Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/XII

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O médico que viera com Roberto, era um padre. Era muito comum naqueles sertões, onde havia quase absoluta falta de médicos profissionais, os padres exercerem também a medicina, sendo a um tempo médicos da alma e do corpo, reunindo em si dois sacerdócios.

Bom ! – disse consigo Paulina, quando soube dessa parti­cularidade; eu creio que hei de precisar mais do padre do que do médico.

O médico foi logo introduzido no quarto da doente, onde se demorou cerca de um quarto de hora.

– Não há de ser nada, senhor Ribeiro, – disse ele saindo; – a menina teve e tem ainda uma forte febre maligna complicada com alguma irregularidade nas funções uterinas. Com as aplicações e o regimen, que vou prescrever, não corre risco algum, e em breve estará sã. Mas olhe que é preciso muita dieta, e muita cautela... Tais achaques são muito co­muns aqui pelo sertão porque os senhores fazendeiros,– perdoe-me o dizê-lo, sr. Ribeiro, – são muito desmazelados na criação de seus filhos; deixam os meninos, como esta por exemplo, em uma idade tão crítica, andarem por aí ao rigor deste sol ardente, molharem-se, apanharem sereno, comerem frutas verdes e fazerem mil outras estrepolias...

– Há de ser isso mesmo, – acudiu bruscamente Ro­berto; – a prima costuma andar aí à toa no quintal o dia intei­ro com a cabeça quarando ao sol, comendo só frutas, e quando vem para a mesa não come nada; depois quando é de tardinha vai ali para debaixo da gameleira, e fica apanhando sereno até a noite.

– Eis aí!... não é outra a causa de sua moléstia...

– Mas, senhor padre, – atalhou o fazendeiro, – o mal não é de agora; já vai para um ano que ela sofre.

– Não duvido; ela tem incômodo crônico do estômago, e as funções do útero, como já disse, não são muito regula­res. Mas tudo isso complica-se agora com uma febre aguda, que é preciso atalhar prontamente.

– Ah! senhor padre! senhor padre! – pensou consigo Eduardo, – se Vossa Reverendíssima lhe examinasse mais a alma do que o corpo, se a ouvisse de confissão em vez de tomar-lhe o pulso, acharia em outra parte a origem da moléstia.

Enquanto Joaquim Ribeiro e o padre conversavam, Eduardo, que assustado com a gravidade e os progressos do mal de Paulina não queria perder tempo, nem adiar para mais tarde a solução do problema de seu destino, chamou de parte Roberto e o convidou para uma conversa particular, decidido a dizer-lhe tudo com a mais rude franqueza. Desceram ambos a escada e dirigiram-se para um canto do curral.

– Senhor Roberto, – começou Eduardo com tom sério e comovido, – sei que o que tenho a dizer-lhe de maneira nenhuma lhe pode ser agradável; vou dar em seu coração um golpe bem cruel; mas tenha paciência; assim é preciso.

– Um golpe!... em meu coração! que quer dizer isto?!... o senhor está caçoando, senhor Eduardo.

– Nunca falei tão sério. Tenha paciência, já lhe pedi... aliás perco o meu tempo. Se fosse só por meu respeito, nunca daria este passo, e hoje mesmo me sumiria para sempre desta casa; mas é por amor daquela pobre moça, que ali jaz pe­nando no fundo de uma cama...

– Pior ! – interrompeu Roberto com impaciência;– cada vez o entendo menos. Deixe-se de rodeios, senhor Eduardo; desembuche, que estou ardendo por saber que alhada é essa.

Roberto já se achava com uma terrível predisposição contra Eduardo, e por isso o recebia, como se costuma dizer, à ponta de baioneta.

– Se soubesse que estava de tão má disposição, e se não fosse tamanha a gravidade do caso, não o incomodaria...

– Não senhor; não há de me deixar assim com a pulga na orelha; já agora diga ao que veio...

– Prontamente; vou-lhe explicar tudo em palavras bem poucas e bem claras. Saiba, senhor Roberto, que não é por vontade dela, que sua prima vai casar-se com o senhor.

– Não é por vontade dela! – exclamou Roberto arrega­lando os olhos, cruzando os braços e dando dois passos para trás; – e quem lhe meteu essa nos cascos, senhor Eduardo?...

– Ela mesmo, senhor Roberto; neste instante acaba de mo dizer.

– Fora com essa!... vá pregá-la mais adiante, que aqui não pega. Ainda ontem ali ela me deu o sim sem constrangi­mento algum deste mundo. Isso se não é mexerico seu, é de­lírio dela.

– Nem delírio, nem mexerico, senhor Roberto; é a pura verdade. E saiba mais, – pois é necessário declarar-lhe com franqueza a verdade toda inteira, – saiba mais que não sei se por felicidade ou infelicidade minha, sua prima desde a primei­ra vez que me viu – naquela fatal caçada, lembra-se? criou por mim uma afeição, uma paixão irresistível, que ela em vão tem-se esforçado por combater. Essa paixão, que não é necessário ser muito ladino para perceber, é a causa de todos os seus sofrimentos, e é ela que sem dúvida alguma a levará à sepultura, se o senhor não tiver piedade dela...

– Eu ter piedade dela!... se o entendo diabos me carre­guem. Visto ser assim como diz, o senhor por que não teve piedade dela a primeira vez que cá esteve? por que me cedeu o campo?

– O senhor tem fraca memória; não lhe disse que minha palavra estava empenhada a outra moça? agora felizmente esses laços estão quebrados, e cumpre-lhe, senhor Roberto, por sua honra e dignidade, pelo sentimento de humanidade, ceder de sua pretensão deixando-nos livres a mim e a ela, se não quer sacrificar uma pobre menina.

Enquanto Eduardo falava, Roberto não podia ter-se de impaciência; puxava o nariz, sustinha-se ora num pé ora noutro, fungava, trincava os dentes, e fazia mil trejeitos.

– Oh! isto é demais! prorrompeu ele enfim depois de um curto silêncio; – pois quando ainda ontem meu tio acaba de me chamar para tratar de meu casamento e abreviar esse ne­gócio, agora é que o senhor vem com toda a frescura do mundo querer arrancar-me a minha noiva?

– Não é vontade minha só, senhor Roberto: é também a vontade dela e o desejo mais ardente de seu tio...

– E o senhor já se esqueceu que jurou que nunca em tempo algum serviria de estorvo ao meu casamento? é bom modo esse de cumprir um juramento.

– Jurei, é verdade; esse juramento hei de cumpri-lo, se o senhor tiver a alma tão empedernida, que não queira deso­brigar-me dele.

– Está já lhe dando um bonito cumprimento!... quem o chamou cá? que motivo o trouxe aqui, senão o desejo de me estorvar?...

– Engana-se. Meus negócios aqui me chamaram, e eu não jurei de não pôr os pés nesta casa.

– Se Paulina lhe quer tanto bem, como diz, devia saber que sua presença já era um estorvo.

– Eu estou sempre presente no coração dela, senhor Roberto; a minha ausência em nada poderia favorecê-lo, já que quer que lhe diga toda a verdade; o senhor vai matá-la.

– Não me mete cucas, senhor Eduardo; eu sei o que é um coração de moça. Mande-se mudar e deixe-nos, que tudo se arranjará por cá sem o senhor, sem dúvida nem matinada. A moléstia de minha prima apareceu com o senhor; desapareça, que ela também desaparecerá.

– Talvez a sua presença lhe seja mais fatal... mas não foi para estarmos a brigar, que o chamei, senhor Roberto; já lhe disse o que há; agora diga-me de uma vez, quer ou não quer salvar sua prima...

– Salvá-la como?... de quê?... salvá-la do senhor?... estou pronto.

– Não se faça desentendido. Quer ou não quer desobrigar-nos a ela do sim que lhe deu, e a mim do juramento?...

– Do juramento?... pois o senhor já não o quebrou?.. pode ainda quebrá-lo quantas vezes quiser.

Eduardo perdia a paciência; todavia tentou ainda com termos brandos e persuasivos reduzir a índole crespa e revessa de Roberto. Foi tempo perdido; nenhuma razão podia calar naquela cabeça de ferro, nenhum sentimento acalmar aquele coração irritado.

– Pois bem! – exclamou por fim Eduardo, já não podendo sofrear sua impaciência e indignação; – já que o senhor é um desalmado, e tem a cabeça tão rija como uma bigorna, fique-se embora com sua teima infernal; mas esteja bem certo que o senhor não se casa senão com um cadáver, e esse cadáver é feito pelas suas mãos. Paulina, sua prima, morre de paixão, e é o senhor quem lhe cava a sepultura.

– Não me venha com pataratas, senhor Eduardo; o que lhe convém é tratar de cumprir o seu juramento, retirando-se desta casa.

– Sei mais do que o senhor cumprir a minha palavra. Olhe que num momento posso me ver livre do senhor e desse desastrado juramento... porventura jurei de não matá-lo?...

Eduardo, ébrio de cólera, já apalpava o cabo da faca, que trazia presa à cava do colete, quando Joaquim Ribeiro que da varanda os observava, e vendo que os dois moços alteravam vozes, descera ao curral e se avizinhara sem que eles dessem fé, avançou e agarrando seu sobrinho pelo braço, bradou-lhe:

– Mas eu não lhe jurei nada, senhor meu sobrinho!... nosso contrato está rasgado, porque vejo que o senhor é um homem desalmado e indigno da mão de minha filha. Nem viva nem morta ela nunca lhe pertencerá. Não é mais o senhor, quem estorva esse casamento, senhor Eduardo; sou eu que não o quero. O senhor está desobrigado de seu juramento.

Roberto ficou fulminado com aquela terrível apóstrofe de seu tio; pálido e trêmulo não atinava com o que devia res­ponder, e ali ficaria assim por longo tempo, se Eduardo, to­mando a palavra, não viesse em seu auxílio:

– Não, senhor! disse Eduardo com voz firme; – não me considero desobrigado, enquanto ele mesmo não desistir; ela e o senhor deram-lhe um direito que sem quebra de leal­dade não lhe podem mais negar...

– Que louca teima, senhor Eduardo!... e assim Paulina morrerá...

– Não posso, senhor, não posso ser falso às cinzas de meu pai...

– Roberto, – disse o velho com voz suplicante, voltando-se para seu sobrinho, – Roberto, meu sobrinho, olha o que fazes. Tua prima está em risco de vida. Ela não te quer, e só te aceitava por marido por comprazer comigo; só o senhor Eduardo pode fazer a sua felicidade, só ele pode salvar-lhe a vida, que está por um fio. Roberto, tem piedade dela...

– Ai! que isto já me enjoa, e até me cheira a desaforo! – bradou Roberto; – o senhor Eduardo pode quebrar o juramento, e o senhor meu tio pode faltar à sua palavra quantas vezes quiserem. E adeus! passem muito bem, e façam o que entenderem.

E sem querer ouvir mais nada, montou em seu animal que ali estava ainda arreado, e picou a galope caminho de sua casa.

Os dois ficaram imóveis, pasmos e silenciosos por largo tempo olhando o cavaleiro, até que este se encobriu pela avenida de um capão vizinho.

– Que desalmado e brutal sobrinho tem o senhor Ribeiro, – disse Eduardo; – e era a um tal homem que o senhor ia entregar sua filha?...

– E não menos desalmado e cruel, – retrucou-lhe Ribeiro, – é o senhor, que por um vão escrúpulo deixa sucumbir minha infeliz filha.

– Jurei, senhor Ribeiro, e não sou homem que falte ao meu juramento por motivo nenhum deste mundo.

– E diz que quer muito... que adora a minha Paulina... oh!... perdoe-me; não posso acreditá-lo.

– Senhor Ribeiro, por compaixão, não agrave com suas queixas a dor de meu coração, que, – esteja certo, – sofre tanto ou mais do que o seu. Adoro a sua filha, e sei que sem ela serei o mais desgraçado dos homens. Mas, meu ami­go, que hei de eu fazer?... acima de tudo está Deus, a religião, a honra, a consciência.

– Não me diga tal; nem Deus nem a religião querem o suplicio inútil e a morte de uma inocente criatura.

– Deus abomina o perjúrio, senhor Ribeiro...

– Deus não aceita um juramento louco... Entretanto são os senhores dois os algozes de minha filha! Pobre Pauli­na!... o destino fez-te escapar das garras de uma onça para te colocar entre duas feras ainda piores...

Dizendo isto o infeliz velho lastimava-se e chorava como uma criança, arrancando as cãs e praguejando da sua sorte.

– Ânimo, meu amigo!... disse-lhe Eduardo, chegando-se mansamente para ele. Não se entregue assim ao seu pesar. O estado de sua filha não é ainda para desesperar. Com a minha ausência seu espírito acalmará; não há sofrimento algum, a que o tempo não traga algum alívio. Quanto a mim não devo parar mais nem um instante nesta casa, onde a mi­nha presença parece que é e será sempre um desastre. Adeus, senhor Ribeiro!... perdoe-me, se sou a causa involuntária de tantos sofrimentos... por piedade, não se queixe de mim... sou digno de lástima, mais do que ninguém... eu também sofro... sofro tanto como ela... e vou ser para sempre infeliz.

Falando assim o moço abaixava o rosto e tapava os olhos com a mão para ocultar suas lágrimas.

– Acredito e lastimo-o de todo o coração, senhor Eduardo,– respondeu-lhe o fazendeiro; – mas espero que me fará o favor de não ir ainda hoje; espere ainda até amanhã ou depois, tenha paciência. Quem sabe se aquele estouvado cairá ainda em si?... ele estava atordoado com o golpe que rece­beu; não sabia o que dizia, nem o que fazia... o caso não era para menos. Mas talvez que refletindo pense melhor... Esperemos; sou eu que lhe peço em nome de Paulina.

Não havia resistir. Eduardo deixou-se ficar e com o coração atravessado das mais raladoras angústias encaminhou-se para a gameleira, a cuja sombra foi se sentar. Era ali o horto, em que há tempos fizera tragar à mísera Paulina o cálix da amargura; era ali também, que agora ia sorver as fezes do fel das desventuras, que ele por uma cruel fatalidade tinha preparado com suas próprias mãos para si e para ela.

Que de amargas reflexões, que de pungentes recordações não o assaltaram ali naqueles curtos momentos, que resumiam uma vida inteira de decepções, de mágoas e de angústias!