, quebrar um juramento!...

– Qual juramento! isso foi um juramento louco, que Deus não ouviu, nem aceitou.

– Louco ou não, é um juramento, minha mãe; devo cumpri-lo.

– Será, mas... meu filho, uma promessa, um juramen­to o padre pode, quando seja preciso, comutá-lo em penitên­cias, jejuns e romarias.

– Quando a violação dele a ninguém prejudica, pode ser, minha mãe; mas neste caso?...

– És um louco, Eduardo; – eu creio que desejo mais do que tu mesmo a tua felicidade – Em nome de teu pai, por cujas cinzas juraste, eu te desobrigo desse juramento.

– Pelo amor de Deus, minha mãe, não me obrigue a lhe desobedecer pela primeira vez em minha vida.

– Valha-te Deus, filho!... pois bem? já que assim te emperras no teu juramento, faze o que entenderes. Mas tudo isto é culpa tua, por não teres me dado ouvidos; não te enfa­des, se te falo assim. Se me ouvisses e não ficasses embas­bacado diante daquela enfatuada Lucinda, não andarias agora enredado em tantos desgostos. O teu exemplo deve servir de lição mestra para os rapazolas, que entendem que a primeira mocetona bonita que lhes enche os olhos, deve ser por força sua mulher.

– Ora, minha mãe, quem não cai nessas?...

– Isso é verdade; são todos assim, e é malhar em ferro frio. Mas agora se queres um conselho, vai-te embora, meu filho. É tempo de feira; pega no dinheiro que tens, e se não tens eu te darei, e vai para Sorocaba. Vai negociar, vai girar, vai correr mundo para te distrair. Vai divertir-te, demora-te por lá o tempo que quiseres, e volta, não macambúzio e triste como agora, mas alegre, fresco e bem-disposto, como foi anti­gamente o meu Eduardo.

– Isso pretendo eu fazer, minha mãe, e desde já vou dispor os preparativos da viagem.