Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/XI

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O delíquio de Paulina durou cerca de um quarto de hora.

Quando voltou a si e abriu os grandes e negros olhos, encontrou o rosto de Eduardo que, bem próximo ao seu, quase que a bafejava, observando-a com ansiosa inquietação enquanto o pai com os braços a sustinha sobre a cadeira.

– Ah! o senhor ainda está aqui! – exclamou ela, tapando os olhos com a mão. Sr. Eduardo... por piedade! fuja, fuja... não posso vê-lo!...

– Desastrado aparecimento o deste homem hoje! – refletia o amargurado velho. – Mas porventura posso me quei­xar dele?... tem ele a culpa de nada?... Infeliz Paulina!...pobre de minha filha! tão boazinha, tão linda, tão criança, e já sabendo o que é a desgraça... e mais desgraçado de mim ainda, que nada posso fazer por ela!... Só esse homem, que já uma vez salvou-a, poderia salvá-la ainda, pois não há a menor dúvida, a pobrezinha tem uma paixão louca por esse moço... ah!... se fosse possível... que me importa o Roberto?... tratei com ele, é verdade; mas será ele tão bruto e tão desal­mado, que não tenha pena desta infeliz?... será tão estúpido, que não veja que não deve, nem pode casar-se com Paulina?... mas que loucura a minha!.., ele não pode – já está com­prometido e quem sabe se já casado com outra... Pobre da minha Paulina!... é agora que sinto a falta, que te faz tua mãe... só ela poderia entrar no segredo desse coração tão mal­tratado, e dar-lhe algum conforto e consolação... mas, eu... pobre de mim! que posso eu fazer senão chorar contigo, filha de minha alma!...

E as lágrimas corriam em fio pelas faces do velho na soli­dão da noite, cujo silêncio só era interrompido pelos delírios de Paulina, que entregue a um sono letárgico, murmurava sons confusos entre os quais vinha freqüentemente o nome de Eduardo.

Este, por seu lado, também se recolhera ao aposento que lhe fora destinado, com o coração transido de angústias, e pas­sou a noite nas mais cruéis tribulações de espírito. Ele pas­sara como o sopro do gênio do mal junto daquela formosa e interessante menina, e lhe fizera entrever um paraíso de amor e de ventura para abismá-la imediatamente num pego de amar­guras. Aquela mimosa flor do deserto, que havia encontrado em seu caminho, de tão belo e puro matiz, tão rica de seiva e de perfume, vinha encontrá-la agora raquítica e pálida como goivo despencado de uma grinalda mortuária. E essa flor, que riso­nha e louçã se havia espanejado a seus olhos ofertando-lhe todo o perfume de seu cálix, ele a havia desdenhado e passado além com os olhos embebidos em não sei que falsa miragem... e fora esse desdém, que lhe mirrara o seio entornando nele o gérmen da destruição. E agora que desiludido e arrependido voltava sobre seus passos em busca da flor, cujo perfume lhe ficara guardado no coração, ainda seria tempo? poderia ele ainda com o bafejo de seu amor restituir-lhe o alento e a vida?... Quem sabe?

Eduardo, cujas pálpebras ardentes não se cerraram essa noite, esperava ansioso o alvorecer do dia. Paulina amanheceu mais tranqüila, posto que extremamente abatida e em tal estado de fraqueza, que não lhe permitia levantar-se da cama.

Eduardo quando saiu de seu quarto encontrou já na varanda o dono da casa debruçado ao parapeito e com os olhos na estrada de Uberaba, à espera de Roberto com o médico. Em sua impaciência não calculava que era ainda muito cedo para poderem chegar.

– Bom-dia, senhor Ribeiro; – disse-lhe cumprimentando-o... Como passou a senhora sua filha?

– Ah! já está de pé, senhor Eduardo?... replicou o fazendeiro voltando-se para ele. – Paulina... eu sei... teve ainda muita febre e delírio; mas agora está mais sossegada. Todavia acho que não está nada boa.

– Não faz idéia quanto me dói no fundo da alma o incômodo dela, senhor Ribeiro.

– Muito agradecido, senhor Eduardo... mas enfim... é vontade do céu... que se há de fazer... Deus que tenha pie­dade de nós.

– Mas ah! senhor Ribeiro, quando penso, – e tenho motivos muito fortes para pensar assim, quando penso, que sem o querer e por desgraça minha sou a causa dos sofrimentos de sua filha e de todos os seus incômodos, minha aflição toca ao desespero.

– Bem o compreendo, senhor Eduardo; e eu também... para que negar-lhe? penso do mesmo modo...

– Portanto já vê o senhor que não devo me demorar mais um instante em sua casa, visto que não lhe posso dar remédio nem alívio algum. Minha presença lhe faz mal, e antes que ela me veja outra vez, é meu dever retirar-me.

– Pelo contrário; agora já que aqui veio, tenha paciên­cia, há de ficar; o senhor é o único que poderá salvá-la nesta cruel conjuntura; perdoe esta franqueza de um pobre pai desa­tinado pela dor e em risco de perder sua única filha. Ela tem pelo senhor uma paixão louca, estou disso bem persuadido; aquele sucesso da onça a fez enlouquecer...

– Também assim o creio, senhor Ribeiro; porém... des­graçadamente em nada lhe posso valer.., tenho as mãos ata­das...

– Que me diz?...ah!... já me lembro... desgraçado de mim!... onde anda esta cabeça!... essa senhora, com quem ia casar-se ou talvez já esteja casado...

– Nada disso, senhor Ribeiro; dessa loucura há muito estou desencantado, e por esse lado nada mais me estorva...

– Deveras!... pois então o que lhe impede?...

– Escute ainda, senhor Ribeiro; tenha paciência; devo dizer-lhe tudo; se naquele tempo eu tinha meu coração e mi­nha palavra empenhada a uma mulher, hoje a tenho empenhada a um homem...

– Como assim?... não o entendo; tenha a bondade de explicar-se melhor.

– Pois não sabe o senhor Ribeiro, que num dia seu sobrinho tomado de ciúmes, sem que eu desse motivo algum, cuidando que eu fazia a corte à sra. d. Paulina, veio me tomar satisfações; e que eu para livrá-lo do engano e da afli­ção em que o via, em termos de fazer alguma loucura, protestei-lhe que não tinha o menor amor à senhora sua filha, – e não tinha, pelo menos eu então assim o acreditava, – e jurei-lhe pelas cinzas de meu pai que nunca serviria de estorvo ao seu casamento com a mesma senhora?...

– Não, senhor; nunca ouvi falar em tal coisa.

– Pois é a verdade desgraçadamente, e agora... tenho os braços atados.

– Mas que tem isso?... que importa esse juramento, se Paulina não quiser casar-se com ele?...

– Contanto que não seja eu que o estorve...

– E será ele tão mau, tão desalmado, que queira sacri­ficar sua prima?...

– Não sei, senhor. – A verdade é que dei-lhe o jura­mento; desse juramento só ele pode desobrigar-me.

– E que remédio terá ele, se nem eu, nem Paulina quisermos aceitá-lo?... Vamos, meu amigo, vamos ver a pobre menina; ela está sempre a falar no seu nome. Veja se a pode tranqüilizar. Engane-a mesmo, se tanto é preciso, dê-lhe uns to­ques de esperança. Viva ela enganada por algum tempo; que mal faz isso? depois quando estiver mais forte e bem disposta, com vagar e cautelosamente a irei desenganando.

– Ah! senhor Ribeiro, não sou capaz de enganar a nin­guém, quanto mais a ela. Se me permite, irei dizer-lhe toda a verdade; irei dizer-lhe, que a amo muito... que a maior, a única felicidade minha neste mundo depende dela...

– Deveras, senhor Eduardo?... atalhou o velho com alegre sobressalto, – que estou eu ouvindo?... então a quer bem?...

– Muito, senhor Ribeiro, muito! mas... de que serve?...

– De que serve?!... não compreendo tal pergunta...

– E o juramento...

– Pelo amor de Deus, não me fale em tal juramento! Vamos, meu amigo, continuou Ribeiro com alegre sofreguidão, – vamos visitá-la.

Ribeiro tomou o moço pelo braço, conduziu-o até a porta do quarto de Paulina, que se achava sentada sobre a cama, impeliu-o de manso para dentro dizendo a sua filha: – Paulina; aqui está o sr. Eduardo, que vem fazer-te uma visita;– e retirou-se.

O bom do velho, ao saber que Eduardo adorava sua filha, e que nenhum impedimento havia mais para que se casasse com ele, exultava de contentamento, e tinha como já realizada a cura e a felicidade de sua filha. Quanto ao juramento, esse não lhe dava muito cuidado, porque não fazia idéia da importância que Eduardo ligava a ele, do fanático aferro e tenaci­dade de paulista com que guardava um juramento.

– Ah! é ele! é ele ainda!?.. exclamou a moça apenas avistou Eduardo, – que vem fazer aqui este homem?...

– Não lhe dizia eu? – disse Eduardo para o pai de Paulina, que se ia retirando, – a minha presença a incomoda.

– Não creia tal; – disse-lhe o velho em voz baixa;– deixe-se ficar por algum tempo, tenha paciência. Minha filha, continuou voltando-se para Paulina; – o sr. Eduardo não te quer fazer mal algum; ele te estima muito, e não procura se­não meios de salvar-te. Ditas estas palavras o velho retirou-se.

– Salvar-me ele! exclamou Paulina com um ar de insânia e um sorriso indizível. Tomara eu que ele me salve de si mesmo! aqui não há nenhuma onça, e é só das onças que ele sabe me salvar.

– Quem sabe, d. Paulina? – disse Eduardo com um triste sorriso, sentando-se em um tamborete junto à cabeceira da enferma. – Deus ainda pode permitir que eu a salve de outros males. Por quem é, não me queira mal... diga-me, vai se sentindo melhor?...

– E que lhe importa?... eu não tenho nada... Como vai a sua querida lá da Franca? seguramente já se casaram, não é assim?...

O delírio de Paulina exaltava-se com a presença de Eduard­o; suas palavras desassisadas, seus olhares desvairados dilaceravam o coração do mancebo que já se arrependia da visita, que por condescender com o velho lhe viera fazer.

– Por compaixão, – respondeu-lhe o moço, – não me fale nisso, d. Paulina, essa mulher morreu para mim...

– Morreu?... pois que tem isso? eu também não vou morrer?... não sabe? esta noite sonhei com ela... estava em uma sala de baile... vestida com um luxo e uma riqueza de espantar... começou a dançar uma valsa com o senhor... de repente foi-se virando em um dragão medonho, enroscou-se-lhe por todo o corpo, e começou a lhe morder a nuca... o senhor dava gritos desesperados, mas todo o mundo fugia espa­vorido; eu fiquei só e queria lhe acudir; mas meus pés estavam agarrados no chão, e meus braços não podiam mover-se; que­ria gritar, também não podia; teria morrido sufocada se meu pai, que estava perto de mim, não me acordasse...

– É singular!... ah! d. Paulina, esse sonho...

– Que tem esse sonho?...

– É uma imagem da realidade. Essa mulher era mesmo um dragão; atraiçoou-me;... achei-a casando-se com outro.

– Bem feito! exclamou Paulina com um acento indizível de malicioso prazer; – bem feito: foi castigo de Deus; porque fez tão pouco caso de mim.

– Diz bem, d. Paulina; foi mesmo castigo de Deus. Mas eu não queria parecer-me com ela. Que importa! nada perdi. Juro-lhe, d. Paulina, que depois que vi a senhora foi-me bem custoso não me esquecer dessa moça, e guardar-lhe a fidelidade que guardei.

– Deveras, sr. Eduardo!... pelo que vejo, quer-me bem...

– O meu amor para com a senhora, creio que não é de agora... creio que existia desde a primeira vez; mas ai de mim!... principiou infeliz, infeliz parece-me que vai acabar...a desgraça me persegue... hoje não me é permitido ofertar--lhe o meu amor...

– O seu amor!... exclamou Paulina sentando-se no leito, fitando no mancebo olhos ardentes, e sem atender que lhe apareciam quase nus os alvos seios arquejando-lhe afanosos; era bela assim, bela de amor e de delírio.

– Sim, o meu amor, d. Paulina! o meu amor tão gran­de, como eu não sei explicar, e que decerto já existia sem eu saber dentro de meu coração, e que hoje rebenta como urna labareda, que eu não posso conter nem disfarçar.

– Ah! veio tão tarde! – disse Paulina suspirando e aba­nando tristemente a cabeça. – Outro lhe tomou a dianteira... já não me pertenço. Olhe aqui esta face... não vê como está vermelha?... arde-me como uma brasa... foi um beijo, e não foi o senhor que mo deu.

– Um beijo!... quem lho deu?

– Um beijo, sim... foi meu marido...

– A senhora está gracejando... quem é seu marido?...

– Pois não sabe?.., o primo Roberto é meu marido... meu pai mandou-o chamar; ontem ficou tudo ajustado.

– Ah! já entendo, – murmurou Roberto alcançando que as palavras de Paulina não eram puro delírio como a princípio pensara. – Se assim é, refletiu ele consigo, – não me resta mais esperança alguma.

– É verdade, – senhor Eduardo; – continuou Paulina como que adivinhando e respondendo ao pensamento de Eduar­do; – o primo Roberto breve vai se casar comigo... Coita­do! vai se casar com um cadáver; a cama do noivado há de ser um esquife... Paulina acompanhou estas palavras de um riso funéreo, que fez estremecer Eduardo; e deixou pender a cabeça.

– Mas esse seu primo será tão duro de entranhas, que queira assim sacrificá-la?

– Mas ele me quer tanto... desde criança...

– Fatalidade! eu também, d. Paulina, eu também, da outra vez que aqui estive, jurei a esse moço que nunca da minha parte poria o menor estorvo ao seu casamento...

– Jurou isso?... meu Deus!... não há esperança mais!... eu já dei-lhe o meu sim; e o senhor jurou-lhe o seu... não, ah! ah! ah!... como isto é engraçado!...

– Mas, d. Paulina, para salvá-la, para possuí-la, tudo devo tentar. Vou entender-me francamente com seu primo, dir-lhe-ei tudo sem rebuço, e se ele tem dignidade e nobreza de alma, deve desistir de sua pretensão, e me desobrigará do ju­ramento que lhe dei.

– Roberto?... duvido; tem por mim um amor furioso... é um estonteado, e tem cabeça dura. Roberto há de se casar comigo, ainda que seja à beira da sepultura.

Nesse momento ouviu-se rumor de falas na varanda. Era Roberto que chegava com o médico. Eduardo tomou a mão de Paulina, e beijou-a ternamente; esta respondeu-lhe apertan­do estreitamente a dele e cravando-lhe um olhar, que continha um treno de ternura, de amor e de sofrimento. Seu espírito começava a serenar-se; sentia inefável prazer em saber que era amada por aquele que seu coração escolhera, e nesse momento de gozo ficaram adormecidas todas as suas mágoas e inquieta­ções, todos os seus sofrimentos físicos e morais.

– Ora pois! – dizia ela consigo, graças ao céu, um momento sequer já fui feliz em minha vida. Agora só me resta resignar-me para sofrer e morrer!