Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/III/V

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O cadáver de Baguari foi rolando longos dias à mercê da torrente do Paraná, servindo de pasto aos peixes, e de banquete e batel a um tempo aos urubus, que sobre ele iam boiando rio abaixo, até que enfim foi encalhar em uma praia arenosa justamente em um lugar, onde então achavam-se arranchados os seus companheiros. Dir-se-ia, que a mão do destino para ali o tangera de propósito como para clamar vingança. Posto que já meio devorado pelos peixes, foi logo reconhecido pelos seus. Baguari ao partir lhes havia prome­tido que em menos de três luas havia de voltar com Jupira; que se até então não aparecesse é porque o teriam morto, e nesse caso deixava a cargo deles a sua vingança. De feito voltou, mas sem vida e sem Jupira, e apenas trazendo ainda no dorso as flechas que ela lhe havia cravado, como em vida havia trazido cravadas no peito as setas, com que os lindos olhos de Jupira lhe haviam atravessado o coração.

Apenas os índios o reconheceram, soltaram grandes alaridos de dó, recolheram o cadáver em uma grande maca, teceram em torno dele danças fúnebres, e deram-lhe sepultura à sombra de uma velha sucupira.

Feitas as honras fúnebres ao seu valente chefe, aqueles indígenas trataram logo de marchar pela margem do Rio Grande acima a fim de lhe vingarem a morte. A horda de Baguari era muito mais numerosa e forte do que o bando desorganizado em que vivia Jupira, o qual constava de relí­quias de hordas devastadas e dispersadas pelos brancos. De longo tempo em contato com os brancos tinham perdido os hábitos belicosos, e grande parte de sua coragem e fereza selvática. Em breve chegou-lhes aos ouvidos a notícia de que a gente de Baguari marchava contra eles a fim de vingar a morte de seu chefe. Fracos e pusilânimes, aqueles restos da família caiapó não podiam resistir aos robustos e aguerridos Guaianás, que sobre eles vinham cheios de cólera e sede de vingança, e seriam infalivelmente exterminados.

Jupira não havia ocultado aos seus a morte do sanhudo Baguari; pelo contrário, risonha e triunfante lhes narrou com toda a franqueza e ingenuidade a astúcia de que se valera para livrar para sempre daquele feroz pretendente. Contan­do como certa a sua ruína e possuídos de terror, seus co­vardes companheiros resolveram mandar um emissário ao encontro dos inimigos para dar-lhes satisfações e dizer-lhes que nenhuma parte tinham tido na morte de seu chefe, que fora Jupira a única autora daquele atentado, e que para aplacar sua justa cólera estavam prontos a entregar-lhes viva ou morta a criminosa. Este teria sido o destino da linda caboclinha se um de seus pretendentes, esperando assim fazer jus à gratidão e ao amor da rapariga, não a tivesse avisado da bárbara e aleivosa intenção dos seus.

Jupira e sua mãe fugiram para Campo Belo e acolheram-se à fazenda dos padres, resolvidas a nunca mais voltarem para a companhia de seus pérfidos companheiros.

Era já a quarta vez que Jupira desde que nascera tro­cava a selva pela casa paterna, e a casa pela selva alternati­vamente. Seu pai a recebeu com os braços abertos, e sentiu grande alegria em tornar a achar a filha, na qual já há muito havia perdido as esperanças de tornar a pôr os olhos em dias de sua vida. Recolheu-a para casa, e extasiado de sua for­mosura e do viçoso desenvolvimento de suas esbeltas formas deu-lhe lindos vestidos e enfeites, que ela de bom grado tro­cou pelo curto saiote e pelo canitar de que usava nas selvas, e empregou todos os meios, todas as carícias e seduções possíveis para fixá-la de uma vez para sempre no seio da sociedade civilizada.

Se com os trajos selváticos Jupira por seu garbo e gentileza fazia lembrar uma Moema ou uma Lindóia, vestida à maneira da gente civilizada era uma rapariga sedutora, capaz de alvoroçar o coração e inflamar o sangue de um anacoreta. Era alta e muito bem-feita. Os cabelos negros, corredios e luzentes como asa do anu, eram tão bastos e compridos que a linda cabocla ainda pouco adestrada na arte de se toucar, via-se em apuros para acomodá-los sobre sua pequena ca­beça e muitas vezes rebelando-se contra as fitas e prisões, as quebravam e tombando-lhe pelo colo se derramavam em liberdade pelos nédios e morenos ombros. Os olhos um pouco levantados nos cantos exteriores, eram bem rasgados, e dar­dejavam das pupilas negras lampejos, que denunciavam o ardor de seu temperamento e uma alma enérgica e resoluta. Os lábios rubros, carnosos, e úmidos eram como dois favos túrgidos de mel da mais inefável voluptuosidade, e quando se fendiam em um sorriso mostravam duas linhas de alvíssimos dentes um pouco aguçados como os dos carnívoros, e seu sorriso tinha singular e indefinível expressão de ingenuidade e de selvática fereza. A todos esses encantos, a todas essas linhas e voluptuosas formas, servia como de brilhante invólucro a tez de uma cor original, um róseo acaboclado, como que dourado pelos raios do sol, que dava peregrino relevo à sua linda figura.

Quando ia à missa aos domingos, na pequena capela do seminário todos os olhos voltavam-se para a interessante cabocla, todos a contemplavam sorrindo com o mais curioso interesse e complacência. Até mesmo os seus gestos e adema­nes um pouco estouvados, o ar desajeitado e constrangido, com que vergava as suas vestiduras, tudo nela parecia galante, e encantador.

Se bem que na pia batismal tivesse recebido o nome de Maria, os moradores de Campo Belo conservavam-lhe sempre o seu nome indígena de Jupira, por acharem-no mais galante e entenderem que lhe assentava melhor.

É escusado dizer, que não faltaram apaixonados àquela tão sedutora quão peregrina formosura. Mas como já corria pela aldeia a história da morte do cacique que às mãos da frágil menina pagara com a vida a sua audácia, os amantes de Jupira tinham-lhe certo respeito, e não a requestavam senão com certa timidez e reserva, se bem que nenhum deles ti­vesse intenção de lançar-lhe mãos violentas. Mas aquele epi­sódio de sua vida rodeando-a de um terrível prestígio servia-lhe de salvaguarda, e de broquel contra qualquer desacato ao seu pudor.

Entre os amantes de Jupira o mais assíduo, ardente e apaixonado, e talvez também o mais guapo, o mais rico e considerado de todos, era um mancebo por nome Quirino, filho de um abastado fazendeiro daqueles arredores. Era um rapagão alto e bem disposto, de barba cerrada e negra, e pupila ardente e viva, em que transluzia todo o fogo de sua alma capaz de todos os extremos.

Quirino amava, não como se ama na cidade, onde se namora muito e ama-se quase nada, mas como se ama no sertão, em meio da solidão, debaixo daqueles céus ardentes, no seio daquela natureza esplêndida: amava com paixão, com fogo. Quirino freqüentava assiduamente a casa de José Luís, onde cercava a rapariga de mil atenções, obséquios e adorações, sem que ela nem de leve se mostrasse sensível a tantas demonstrações de afeto, por mais que ele empregasse todos os meios ao seu alcance para ganhar-lhe o coração. A princípio nem lhe passava pelo pensamento casar-se com uma pobre cabocla filha de uma gentia e criada nos matos.

Porém quanto maior era a insensibilidade e esquivança de Jupira, mais ardente se tomava a paixão do rapaz, e mais se lhe atiçava o desejo de possuí-la; estava disposto a empre­gar todos os meios, a fazer todos os sacrifícios para esse fim.

Como Jupira tratava todos os outros amantes com a mesma indiferença e talvez pior do que a ele, Quirino entendeu que toda aquela insensível esquivança não era senão resul­tado dos poucos anos e da selvática timidez e acanhamento da rapariga, e esperava que de modo nenhum ela recusasse uma proposta de casamento com um moço como ele era, bem apessoado, rico e de boa família. Depois de ter lutado em vão por vencer a obstinada indiferença da menina, era aquele o seu último recurso. Uma vez casado mais fácil lhe seria catequizá-la e ganhar-lhe a vontade e o coração.

Demais, já esse casamento não lhe parecia tão ridículo e desigual, pois Jupira era filha legítima de José Luís, e José Luís empregado do seminário, tinha adquirido alguns bens de fortuna, e era homem que gozava de respeito e considera­ção no lugar. Quirino pois, não hesitou mais um instante, e foi pedir-lhe a mão de sua filha.

José Luís acolheu com infinita satisfação a proposta do mancebo; não podia desejar melhor partido nem maior ven­tura para sua filha, e foi logo comunicar-lhe a pretensão do moço.

Ela porém com grande pasmo e desgosto de José Luís recusou-se obstinadamente a semelhante casamento. Foi deb­alde que José Luís por muitos dias lutou com ela empregan­do exortações, conselhos, súplicas e até por fim repreensões e ameaças para induzi-la a aceitar a mão de Quirino.

– Meu pai, – disse-lhe ela afinal com um sorriso, que fez arrepiarem-se as carnes de José Luís, – ninguém será capaz de dar-me um marido contra a minha vontade; eu já sei como a gente se livra deles, quando nos querem levar à força!

José Luís assombrado com aquela resposta recolheu-se ao silêncio, e desistiu do seu propósito.