Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/III/I
DA
Jupira estava sentada à sombra de uma canjerana ainda nova, de folhagem mui viçosa e cerrada, que dava fresquíssima sombra. Estava tecendo um cabaz de palhas de buriti, enquanto sua mãe, índia algum tanto idosa, a alguns passos de distância moqueava um gordo e grande tiú. [1]
Era isto à margem do Rio Grande de Minas, algumas léguas acima das paragens onde ele, reunindo-se ao Parnaíba toma o nome de Paraná.
Como a pequena árvore, que lhe prestava sombra, Jupira era também uma flor nova das selvas, que apenas abria o cálix às virações do deserto; uma linda caboclinha de treze a catorze anos, mas de tez um pouco mais clara do que a das suas companheiras da floresta. Era no veranico de janeiro; o rio estava baixo, e na larga zona de areia, que mediava entre ele e a floresta que o bordeja, viam-se dispersos alguns bugres de ambos os sexos, uns pescando ou banhando-se, outros dormindo ou comendo. O sol ardentíssimo do meio-dia reverberava no seio do rio e nas areias da praia, a ponto de ofuscar as vistas; estava um calor insuportável.
Pouco abaixo daquele grupo via-se um indígena de formas truculentas e vigorosas cortando as águas em todas as direções, ora nadando com rapidez, ora boiando à flor do rio, ora sumindo-se de mergulho na profundez dos rebojos, e era preciso olhar com muita atenção para ver que tinha em uma das mãos uma delgada linha. Ninguém diria que ele estava pescando. O índio pesca à linha os grandes peixes, quase como quem persegue um veado ou uma anta através de campos e florestas. Com um pequeno anzol ou fisga, e uma linha de tucum [2] da grossura de um fio de barbante, pescam não só os pequenos bagres e pirapitingas, como os corpulentos dourados e curumatãs, e o jaú, que atinge às vezes o tamanho de um homem de alta estatura, e tem a força de um touro. Apenas o peixe ferra a isca, e que o índio o percebe fisgado, em vez de procurar puxá-lo à terra, salta na água e dá-lhe corda, acompanhando-o em todas as voltas que lhe apraz dar pelo rio, tenteando a corda de modo que não se quebre, como quem tempera as rédeas a um poldro bravio e fogoso. A própria força do peixe arrasta o índio e o ajuda a romper as águas sem fatigar-se muito, e assim ora pairando à flor do rio, ora cortando-o veloz como uma seta, ora sumindo-se nos escuros abismos, o índio acompanha todos os seus movimentos, até que o peixe extenuado de cansaço se deixa facilmente arrastar para a praia.
Depois de ter gasto cerca de meia hora naquelas evoluções, o índio surgiu à praia agarrando pelas guelras com ambas as mãos e arrastando a custo um enorme peixe que media a altura de seu corpo, e ainda a cauda vinha abrindo um sulco pela areia, e dirigiu-se à sombra onde se achava a linda caboclinha.
– Uff!... Jupira!... – exclamou largando o peixe e deixando-o estourar no chão; – sei que não gostas do tiú, que é o que tua mãe tem para te dar, e fui ao fundo do rio buscar esse peixe para ti; custou-me bem a arrancá-lo da água. Fala, menina, qual desses teus fracos companheiros é capaz de lutar no fundo da água com um peixe destes?...
Jupira contemplou o peixe por alguns instantes com admiração, depois olhou para o índio, fez-lhe um ligeiro gesto de agradecimento, e continuou no seu serviço. O índio deitou-se de ventre sobre a areia a alguns passos de distância e fitava os olhos ardentes sobre a gentil menina. Parecia truculenta jibóia procurando fascinar com os olhos a tímida pomba, que pretende devorar.
– Então ingrata columi, – disse o índio abanando a cabeça, – de todo não queres saber do infeliz Baguari?...
Por única resposta Jupira levantou-se, e levando o seu trabalho foi sentar-se por detrás de sua mãe, como para esconder-se do índio e furtar-se a seus olhares devoradores.
Baguari pôs-se em pé de um salto, arrancou do íntimo peito um gemido rouco, antes um rugido e disse:
– Jupira, olha que o canguçu quando vê a veadinha tenra pelos bosques, nunca mais lhe perde o rasto, e não descansa enquanto não lhe lança as garras. E eu sou o canguçu e tenho fome de ti!
– Baguari! – exclamou a mãe assustada por sua filha, que cada vez mais se chegava a ela; – a menina ainda é muito nova... olha agora é que os peitos lhe vêm apontando. Para que apanhar a flor que ainda não abriu, colher os favos do jataí que ainda não tem mel?.. Deixa passar mais algumas luas; quando o ipê der flores outra vez, Jupira te abraçará.
– Não fale assim, minha mãe! – murmurou a menina ao ouvido de sua mãe. – Assim pudesse o ipê nunca mais dar flores!
Baguari afastou-se silencioso, e chegando ao meio do areal da praia, bateu palmas e soltou um assovio estridente como o da anta. A horda que se achava dispersa pela margem, reunia-se em torno dele. Baguari mostrou-lhes o peixe, e os selvagens soltando alaridos de alegria, em um instante o fizeram em postas levando cada um o seu pedaço para se banquetearem aquela tarde.
Jupira disse a sua mãe:
– Não viu aquele peixe tão grande, que Baguari matou?
– Pois não vi, minha filha?.. foi para ti que ele o pescou.
– Não quero do seu peixe, nem de nada que passar por suas mãos. Tenho mais medo dele do que daquele jaú, se o encontrasse no fundo da água.
Daí a pouco a tarde trazia sombra e fresquidão por aquelas magníficas solidões e os índios, tripudiando e banqueteando-se, com seus alegres alaridos faziam saltarem espantadas as feras de seus covis, e os passarinhos deixarem em sobressalto os seus abrigos de verdura.
Somente Baguari, – que cuidara nessa tarde abrevar-se de cauim e de prazer nos braços da gentil Jupira, – retirado no mais recôndito antro da floresta, arrancava rugidos de amargura de despeito.