Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/III/VIII

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Jupira em sua cólera era bela e sublime, mas bela e sublime para inspirar um artista, e não para despertar o ardor e ameigar o coração do amante, que começa a arrefecer-se. Sua palidez era como a do mármore encardido; os olhos fuzilavam revérberos cor de sangue; a boca espumava, os lábios e as narinas lhe tremiam convulsivos. Reinava em seu todo um ar imperioso, feroz, que fazia medo.

À indiferença e enfado que Carlito começava a sentir por Jupira, vinha agora juntar-se também o medo para mais arredio e esquivo torná-lo. Todavia, esse mesmo medo fazia com que ele a procurasse mais vezes do que desejava, mas com toda a precaução e reserva, temendo mais alguma explosão de seu furioso ciúme, e tratasse daí em diante de ocultar o mais possível suas entrevistas com Rosália.

Quirino tinha-se retirado para a fazenda de seu pai, triste, acabrunhado, porém, ainda não de todo desanimado. A repulsa de Jupira ainda mais lhe avivara a chama que o devorava. Aquela boca feiticeira da cabocla, que prometia um paraíso de volúpias, ou contornos daqueles ombros, daquele talhe, tão bem boleados, aqueles olhos negros, cujo brilho profundo era um pouco velado por pálpebras languidamente descaídas, aqueles seios redondos, que lhe arfavam sob a camisa como duas rolinhas arquejantes arrulando de amor em seu ninho, tudo isso a todo momento se lhe estava pintando na imagina­ção com as mais sedutoras e vivas cores escaldando-lhe o cérebro em noites de insônia, fazendo pular-lhe o coração e ferver-lhe o sangue em frenéticos anelos de volúpia e de amor. Não pôde suportar a ausência por muito tempo, e voltou a Campo Belo decidido a envidar os últimos esforços, a tentar o último sacrifício para alcançar o objeto de seus ardentes desejos.

Jupira desta vez acolheu Quirino com mais brandura, e ouviu suas queixas sem se enfadar, ou porque já sabedora de quanto é doloroso o dissabor, que provém de um amor mal correspondido, se compadecesse do mancebo, ou porque qui­sesse punir Carlito com pena de talião correspondendo ou fingindo corresponder ao amor de Quirino, ou talvez porque, no estado de angústia e perturbação, em que se achava, gostasse que alguém lhe falasse e fizesse dispersão às ânsias de seu coração. Quirino criou alma nova e encheu-se de espe­ranças.

– Bem dizia eu! – pensava ele consigo. – Era uma criança arisca e medrosa e nada mais; mas isso não podia durar sempre... já vai chegando à fala; não tardará muito a cair-me nos braços.

Jupira já não podia duvidar da deslealdade de Carlito. Todavia, ainda algumas dúvidas lhe pairavam por vezes no espírito; era uma ligeira sombra de esperança, que a triste afagava em seu coração; desejava convencer-se por seus pró­prios olhos, queria uma prova bem positiva da aleivosia de Carlito. Se em seus amores era livre como a brisa do deserto, consideração nenhuma a podia tolher nos violentos acessos de seu feroz ciúme. Como a onça esfaimada rodela e espia o nédio e tenro veado, que descuidado vagueia por bosques e campinas, até lançar-lhe as garras, assim Jupira espiava com olhar cioso todos os passos de seu volúvel amante, acompanhava-o sem ser vista, conhecia-lhe o rasto, e em seu instinto selvático quase que o farejava.

Carlito bem o pressentia, e por mais desvios que pro­curasse, por mais que tentasse ocultar seus passos, não podia escapar às vistas penetrantes, ao instinto advinhador de sua ciosa amante. Esta espionagem o fatigava e aborrecia, dando lugar a queixas e arrufos cotidianos, e, quando se achavam juntos, em vez de se afagarem e beijarem-se como outrora, não faziam senão brigarem, arranharem-se e morderem-se como dois gatos-do-mato.

Esse constrangimento, em que o temível ciúme de Jupira colocava o pobre rapaz, ainda mais lhe atiçava o desejo de estar com a sua alva e meiga Rosália. Posto que sua afeição pela cabocla estivesse quase de todo extinta, não sei por que ela exercia sobre seu espírito um poderoso e terrível ascendente, e ele ainda que com medo e repugnância mesmo, vinha sempre rojar-se aos pés dela. Dir-se-ia que ela tinha o poder de fascinar como a cobra.

Já havia quatro ou cinco dias, que Carlito não fazia uma visita à casa de Genoveva e não via Rosália, com medo de Jupira, que o espreitava lá de sua janelinha, ou lhe seguia a pista sutil e sorrateira como a jaguatirica. [1] Por fim não pôde mais ter-se, e rebelando-se resolutamente contra aquele aperreamento, em que vivia, encaminhou-se franca e impavidamente para a casa de Rosália.

– Não faltava mais nada! ia ele rosnando pelo caminho. – Eu ter medo daquela caboclinha, como se fosse mi­nha mãe ou minha senhora- moça!... nada! quer tomar-me à sua conta!... está enganada; – nem tão bobo sou eu, que me deixe alinhavar como o cacique, que ela matou... não me mete cucas... porventura ela é minha mulher para me proibir que eu esteja com a coitadinha da Rosália! ao menos ela não anda de faca e nem tem dentes de onça para morder a gente. Hei de ir vê-la, quer Jupira queira, quer não. Se quiser ver, veja; se não quiser, não me ande espiando.

Fazendo estas reflexões Carlito entrava em casa de Rosália muito ancho e senhor de si. Jupira o viu; sem mais demora meteu no seio a sua faquinha prateada, e com os olhos em chama e batendo os dentes como o javardo em furor saiu e correu para a casa de Genoveva. Era esta um pequeno ran­cho, cuja frente constava unicamente de uma sala com uma porta e uma janelinha. Nesta sala sentados em um banco se achavam Carlito e Rosália, enquanto a mãe descuidada lavava roupa na fonte do quintal. Jupira chegou sutilmente e susten­do a respiração para não ser pressentida, avizinhou-se à ja­nela e olhou para dentro. Enlaçados em um delicioso abraço os dois amantes beijavam-se em um beijo sem fim, e tal era o seu enlevo que não deram fé da chegada de Jupira. Esta mal deu com os olhos naquele interessante espetáculo, levou subitamente a mão ao coração, como se o sentisse atraves­sado por uma facada, abafou um grito, e ficou por um momento hirta, pálida, imóvel. Depois levou a mão ao seio e apalpou a faca, mas hesitou e abanando a cabeça:

– Não! não! – murmurou; – ainda não!.. mais tarde.

E deitou a correr para casa. Lá foi dar desabafo à vio­lência da dor e da raiva que a torturavam, e os mais atrozes planos de vingança lhe tumultuavam no espírito. Ter-lhe-ia sido fácil matá-los a ambos, mas isso não a satisfazia. Queria fazer Carlito sofrer muito e por muito tempo dores horrorosas do corpo e da alma, insultá-lo, esbofeteá-lo, cuspir-lhe no rosto, antes que morresse, e depois apunhalar-se sobre o seu cadáver. Entregue a um turbilhão de idéias, que se atropelavam em seu espírito, indecisa, arquejante, louca, ora percorria a casa a passos precipitados, ora se debruçava sobre o leito arran­cando soluços convulsos e chorando lágrimas de sangue.

Nesta terrível agitação a veio achar Quirino, que entra­va pela porta adentro. Ao vê-la com as feições transtorna­das, os olhos macerados e injetados de sangue, os seios ofe­gantes, o olhar torvo e desvairado, Quirino recuou de espanto.

– Meu Deus! – exclamou ele, – o que lhe terá acon­tecido, que a vejo tão alterada!

– Ah! o senhor está aí, moço...

– Desculpe-me, se está incomodada, eu vou-me embora.

– Incomodada!... não... não estou; mas... estou com uma raiva... disse a cabocla encrespando os punhos, e trincando os dentes.

– Raiva?!.. de quem?... será de mim, meu Deus!...

Jupira não sabia ocultar, nem disfarçar os tempestuosos transportes de sua alma ardente; sentia mesmo necessidade de desabafar a sua cólera, e foi dizendo tudo sem rebuço nem preâmbulos.

– Do senhor?! não; – replicou a cabocla; – é de um atrevido, de um malvado, que me desfeiteou...

– Quem foi esse atrevido?... diga, diga já, que quero ir castigá-lo neste instante...

A cabocla fitou em Quirino um olhar firme e penetrante, como quem queria devassar-lhe o fundo da alma, e pergun­tou-lhe:

– Moço!... o senhor me quer bem, mesmo como tantas vezes me tem dito?

– Ainda pergunta?!... não é possível querer-se mais bem do que eu lhe quero.

– Pois bem! é chegada a ocasião de mostrar, que é deveras que me quer bem.

– Sim, formosa Jupira?... quer dar-me esse gosto?... o que quer que eu faça?... fale... aqui estou às suas ordens como o mais humilde de seus escravos!... disse Quirino pon­do-se de joelhos aos pés da cabocla.

– Então está pronto a fazer o que eu mandar?...

– Pronto! pronto sempre, linda Jupira; não há impossível a que não me arroje por seu amor.

– Jura?

– Juro.

– Pois bem; escute; o senhor conhece o Carlito, não conhece?

– Se o conheço!... muito; desde criança.

– Pois saiba que foi ele, quem se atreveu a desfeitear-me.

– Deveras!.. o Carlito? aquele fedelho, aquele biltrezinho?... que atrevido!... vou já puxar-lhe as orelhas, e esfregá-lo a cachações.

– Arrancar-lhe o coração, e beber-lhe o sangue é o que eu queria... mas escute, moço; eu preciso dizer-lhe toda a verdade; eu queria muito bem àquele menino...

– Queria-lhe bem?... deveras, Jupira?... ah!... por que razão não me falou isso há mais tempo?

Quirino soltou um gemido abafado.

– Como, se nem eu mesmo sabia? replicou-lhe a moça; – empreguei bem mal o meu amor... mas não se aflija, moço; se era grande o amor, maior é o ódio que hoje lhe tenho. Tinha vontade de ver varado a facadas aquele mal­dito e pisá-lo debaixo dos pés... ah! se eu pudesse virar-me em onça para estrafegá-lo entre meus dentes e chupar-lhe todo o sangue do coração!... mas o senhor quer o meu amor?... quer que eu seja para sempre sua?...

– Ah! não me pergunte; para tê-la um só instante nos meus braços, eu daria mil vidas, que tivesse.

– Não é preciso que perca a vida; basta tirá-la a outro.

Quirino estremeceu e fez um gesto de horror; espantava-o ver em tão terna idade aquela fria ferocidade e sede de vingança.

– Tem medo, moço?... ah! pensei que era homem...

– Medo eu?... fale, Jupira; o que quer que eu faça?

– Pois não me entende?...

– Talvez não; fale claro, disse o mancebo, ainda duvidando do que estava ouvindo.

Jupira tirou tranqüilamente a faca que tinha no seio, e a apresentou a Quirino.

– Carlito me desfeiteou, me atraiçoou, e eu não tive e nem sei se terei ânimo de o matar... entretanto, quero que ele morra. Sou uma fraca mulher; o pulso do homem é mais firme e certeiro. Não pode morrer por minha mão, vá ao menos a minha faca beber-lhe o sangue.

Quirino olhava espantado para a cabocla sem saber que responder-lhe.

– Não tem ânimo?... disse ela resolutamente; então adeus, moço; não me apareça mais aqui...

– Mas, Jupira! – disse o mancebo hesitando – eu... não sei... matar uma pobre criança!... é uma barbarida­de... oh! isso nunca!

– Ah!... é assim que me quer bem? que me importa!... se o senhor não tem ânimo, não faltará quem o mate, e ele há de morrer mesmo, e eu nunca hei de ser sua.

– Nunca! ah! Jupira! Jupira! que palavra cruel! moça!... ah!... não me ponha a perder... eu perco o juízo!

– Vai, ou não?...

– Jupira...

– Eu juro que hei de ser sua, sua para sempre, moço.

– Jupira!...

– Hei de amá-lo tanto, com odeio a Carlito.

– Jupira! – ... ai!... eu perco a cabeça...

– Vá, vá; eu juro, que hei de ser sua; vá... e tome este beijo em penhor de que hei de cumprir a minha pa­lavra.

Jupira enlaçou o braço ao colo do mancebo, e imprimiu-lhe na boca seus lábios nacarados e ardentes. Aquele beijo, alucinou-o, exaltou até ao delírio a sua paixão; foi como um filtro sutil e fatal, que coou-lhe até o mais íntimo da alma, e nela vazou todo o ódio, ferocidade e sede de vingança de que a cabocla se achava possuída, acabando com toda a sua indecisão.

– Dá-me, dá-me essa faca!... exclamou Quirino, e, arrebatando a faca da mão de Jupira, saiu precipitadamente.

Notas[editar]

  1. Pequena onça; ou grande gato silvestre.