Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/III/IV
Quando Baguari, perseguindo Jupira, chegou ao lugar em que Jurema se achava, já era noite e os outros bugres já ali reunidos estavam acendendo seus fogos.
– Que fizeste a Jupira, que ela me apareceu correndo e chorando, toda assustada? perguntou Jurema a Baguari.
– Não lhe fiz mal algum, Jurema; ela é arisca e medrosa como a saracura do brejo.
– Tem medo de ti, porque não sabes amimá-la. A pomba foge do carcará, que lhe fisga as unhas, mas gosta do trocaz, que a beija e acaricia.
– Mas porventura sou eu algum jacaré do rio para ela fugir-me assim, e obrigar-me a negaceá-la como o jaguar que anda à espia da veada nova?...
– Por essa forma, Baguari, nunca Jupira te quererá.
– Não queira embora; há de ser minha. Para que me deu Tupã estes olhos, que enxergam mais do que os do gavião, e estes pulsos mais fortes do que os do canguçu?...
A estas palavras ressoou por entre os outros bugres um murmúrio surdo, e alguns rosnaram palavras de indignação e de ameaça. Baguari vibrou sobre eles um olhar de fogo e sangue, e voltando-se para Jurema e sua filha:
– Está bem, – disse; – não quero mais teimar contigo, Jurema. Vou-me embora para os meus. E tu Jupira fica-te em paz; não te perseguirei mais. Dou-te seis luas para me esperar e ai daquele, que ousar tocar-te, e ai de ti, se te entregares a algum!
De feito eram já passados dois meses, e ninguém mais via por aquelas paragens o sanhudo Baguari. Tinha realmente ido reunir-se a seus companheiros, cuja residência favorita era para as bandas de Sant’Ana do Parnaíba próximo à junção dos dois grandes rios.
Jupira pois podia já passear sozinha e desassombrada, e adormecer tranqüila à sombra da figueira silvestre pelas margens do seu pátrio Paraná, ela que tinha mais medo do amor de um homem do que das sanhas do canguçu, das ciladas do sucuri.
Em uma sesta ardente ela estava sozinha sentada à sombra bem junto à margem do rio. Pendurada a um galho se via perto dela uma pequena maca, onde dormia um irmãozinho seu, que ela embalava cantando, e enxotando com um ramo os maribondos e mutucas, que lhe esvoaçavam em torno. Espalhados pela praia, pendurados ou encostados pelos troncos viam-se armas, redes, esteiras e mais utensílios indianos, sinal de que a sua horda não devia andar por longe. De feito, Jurema e seus companheiros tinham-se entranhado pela floresta à cata de jabuticabas, araticuns, bacuparis e outras frutas silvestres de que abundam aquelas matas, e deixaram ali Jupira tomando conta do rancho e vigiando a criança.
Entretida com aquele cuidado Jupira não viu um vulto, que na margem oposta surgiu da mata, e atirando-se ao rio o veio atravessando sereno e sem ruído, como um jacaré, mal tendo a cabeça fora da água.
Ao aproximar-se da barranca mergulhou, e Jupira só o viu quando surgindo fora da água, saltou na praia perto dela. Soltou um grito de susto cuidando ser algum monstro aquático, que a vinha devorar; porém, seu terror ainda subiu de ponto, quando naquele vulto reconheceu Baguari, que se erguia ao pé dela gotejante, gigantesco e hediondo, com os olhos vermelhos e chamejantes como duas brasas.
– Jupira, hoje é o dia! – bradou o índio lançando-lhe as mãos. – Hás de ir comigo ou hei de dar-te a comer aos peixes deste rio.
Jupira tremendo e transida de horror, deixou-se ficar muda e queda, como a corça que sentiu no cangote a garra aguçada da suçuarana.
– Vamos, Jupira!... desta vez eu te juro não me escaparás mais.
– Sim, vamos, Baguari; – disse Jupira voltando-se do susto e recobrando sua natural coragem e resolução. – Devo ser tua; bem vejo que Tupã me destinou para ti, e que não me é possível por mais que faça escapar ao teu poder.
– Ah!... enfim!... ainda bem que o conheces. Acompanha-me.
Falando assim Baguari a ia arrastando para a mata.
Presa à barranca estava uma canoa que aqueles indígenas, que já tinham alguma indústria e possuíam alguma ferramenta, haviam fabricado.
– Não! para aí não! exclamou Jupira. – Minha gente não pode tardar a voltar, e ai de nós se nos encontrarem! matar-nos-ão a mim e a ti!... Entremos naquela canoa, vamos para a outra banda, e fujamos para bem longe.
Não pareceu má a Baguari aquela proposta.
– Seja como quiseres... mas esse columim?... disse o índio apontando para a criança.
– Tupã tomará conta dele – respondeu a menina apontando para o céu.
Entraram na canoa, e Jupira para mostrar que de bom grado acompanhava o seu roubador, levou para dentro dela seu arco e flechas, e mais utensílios que lhe pertenciam. Sua intenção porém era precipitar-se no meio do rio, e deixar-se afogar, no caso que não pudesse matar Baguari. Chegados que foram ao meio do rio, Jupira debruçou-se sobre o bordo da canoa como para mirar a profundidade das águas. Um forte pé de vento, que então se levantou, arrancou-lhe da cabeça e atirou no rio o bonito canitar de penas de arara guarnecido de ouro e pedrarias, que trouxera da casa de seu pai.
Uma súbita inspiração atravessou o espírito de Jupira.
– Ah! o meu canitar!... o meu canitar!... exclamou a menina ajuntando as mãos com mostras de grande lástima.
– O meu canitar, que eu quero tanto... lá se vai pela água abaixo!... ah! meu Deus, espera, Baguari!... vou ver se o posso apanhar.
Dizendo isto fazia gesto de quem ia lançar-se a nado.
– Espera tu aí, que eu já te trago o teu canitar.
Disse e de um salto atirou-se ao rio. Apenas se havia afastado umas quatro ou cinco braças da canoa, Jupira toma o arco, e acocha-lhe uma flecha, que foi cravar-se-lhe na espádua. O índio arrancou um rugido de dor, e afundou-se por um momento; apenas surgiu de novo à tona da água, nova flecha voou do arco de Jupira e foi cravar-se na outra espádua do índio. Nenhuma das flechas porém havia penetrado muito fundo, e nem lhe tolhiam o movimento dos braços; o índio enfurecido lançou-se sobre a canoa, a qual também não sendo governada vinha rapidamente sobre ele levada pela torrente. Quem o visse então com aquelas duas hastes emplumadas sobre o dorso, cuidaria ver um dragão alado arrojando-se sobre a canoa para devorar a infeliz menina. Jupira, que o esperava em pé com um feroz sorriso de triunfo, deixou-o chegar, e quando o índio enfurecido ia deitar a mão ao bordo da pequena igara, descarregou-lhe com toda a força o remo sobre a cabeça e rebentou-lhe o crânio. O índio desapareceu, e foi surgir um pouco abaixo à flor da água entre uma multidão de peixes, que saltitando devoravam o sangue e os miolos que escorriam do crânio do desventurado cacique.