Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/IX

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Uma paixão infeliz alimentada na solidão, na monótona serenidade de um lar doméstico quase vazio, quando após um passado de inocência, remanso e alegria nos embebemos em um futuro onde só vemos lágrimas e dores, quando a deses­perança com sopro de fogo vem secar uma lágrima consola­dora, que a saudade talvez quisesse fazer brotar nas pálpebras lívidas, essa paixão é um cancro que rói as fibras do coração, um sopro de morte, que desseca e estanca a seiva da existência.

Tal era o viver da mísera Paulina, depois que vira transpor as últimas colinas o vulto de Eduardo, e com ele todas as suas esperanças. Uma tristeza profunda, indizível, lhe envolvia a alma como um crepe negro. Todos os encantos da solidão que habitava, aqueles largos e luminosos horizontes e aquelas pitorescas campinas, que a rodeavam de risonhas perspectivas, aquelas tardes mornas e voluptuosas, tão prenhes de perfumes e canções, tudo isso tinha-se extinguido para aquela alma, que recolhida em si mesma só via o hori­zonte turvo e funéreo de suas agonias. Erra, quem pensa que o espetáculo da natureza na solidão, que a mudez e remanso dos ermos pode adormecer as dores fundas do coração, consolar os grandes infortúnios; a solidão tem para o desgra­çado o olhar impassível de uma companheira, que nos sorri e nos afaga na adversidade com o mesmo sorriso, com que nos afagou em horas de ventura e de alegria.

Os sofrimentos da alma se faziam sentir de um modo assustador na organização física de Paulina. O verme peço­nhento tinha pousado no âmago da tenra e mimosa flor do deserto e, devorando-lhe a seiva da vida, deixava nele o gérmen da morte. Já ninguém a via como outrora esbelta e ágil como a ema percorrer as campinas em busca de flores e frutas, nem ir sentar-se corada e risonha à sombra do laran­jal, ou na relva da fonte a coser e a cantar entre as escravas. Quando saía do seu quarto, onde passava os dias a coser ou a ler maquinalmente, viam-na pálida e vacilante arrastar-se a passos lentos ao longo dos corredores, descer ao curral, pro­curar a sombra da gameleira, sentar-se sobre a mesa do mesmo carro onde ouvira da boca de Eduardo a fatal revelação, que a tornara infeliz para sempre, e ali com as mãos agarradas a um dos fueiros e a face encostada a elas, os olhos fixos ao longe pela estrada que se perdia serpeando pelas colinas, ficar horas e horas entregue a um torpor melancólico, que a tornava como estátua.

O pai notava com a mais viva inquietação e ansiedade o rápido definhar de sua filha, e desesperava-se vendo que todos os cuidados e desvelos, todos os meios de que lançava mão, não conseguiam atalhar os progressos do mal, que ameaçava roubar-lhe sua única e querida filha.

– Que tens, Paulina, que cada vez te vejo mais pálida e abatida, dizia-lhe o pai já talvez pela centésima vez. Tu sofres alguma coisa que não me queres dizer. É preciso que te distraias, que recobres as tuas cores, a tua antiga ale­gria, que voltes ao que dantes eras, se não queres que eu morra de desgosto.

– Ah! meu pai, eu mesmo não sei o que sofro; não tenho indisposição, nem dor alguma; entretanto acho-me mal. O que sei dizer é que desde o dia em que estive a ponto de cair nas garras daquela onça, já não sou a mesma, e creio que nunca mais o serei. De que serviu aquele moço ter-me livrado das garras do animal, o choque que senti, arruinou-me a saúde.

– Assim devia ser, minha filha; compreendo muito bem, que à vista daquele animal feroz, aqueles gritos e alari­dos... aquele moço aparecendo de improviso como caído do céu para salvar-te, e depois lavado em sangue e quase morto... tudo isso não podia deixar de causar um grande abalo nos nervos e alterar a saúde de uma fraca criança, como tu és. Mas tudo isso já se passou há tanto tempo... já lá vai quase um ano; e em vez de melhorar, te vejo sempre a pior, a pior... oh!... minha filha!... quererás me deixar sozinho neste mundo?...

– Oh? meu pai! não pense nisso. Deus é grande; isto há de passar, creia-me; são ainda efeitos do abalo que senti.

– Há de passar, há de passar, sempre estás a falar assim e cada vez estás a pior. Olha, minha filha, talvez te seja útil mudar de ares, ver novas terras, distrair-te por esse mundo. Já te tenho dito muitas vezes, o mal que te consome não é mais que pura nervosia; o que te convém é distração e não é no deserto desta fazenda que te hás de distrair. Va­mo-nos embora; venderei fazenda, escravos, gado, tudo e ire­mos para Vila Rica, para S. Paulo, para o Rio de Janeiro, para onde quiseres...

– Para quê, meu pai? o mal não está nesta terra, nem nestes ares, nem em nada do que me cerca; o mal está dentro de mim mesma, e me acompanhará por toda parte. Sossegue, meu pai; se Deus for servido, aqui mesmo melhorarei e fica­rei boa.

– Deus assim o permita, minha filha! mas por quem és, não vás encerrar-te no quarto, nem lá ficar estatelada embaixo da gameleira, como costumas; não fazes idéia de quanto isso me aflige. Vai antes passear pelo quintal, tratar das tuas flores, dos teus passarinhos... senão fico pensando, que queres morrer mesmo, e me deixar sozinho neste mundo.

Joaquim Ribeiro já tinha suspeitado ou antes estava certo da causa dos sofrimentos de sua filha. Era para ele fora de dúvida que não era senão o moço que a tinha salvado da onça, que inspirando-lhe uma paixão cega e fatal, tendo-a livrado de uma morte desastrosa, a ia levando a outra morte mais lenta e talvez mais cruel. Sabia também que Eduardo estava ajustado para casar-se e talvez já estivesse casado com uma rica e formosa moça de seu país, e portanto por esse lado impossível lhe era tentar o mais poderoso senão o único remé­dio para o mal de sua filha. Todavia respeitando o melindre de Paulina, nunca ousou interrogá-la diretamente sobre tal assunto, porque entendia talvez com razão, que tocar em uma ferida, para a qual não podia dar remédio algum, só serviria para agravá-la. Propunha passeios e distrações a sua filha, mas ela quase sempre se recusava, e quando por condescen­der com seu pai os aceitava, voltava ainda mais triste e abatida que nunca.

Depois de envidar sem resultado algum todos os expe­dientes e recursos de que podia lançar mão, o velho depois de muito pensar e dar tratos à imaginação, capacitou-se de que o único meio que lhe restava a tentar para arrancar sua filha daquele estado de melancolia e prostração, que a ia arrastando ao túmulo, era o casamento.

A mudança de estado, a companhia e intimidade de um bom marido, o desempenho dos deveres domésticos, talvez produzissem no espírito da moça uma revolução salutar, e a restituisem à vida e à alegria. A dificuldade estava na execução desse pensamento. Se a causa de seus sofrimentos era, como pensava, a violenta paixão que havia concebido por Eduardo, bem difícil seria induzi-la a aceitar um marido, fosse ele quem fosse.

Todavia Joaquim Ribeiro não recuou diante de tal difi­culdade, e deliberou envidar os últimos esforços para levar a efeito seu pensamento. Não tinha necessidade de procurar um noivo para sua filha; desde a infância de Paulina e Roberto havia como que um compromisso tácito entre ele e os pais de Roberto, seus parentes e vizinhos, um projeto de família para casá-los, caso não aparecesse algum ulterior obstáculo; não tinha mais, pois, do que abreviar um negócio, que já estava meio conchavado. Roberto, apesar de sua simplicidade e rudeza era bom moço, bem apessoado, e tinha um excelente coração; aquelas maneiras broncas e asselvajadas eram efeito da educação, e facilmente as iria perdendo com o traquejo do mundo. Este casamento ele o proporia também a Paulina como um ponto de honra, como um compromisso, a que nem ele nem ela poderiam faltar sem quebra de sua lealdade.

Logo no dia seguinte ao em que concebeu aquele projeto, Joaquim Ribeiro procurou sua filha para lhe comunicar sua resolução, disposto a empregar todos os meios, até mesmo a autoridade paterna para induzi-la a dar esse passo. Não foi preciso tanto; Paulina relutou muito, porém não tanto quanto ele receava.

– Pois bem, minha filha; – disse-lhe o pai depois de muita insistência de parte a parte; – propunha-te esse casa­mento porque acredito que é o único meio de salvar-te; mas já que queres morrer e arrastar-me contigo à sepultura, faça-se a tua vontade.

– Não, meu pai, – exclamou a moça tomando a mão de seu pai, beijando-a com ternura e banhando-a em lágrimas; – já que meu pai assim o quer, e assim acha conveniente, farei o que meu pai determina, visto que esse casamento,– murmurou ela em voz mais baixa e como a medo, se não pode me fazer feliz, também não me tornará mais desgraçada do que sou Paulina, que já tinha renunciado a toda a esperança de felicidade no mundo, não quis e nem pôde recusar-se ao sacri­fício que dela exigia seu pai quase com as lágrimas nos olhos. Se não tinha amor a seu primo, também não lhe tinha aversão. Casada ou não, teria de sofrer sempre até morrer. Resignou-se portanto e curvou-se à vontade de seu pai, porque assim tinha ao menos o prazer, embora fosse por pouco tempo, de alentá-lo com a esperança de um futuro no qual ela mesma pouca ou nenhuma confiança tinha.

Nesse mesmo dia Joaquim Ribeiro despachou um próprio com um bilhete a Roberto, pedindo-lhe que o mais breve que fosse possível chegasse a sua casa. Escusado é dizer, que no outro dia à hora de almoço Roberto apeava-se ofegante e ansioso de curiosidade à porta da casa de seu tio, e largando à porta o animal batendo virilha e pingando suor, de dois pinotes galgou a escada da varanda; e se não chegou mais cedo, é porque não tinha asas.

Cumpre-nos aqui dizer que Roberto, depois da partida de Eduardo, não tinha perdido nem um ceitil da paixão que tinha por sua prima, e não deixava de fazer reiteradas visitas à fazenda de seu tio, e ora em caçadas, ora campeando uma rês perdida, ora por qualquer outro pretexto, que sabia inventar, lá ia quase sempre esbarrar e pernoitar. Vendo-a triste e indisposta perguntava-lhe o que tinha. Ela sempre meiga e afável respondia-lhe, ora que era uma indisposição de estômago, ora uma constipação, e o simples do rapaz acreditando piamente estava longe de suspeitar, que tudo aquilo não era menos do que o efeito de uma paixão profunda, da qual ele não era o objeto, e lá de si para si julgava, que a moléstia de Paulina não era senão vontade de se casar, pois tinha ouvido dizer a muita gente que algumas moças adoecem e morrem por não se casarem a tempo. Roberto, além de ser muito moço, – pois teria vinte anos quando muito, – não tivera educação alguma; demais, vivendo sempre na roça, não tinha a menor experiência de mundo, e muito menos desse pequeno mundo tão cheio de problemas e mistérios, que se chama coração humano. Era um simplório, mas tinha um excelente caráter, e muita sensibilidade. Há muito tempo desejava falar ao tio no seu casamento com Paulina; mas tinha vergonha e acanhamento como uma moça. Todas as vezes, que ia a casa do tio, ia na firme resolução de falar-lhe francamente no negócio, mas apenas chegava à sua presença, a coragem o abandona­va, falava muito, contava mil histórias, e por fim nunca dizia ao que ia.

Portanto compreende-se como lhe caiu a sopa no mel, quando Joaquim Ribeiro, francamente e sem rodeios, lhe declarou, que o mandara chamar com o único fim de comu­nicar-lhe, que era seu desejo efetuar com a maior brevidade possível o casamento dele com sua filha. O rapaz não cabia na pele de contente, e não pôde disfarçar aos olhos do tio sua alegria infantil e grotesca; estava como embriagado; bei­jou a mão do tio, e derretendo-se em protestos de gratidão e amizade tais parvoíces soltou, representou tantas farsas, que faziam sorrir o bom do velho, se não tivesse a alma tão carregada de graves e sombrios pensamentos.

Paulina não apareceu a seu primo senão muito tarde, à hora do jantar; desculpou-se com suas costumadas enxa­quecas e indisposições; a coitada estava efetivamente mais pálida e desfeita que nunca. O primo desta vez já mais ousado não cessou de atormentá-la com um chuveiro de obséquios e galanteios impertinentes, a que a moça respondia com uma frieza e mesmo com um ar de displicência, que em vão se esfor­çava por dissimular. Só a nímia simplicidade de Roberto pode­ria não perceber quanto ela se achava constrangida e con­trariada. É que no coração da infeliz dava-se então uma terrível luta, e começava a sentir, quanto era pesado o sacri­fício, a que por condescender com seu pai se havia sujeitado.

À tardinha Paulina, a despeito da advertência ou do pedido de seu pai, foi, como tinha de costume, sentar-se debaixo dos ramos da grande gameleira do curral, sobre a mesa do carro. Como para disfarçar o motivo, que ali sempre a condu­zia, levava um livro, que às vezes abria, mas nunca lia; a infeliz tinha muito que ler no livro negro de seu coração. Aquele lugar tinha para a alma de Paulina um doloroso encanto; ela o visitava como a mãe, que volta de contínuo ao túmulo do filho querido que perdeu, ou como a rola, que pousa arrulando gemidos de saudade sobre os destroços do ninho, donde o gavião arrancou-lhes os tenros filhotes.

Estava-se no mês de agosto; o sabiá cantava tristemente; abafado entre vapores, o sol sem raios pendia vermelho e abraseado sobre os últimos espigões, cujas formas envoltas em um véu fumacento se iam apagando ao longe como as sombras de um painel desbotado pelo tempo. Nem uma brisa agitava o ambiente perfumado e morno, e melancólico silêncio pousava sobre as solidões.

Havia um ano, que naquele mesmo lugar, em uma serena e silenciosa tarde como aquela, Paulina tinha ouvido sua sen­tença de morte dos lábios daquele mesmo, que pouco antes lhe tinha salvado a vida.

Paulina olhava para o caminho da Uberaba... dava o último adeus às suas esperanças, e dentro da alma como que lhe sussurrava um hino confuso, mais dorido e fúnebre como o eco, da campa que tomba sobre um cadáver.

Quando mais absorvida se achava em seu angustioso cismar, eis que se lhe apresenta em frente o rosto rubicundo e folga­zão do seu bom primo, do seu noivo. Aquela aparição inespe­rada, que vinha quebrar de modo tão abrupto e cruel o fio de seus dolorosos pensamentos, causou-lhe a mais desagradável impressão, o mais horrível choque que imaginar-se pode. Mas forçoso lhe era dissimular.

– Prima de meu coração, – disse-lhe Roberto com toda a meiguice de que era capaz, – o que está fazendo aqui tão sozinha?!... vamos passear, e não aqui assim triste como uma juriti de asa quebrada.

– Ora primo!... respondeu ela esforçando-se por sorrir. – Estou tomando o fresco... faz tanto calor: e eu estou com tantas dores de cabeça.

– É do estômago, prima? eu não lhe disse que tomasse chá de losna?... a mana Josefina também costuma ter disso, e diz que para isso chá de losna é um porrete...

– Hei de tomá-lo logo ao deitar...

– Pois tome e verá... mas, mudando de conversa... a prima já sabe de uma?... ora também a quem vou eu per­guntar!... decerto já sabe.

– De quê, primo?

– Ora! inda pergunta!.., pois não sabe para que seu pai mandou-me chamar?...

– Eu não...

– Ora deixe-se disso;... pois ele não lhe disse nada?...

– A respeito de quê, primo?...

– Ande lá! a senhora sabe bem; está se fazendo desentendida.

– Ah! pode ser... me parece que trata-se...

– De quê, prima? fale...

– Ora! também o primo sabe muito bem, e para que hei de ser eu a primeira a falar.

Então a prima quer... não quer?

– Casar-me com o primo, não é isso?... para que have­mos de estar com mistérios, disse Paulina impaciente por ter­minar aquele incidente, que a mortificava.

– Isso mesmo, prima... quer, não quer?

– Quero, primo, porque meu pai assim o quer, e é meu dever obedecer-lhe.

– São todas assim; – pensou Roberto lá com os seus botões – estão mortas por se casarem, e sempre de boca dura. E sabe, continuou ele em voz alta, que seu pai quer que isso seja quanto antes?

– Sei tudo, meu primo.

– Então apronte-se, minha rica prima, arranje quanto antes o seu enxoval... seu pai quer que o noivado seja aqui na roça, muito à capucha; mas eu não estou por essa; quero que seja no arraial e com muito arrojo; ele que não tenha susto, que eu faço as despesas. Que bonito noivado não há de ser... e que par feliz não havemos de ser, hem, minha prima do meu coração, meu benzinho da minha alma?

Assim falando, Roberto agarrava com amoroso frenesi em uma das frias e brancas mãos de Paulina, enlaçou-lhe com for­ça o braço em torno da cintura, e pespegou-lhe na face um sequioso beijo, cujo estalo teria denunciado ao longe seu atre­vimento, se o curral não estivesse completamente ermo, e retirou-se à pressa como que corrido de sua própria ousadia, e com medo de alguma reprimenda.