Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/X

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Ao sentir a impressão daquele beijo, ao qual seu rosto se teria incendiado de vivo rubor, se porventura o recebesse de Eduardo, as faces de Paulina já habitualmente pálidas se cobriram de lividez cadavérica. Esse beijo, que não era aceito nem santificado pelo amor, viera como sopro de ardentes e bravios páramos crestar-lhe para sempre o matiz virginal das faces, e estampar-lhe no rosto o selo do infortúnio eterno, O sangue todo refluiu-lhe ao coração, e largo tempo ela ficou na mesma posição, em que a deixara Roberto, imóvel e como que petrificada.

Saindo enfim daquela espécie de vertigem, levantou-se, e volvendo um último olhar para a estrada da Uberaba, divisou ao longe um cavaleiro, que vinha só dirigindo para a fazenda. Pelo que se podia julgar ao longe, era pessoa de distinção; cavalgava possante e garboso animal, e acompanhava-o um camarada tocando um cargueiro com canastras. Paulina, que já se havia levantado e ia-se recolher, deteve-se alguns minutos para reconhecer quem era o viandante. Como vinha marchando com muita rapidez, este não levou muito tempo a chegar à porteira do curral. Quando curvou-se sobre o animal para correr a tramela e abrir a porteira, gritando – dá licença,– pela voz e pela figura logo o reconheceu; já antes seu coração lho estava adivinhando. Era ele! era Eduardo!

Só Deus sabe quanto esforço foi preciso à pobre moça para manter-se em pé, e saudar convenientemente o cavaleiro, que entrava. Comprimentou-o, todavia, dominando do melhor modo que pôde a sua perturbação, convidou-o a apear-se e a subir para a varanda, e a muito custo com passos trêmulos e vacilantes o foi acompanhando.

As faces de Paulina, onde há longo tempo não assomava nem o mais leve rubor, se incenderam de repente, e converte­ram-se em duas rosas purpúreas; o lado principalmente, em que Roberto acabava de imprimir seus lábios, ardia-lhe como uma brasa viva. Considerava-se quase como uma amante infiel, e parecia-lhe que Eduardo estava vendo em sua face o vestígio do beijo que acabava de receber, e entretanto notava que Eduardo a olhava com um olhar bem diferente do de outrora, e lhe lançava vistas repassadas de emoção e de ternura. Pobre infeliz! acabava de se precipitar no abismo no momento em que a mão do destino baixava talvez sobre ela para erguê-la ao céu do amor e da felicidade.

Como porém aparecera Eduardo ali naquela ocasião?... o que vinha ele fazer?

É o que o leitor vai imediatamente saber.

Eduardo poucos dias depois da última conversa que tivera com sua mãe, fez seus aprestos de viagem, e partiu para Sorocaba. Esperava conseguir com as fadigas, cuidados e distrações dessa longa jornada senão o completo esquecimento, ao menos uma grande diversão a seus pesares.

Sorocaba em tempos de feira, assim como é um foco de atividade e comércio, é também mansão de prazeres e divertimentos de toda a natureza.

A afluência de uma multidão de pessoas de todas as classes e procedências, a animação e movimento, que ali reina, as reuniões, jogos, bailes, espetáculos e folguedos de todo o gênero são suficientes para atordoar a cabeça de um moço, e fazê-lo esquecer, ao menos temporariamente, a fada de seus sonhos, por mais enamorado que esteja.

A vida do muladeiro, por outro lado, é rude e trabalhosa; exige uma contínua vigilância, uma atividade incessante. O muladeiro quase que não larga os arrieiros senão para deitar-se e repousar algumas horas. Tanger manadas de milhares de mulas bravias através de imensos e inóspitos sertões por ma­tas, serradões e campinas abertas, rodeá-las, repontá-las e contá-las todos os dias de manhã e de tarde, além de outras muitas fadigas e cuidados inerentes a esse gênero de vida, é tarefa para acabrunhar as mais ativas e robustas organizações, e pouco ou nenhum tempo pode deixar para pensar em amores.

Não aconteceu assim a Eduardo, que, no meio da sedução de mil festins e prazeres, e a despeito de todas as fadigas e preocupações de seu afanoso negócio, nem um só dia se esque­ceu de Paulina. Bem pelo contrário tudo lhe rememorava a imagem dela, e a cada passo encontrava objetos, que lhe avi­vavam a saudade que o consumia. Uma bonita perspectiva, um curral, uma gameleira, que via em seu caminho, levava-lhe a imaginação para a fazenda de Joaquim Ribeiro e para junto de Paulina.

Se bem que não se descuidasse dos penosos misteres do seu gênero de vida, trabalhava como por hábito e maquinalmente, como quem se desencarrega de uma tarefa, e não com aquele gosto, zelo e dedicação de quem procura promover seus interesses e adquirir bens da fortuna.

O giro costumado de Eduardo nas excursões de seu negócio era passar o Paraná, percorrer alguns municípios da pro­víncia de Mato Grosso, atravessar a de Goiás e entrar em Minas pelos municípios de Paracatu, Patrocínio, Araxá e Ube­raba, para daqui recolher-se à Franca.

Desta vez, porém, sem plano deliberado, quase sem o querer e sem o pensar, começou sua derrota em sentido inverso. Seu coração o chamava para a Uberaba, e para lá tangeu a sua tropa. Bem sabia, que não ia senão avivar suas mágoas no teatro de seu infortúnio; mas ia assim mesmo, como o passarinho fascinado pela serpente, e que soltando lamentosos pios vai descendo de ramo em ramo até meter-se nas goelas do voraz e hediondo réptil.

Chegando a Uberaba, Eduardo procurou informar-se do estado da família de Joaquim Ribeiro, e soube com prazer e consternação a um tempo, que Paulina se achava ainda sol­teira, mas gravemente enferma, o que era motivo para seu pai andar sumamente aflito e desgostoso. Eduardo logo presumiu qual era a causa do mal de Paulina, e ficou com o coração entregue à maior angústia e à mais cruel perplexidade. Apare­cer a Paulina era avivar-lhe uma chaga profunda e dolorosa, a que ele não podia dar remédio algum; era agravar para ambos uma situação já tão cruel e desesperada; era, além de tudo isso, faltar de alguma sorte ao juramento que prestara a Roberto, pois tendo consciência de ser adorado pela moça, só a sua presença poderia servir de estorvo ao enlace dele com sua prima. Por outro lado considerava que no decurso de um ano as coisas poderiam ter mudado de face, e tomado uma direção inteiramente nova, e que ninguém sabia o que ia pelo interior daquela família; era bem possível que Paulina se recusasse constante e inexoravelmente a aceitar a mão de seu primo, e que este desenganado por fim tivesse desistido de sua pretensão. Nessa eventualidade tão natural deveria ele acaso deixar que se definhasse e morresse de pura mágoa aquela por quem daria mil vidas que tivesse? não era pelo contrário seu rigoroso dever voar a ela, e no caso que fosse possível, levar-lhe consolação e esperança, e salvar-lhe segunda vez a exis­tência?

– Vou decididamente! – pensou consigo depois de um longo dia de ansiedade e hesitação. – Tenho negócios e cobranças a realizar por aquele lado, e não posso deixar de passar pela fazenda de Joaquim Ribeiro. Uma hora que lá me demore, poderei saber de tudo, e decidirei do futuro; meu e de Paulina. Jurei a Roberto de nunca servir de estorvo ao seu casamento, mas não de nunca pôr os pés em casa de seu tio.

Tomada esta deliberação, Eduardo montou a cavalo pela manhã, e na tarde desse mesmo dia chegou, como vimos, à fazenda de Joaquim Ribeiro.

Roberto estava com seu tio na sala de jantar conversando e discutindo planos para a celebração do consórcio. O tio que­ria que fosse na roça sem estrondo e com muita simplicidade; o sobrinho instava para que fosse no arraial e com muito arrojo e galhardia.

Graças ao crepúsculo, que descia escurecendo a sombria sala, não notaram a perturbação e o extraordinário transtorno das feições de Paulina, quando veio comunicar-lhes a chegada do sr. Eduardo. Esta inesperada nova causou o maior sobres­salto no espírito de ambos, assim como para Paulina fora um raio que a esmagara.

– O sr. Eduardo! – exclamou Roberto levantando-se com a maior surpresa e agitação; – que diabo vem cá fazer agora esse homem!... sua visita nesta ocasião era bem dispensável.

– De fato, – disse consigo o velho, – veio em bem má ocasião. O que virá fazer?... queira Deus não venha des­manchar com sua presença todos os meus planos?...

Na realidade a presença de Eduardo naquela ocasião vi­nha alterar profundamente a situação dos indivíduos daquela pequena família; vinha arrancar com suas mãos o bálsamo, que o velho fazendeiro com paternal carinho aplicava sobre o cora­ção da filha, e que talvez com o auxílio do tempo e da reflexão viesse a produzir saudáveis resultados.

– Vamos ter com ele, Roberto, – disse o fazendeiro; – muito lhe devemos eu e Paulina; é nosso dever recebê-lo com os braços abertos, e tratá-lo com toda a distinção e carinho.

Saíram imediatamente a receber o hóspede. Paulina os acompanhou. Tinha apenas introduzido o recém-chegado na sala de jantar e trocava com ele as primeiras palavras de cum­primento e civilidade, quando Paulina que se conservara em pé, trêmula e arquejante, a um canto desviado, deu um grito agudo, e sentou-se de chofre, ou antes caiu sobre uma ca­deira.

– Que é isto! que tens, Paulina – bradou o pai atirando-se para ela. Eduardo e Roberto acudiram ao mesmo tempo.

– Paulina! Paulina! – gritava o pai sustendo-a no braço, e agitando-a; – era debalde; a infeliz não podia ouvi-lo. Pendurada no braço paterno a fronte branca pendia-lhe para trás como lírio esgalhado, o corpo alquebrava-se lânguido e inerte, e as pálpebras transparentes e cerradas eram como lâmpadas de alabastro, onde a luz acabara de extinguir-se. Estava profunda­mente desmaiada.

– A cavalo já, Roberto! a cavalo e depressa! – gritou o velho. Pegue no melhor animal que aí houver, corra já a Uberaba e traga-nos um médico.

Roberto, que em outra qualquer ocasião teria afrontado fadigas, coriscos e raios, e teria ido ao inferno para servir a Paulina, desta vez, apesar da gravidade do caso, hesitou e prestou-se de mau humor. Seus antigos ciúmes renasciam, e sus­peitas cruéis lhe atravessavam o espírito, suspeitas que para outro qualquer mais perspicaz há muito teriam tomado o cará­ter de certeza. Não seria aquele maldito hóspede a causa dos sofrimentos de sua prima, e do vágado de que acabava de ser vítima?...

– Nesse caso ele que vá! – pensava ele. Quem as armou que as desarme. No estado de irritação, de que se achava pos­suído contra o recém-chegado, esteve a ponto de dizer estou­vadamente: – Aqui o sr. Eduardo, que acaba de chegar e ainda está com o animal selado, bem nos pode fazer esse favor. Mas o amor, que consagrava a Paulina, e o respeito, que tinha a seu tio, prevaleceram em sua alma.

Daí a alguns instantes Roberto galopava à rédea solta atra­vés da escuridão da noite, vomitando pragas e amaldiçoando a hora em que aparecera em casa de seu tio aquele maldito sr. Eduardo.