Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/III/VI

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Quirino enganava-se; a indiferença de Jupira para com ele não era simples efeito da timidez selvática, nem da inocência própria dos verdes anos da rapariga; tinha outro motivo mais poderoso, o qual Quirino absolutamente igno­rava. Para aquele temperamento de fogo, para aquela alma inflamável, aos quinze anos o amor era uma necessidade imperiosa, Jupira começava a amar outro.

O leitor há de se lembrar de Carlito, sobrinho de José Luís, aquele menino travesso que ele pusera como sentinela a sua filha durante a sua anterior estada na casa paterna.

Carlito, que agora apenas entrava na puberdade, se bem que não fosse estudante, tinha morada no seminário, mas ia com muita freqüência à casa do tio, onde tinha entrada franca por todos os cantos, entrando e saindo à hora que lhe aprazia. Era impossível que em tão contínuo contato com sua formosa prima não ficasse gostando dela.

Carlito por sua parte era um adolescente lesto, bem disposto, e de encantadora presença. Ainda mais uma circunstância era própria para torná-lo agradável aos olhos de Jupira; era ágil e travesso como ela; tinha artelhos de aço, e corria e saltava como um gamo; trepava a uma árvore como um sagüi, e nadava como a lontra.

Foi vagueando e brincando à sombra dos laranjais em flor, ao murmúrio da fonte do quintal, que aquelas duas almas, virgens como duas pombas novas que começam a bater as asas fora do ninho, arrularam em segredo seus primeiros amores.

Por alguns meses assim se lhes passaram rapidamente os dias no enlevo daquelas primeiras emoções de um amor virginal, naqueles eflúvios da alma tão puros e deliciosos como essas exalações balsâmicas, que a brisa da madrugada levanta dentre os rosais orvalhados. Carlito amava como menino que era. Era mais a febre dos desejos sensuais que lhe agitava o sangue juvenil à vista dos sedutores encantos de sua prima, do que o coração que acordava suspirando ao sopro de uma paixão. O amor de Jupira era amor de cabocla, ardente como o sol do deserto que lhe dourava a tez, profundo como os abismos do rio onde banhava os membros infantis. Aquela, que matara para se desfazer do amante importuno que odia­va, era também capaz de morrer de amor por aquele a quem adorasse, ou de apunhalar o amante que a atraiçoasse. Car­lito, simples criança, não podia adivinhar quanta paixão, energia e resolução havia no fundo da alma daquela menina na aparência tão indolente, frívola e descuidosa.

Apesar dos esforços de seu pai, Jupira nunca pudera perder de todo os hábitos de selvática liberdade em que fora criada. Saía sozinha de casa e vagava por campos e matas, caçando ou pescando, como se fosse um rapaz, e muitas vezes nos dias calmosos ia sozinha banhar-se nas águas do seu que­rido Rio Verde, no mesmo sítio em que na infância se exercitara a fender-lhe as ondas, em um remanso límpido e profundo sobre o qual se debruçavam árvores copadas, cobrindo-o de sombra e fresquidão deliciosa. Esses passeios, que seriam muito desinquietadores e dariam muito que falar em outra qualquer rapariga, em Jupira ninguém os estranhava.

Ela gozava da reputação de ter em aversão os homens, principalmente aqueles que a amavam. Essa fama, baseada no seu gênio arisco e um tanto crespo, na história do cacique que havia matado, e no uso de uma pequena faca guarne­cida de prata que sempre trazia no seio, serviam-lhe de sal­vaguarda, e ninguém ousava atravessar-se em seu caminho quando saía em suas excursões, e se acaso algum rapaz a encontrava pelos rincões solitários ou pelas veredas escusas da mata, tirava-lhe respeitosamente o chapéu, e seguia seu caminho.

O próprio José Luís não mostrava inquietar-se muito com aqueles passeios de sua filha. – Quem sabe tão bem guardar-se, – costumava ele dizer, – e fazer-se respeitar por tanto tempo no meio das matas e entre bugres bravios, que risco pode correr aqui no meio de gente cristã e civilizada?

Só havia uma pessoa, que não lhe tinha medo; era Carlito. Mas esse mesmo ainda não tinha ousado ir perturbá-la em seus giros solitários.

Todavia, Carlito sentia um vivíssimo desejo, que não podia mais refrear, e era de ir espiar sua linda prima, quando ela ia banhar-se nas águas do Rio Verde. Nada lhe era mais fácil do que gozar, sem que Jupira o pressentisse, daquele espe­táculo, com o qual esperava que gozaria todas as delícias do céu, e que nada mais lhe restaria a desejar sobre a terra.

Quando a viu pois dirigir-se para os lados do rio, o qual corria como a um quarto de légua de distância, deu uma grande volta, passou para o outro lado do rio, e foi cuidadosamente esconder-se em uma moita donde a esteve espreitando muito a seu sabor. Dali em diante todas as vezes que Jupira ia ao seu costumado banho, tinha sem o saber um espectador invisível, que a espreitava e cevava olhos ávidos e ardentes na contemplação de seus mais ocultos encantos.

Um dia, porém, Carlito, petulante e lascivo como um sátiro, não se pôde mais conter.

– Vou aparecer-lhe, dê no que der; – murmurou con­sigo o rapaz. – Que mal me poderá fazer uma fraca rapariga? tenho boas pernas e braços e sei nadar e correr... e tam­bém se ela me matar, terei muito gosto em receber a morte das mãos dela.

Jupira brincava descuidada no rio, ora boiando serena ou resvalando à flor da água em todas as posições, ora dando pulos e mergulhando como a lontra, ora espanejando-se e fazendo saltar uma chuva de aljôfares sobre sua cabeça, como a marreca silvestre a bater as asas lavando a luzidia plumagem. Eis senão quando ouve um barulho como de um corpo que caiu de golpe na água, e sumiu-se no fundo. Olhou assustada em roda de si arredando dos olhos os cabelos enso­pados, mas nada viu.

– Não pode ser senão alguma ariranha, – pensou Jupira. – Dessa não tenho eu medo. Jacaré aqui não há, que eu saiba.

Pensando assim, a moça nadava rapidamente para a mar­gem oposta, que era a que lhe estava mais próxima. Qual, porém, não foi o seu espanto, quando viu surgir diante de si a cabeça do travesso e petulante Carlito, soltando-lhe à cara uma estridente gargalhada. A cabocla deu um grito, sumiu-se de mergulho, e arrepiando carreira foi reaparecer no meio do rio, nadando rapidamente para a outra margem, onde tinha seus vestidos.

– Sossegue; não tenha susto, Jupira! – gritou-lhe Carlito. – Eu já me vou embora.

Jupira voltou o rosto, e com um gesto entre irado e risonho, que tanto se podia tomar por uma ameaça como por um convite, continuou a nadar. Carlito, que era estouvado e audacioso, atirou-se a nado em seguimento dela. Mas antes que pudesse alcançá-la, já ela tinha saltado à praia e agarrando suas roupas não havendo tempo para vesti-las, nelas embrulhou-se à pressa, e correu a embrenhar-se no mato sol­tando uns clamores, que mal se podia saber se eram gritos de terror ou risadas de prazer.

Carlito seguiu-a de perto, e um momento depois sumia-se também pelas brenhas atrás dela.

Os mistérios, que a cúpula frondente do bosque amparou com sua discreta sombra nos momentos que se seguiram, nin­guém os sabe. É certo que uma nuvem carregada tapou então a face do sol, um tufão vergou o topo dos arvoredos com pesaroso sussurro, e uma sombra sinistra toldou o álveo lím­pido das águas, e... no ádito das brenhas ressoaram mur­múrios intercadentes beijos e suspiros abafados.