Saltar para o conteúdo

Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/III/II

Wikisource, a biblioteca livre

Em seu lado sudoeste a província de Minas termina em um ângulo agudo, em uma vasta nesga de terra encravada entre as províncias de Goiás e de S. Paulo, das quais a separam os dois grandes rios Parnaíba e Rio Grande, que se vão reu­nir na ponta do ângulo. Nessas regiões, sobre as quais a natureza parece ter entornado a flux todo o cofre de seus favores, trinta léguas pouco mais ou menos acima da confluência dos dois rios, está situado o Seminário de Nossa Senhora Mãe dos Homens, fundado há cerca de cinqüenta anos pelos padres da Congregação da Missão de S. Vicente de Paula em uma vasta e rica fazenda, que lhes deixou em legado um opulento fazendeiro daquelas paragens.

Possui a fazenda matas na prodigiosa uberdade, pingues e magníficas pastagens, por entre as quais um caudaloso ri­beirão vai sereno rolando suas águas cor de esmeralda som­breadas por duas orlas de frondoso e verde-negro arvoredo, pelo que decerto lhe deram o nome de Rio Verde. Atravessa as mais formosas e risonhas campinas entrecortadas de viçosos capões e palmares pitorescos, e vai perder-se no Rio Grande, que passa a cinco ou seis léguas do seminário ocultando seu curso entre gigantescas e profundas matas.

Pelas imediações do seminário para logo se foram agre­gando alguns moradores, e em torno dele construindo-se algu­mas casinhas dispersas pela campina, de sorte que o lugar chamado Campo Belo, nome que perfeitamente lhe quadra, tornou-se como uma pequena aldeia.

Por aqueles sertões vagavam por esse tempo alguns res­tos de tribos selvagens vindas de Goiás e Mato Grosso, já algum tanto familiarizadas com a sociedade dos brancos, mas conservando ainda os hábitos selváticos e a independência da vida errante. Os padres fizeram reiterados esforços para chamá-los ao grêmio do cristianismo e da vida social, doutri­ná-los, e utilizar seus serviços.

Os missionários de S.Vicente, porém, parecem que não são dotados daquele tino e habilidade, de que dispunham os discípulos de Inácio de Loiola para catequizar os indígenas. Por vezes conseguiram reunir na fazenda alguns bandos; mas nunca alcançaram que se sujeitassem por muito tempo a um trabalho contínuo e regular.

Atraídos pelo desejo de obterem algumas roupas, ferramentas, armas e enfeites, acudiam de quando em quando ao seminário; mas no fim de um a dois meses quando muito aborreciam-se do trabalho, entregavam-se à sua natural indo­lência e, se apertavam com eles, desapareciam, e internavam-se de novo pelas matas do Rio Grande, continuando sua vida nômade e selvática.

Em um desses bandos, que se acolhiam às vezes à fa­zenda de Campo Belo havia uma caboclinha nova por nome Jurema, não de todo linda, mas um pouco menos feia e mais bem-feita do que as suas companheiras. José Luís, moço branco e bem-disposto, empregado no seminário, agradou-se sumamente dela, e por tal arte soube catequizá-la, que no fim de algum tempo Jurema lhe deu uma linda e viçosa filhinha.

Sabedores do fato os padres induziram José Luís a ca­sar-se com a índia. Batizaram-se ao mesmo tempo a mãe e a filha, e no dia seguinte o pai e a mãe receberam-se em legí­timo matrimônio. Jurema trocou o seu nome selvático pelo de Ana, e a filha, que a mãe chamava Jupira, pelo de Maria.

Os índios não punham dificuldade alguma em se deixa­rem batizar, casar e receber todos os mais sacramentos da igreja; mas isso para eles era um ato sem conseqüência. No dia seguinte esqueciam seus novos nomes, e os esposos se separavam com a mesma facilidade com que largavam seus vestidos, para tomarem de novo a araçóia, e tornavam aos ma­tos para serem tão bons adoradores de Tupã como dantes.

Aconteceu pois que um belo dia a esposa de José Luís anoiteceu e não amanheceu, desaparecendo com seus irmãos em Tupã, e levando consigo sua filhinha ainda de mama. José Luís ficou sumamente aflito e magoado com este aconteci­mento; fez imensas diligências para apanhar ao menos a filha pois com a mãe já não contava mais à vista de um tal pro­cedimento.

Mas todos os seus passos foram perdidos, e depois de um ano de pesquisas e excursões pelas matas, desanimou...

As florestas são imensas, e aquela gente não tem pouso certo nem por uma semana.

Eram já passados mais de dois anos, quando Jurema sem mais cerimônia entrou-lhe pela porta dentro, e se lhe apresentou conduzindo pela mão a pequena Jupira, e já com outro caboclinho às costas acocorado em uma pequena maca de buriti, que trazia presa à testa, como é costume entre as índias. Apareceu a seu marido sorrindo-se tranqüila e fresca, como se nada houvesse acontecido, como se se tivessem se­parado na véspera. José Luís ficou atônito com aquela ines­perada visita; maior porém foi a sua alegria do que o seu espanto, e deu graças ao céu, que lhe restituiu a filha, a qual ele tratou logo de pôr em bom recato e segurança, despedindo cortesmente a mãe, que com isso não se mostrou nem de leve magoada, pois segundo as aparências já tinha novo esposo no bando dos seus.

Receoso José Luís, de que sua filha não fosse de novo levada para o mato por sua mãe, guardou-a com toda a cau­tela, confiando-a aos cuidados de uma velha parenta que era a sua caseira, e não respirou tranqüilo enquanto Jurema com todo o seu bando não desapareceram das imediações de Campo Belo.

A menina crescia linda, engraçada, e travessa como uma ariranha. Tinha muita vivacidade e penetração, mas os instin­tos selváticos prevaleciam nela, e foi com muita dificuldade, que seu pai no fim de sete anos conseguiu que ela adquirisse alguns costumes de civilização, andasse vestida, cosesse, lesse e escrevesse alguma coisa. Muitas vezes a iam agarrar pelos matos quase nua, trepada como macaco nas mais altas árvores, ou nadando nos profundos remansos do Rio Verde em risco de ser devorada por algum jaú ou sucuri.

Todavia Jupira era uma interessante menina, e pela singularidade de suas qualidades físicas e morais era o enlevo de toda aquela pequena povoação.

Andava de casa em casa, e em todas elas era mui querida e festejada. Às vezes também penetrava no seminário, aí fazia o regalo e as delícias dos padres e dos estudantes.

Quando, porém, ali se achava algum bando dos seus parentes da selva, não queria mais sair do meio deles; já lhes conhecia bem a língua, da qual já balbuciava algumas pala­vras quando voltara do mato. Por isso muitas vezes servia de intérprete entre os índios e os padres com sumo gosto e contentamento de todos. Somente José Luís – e com razão – se afligia muito com isso, e não gostava nada de ver sua filha tão afeiçoada aos seus parentes do mato. Zangava-se, ralhava, castigava, mas era debalde; o pendor que a menina tinha para os seus era irresistível.

Jupira já tinha nove para dez anos, quando sua mãe, depois de vaguear largos anos pelos sertões de Goiás, Pará e Mato Grosso, tornou a aparecer em Campo Belo com a horda, a que pertencia. Jupira!... exclamou a índia, apenas pôs os olhos em sua filha. Esta também imediatamente reconheceu sua mãe, saltou-lhe ao colo, e nunca mais quis dei­xá-la.

José Luís ficou cheio de gosto e inquietação com o reapa­recimento da mãe de sua filha. Desta vez redobrou de cui­dados e precauções. Jupira sem que ela o soubesse, não andava sem uma sentinela à vista. Era um primo seu, um sobrinho de José Luís, por nome Carlos, e a quem todos chamavam Carlito, pouco mais velho do que ela, rapazinho vivo e esper­to como um diabrete. Não tendo podido parar no seminário em razão de seu gênio trêfego, indócil e insubordinado, fre­qüentava como externo a escola de primeiras letras, onde se havia muito mal. Entretanto era excelente para servir de companheiro de brinquedos e ao mesmo tempo de sentinela a sua prima durante o dia, porque de noite dormia ela fechada debaixo de chave em companhia da velha caseira de José Luís.

Todavia apesar de todas essas precauções, uma bela manhã Jupira não amanheceu em casa. Tinha arranjado modo de trepar pela parede, e como a casa era de telha-vã, isto é, sem forro no teto, descobriu um pedaço de telhado, saltou fora, e voou para as selvas em companhia de sua mãe.