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Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/III/IX

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Na noite desse mesmo dia Quirino foi procurar Carlito e o convidou para uma pescaria em canoa no Rio Verde na manhã do dia seguinte, que era um domingo. Carlito, que muito gostava desse gênero de divertimento, no outro dia bem cedo já estava pronto à espera do companheiro, com seus anzóis preparados e algumas provisões de boca para passarem o dia no mato. Saíram ambos; a manhã estava magnífica; os passarinhos faziam ouvir pelos pomares a mais festiva algazarra; o sino da capela repicava alegremente derramando ecos sonoros ­aquelas aprazíveis devesas.

O Rio Verde colocando através dos vargedos, parecia uma luzente cobra de escamas de esmeralda, espreguiçando-se à luz do sol formoso das solidões. Pelas diversas veredas da colina viam-se diversos grupos de famílias camponesas com seus vestidos domingueiros de garridas cores, encaminhando-se para o seminário para ouvirem as missas e as práticas dos padres santos, que assim chamava a gente do sertão aos padres da congregação.

Carlito sentia o coração pular-lhe no peito cheio de vida, animação e alegria. Tinha acabado de assistir à missa matinal, onde estivera extasiado a contemplar e a trocar olhares expressivos com a meiga e formosa Rosália, e só essa lembrança era como um perfume, que o embevecia nas mais suaves emoções.

Não assim Quirino, que, com o espírito turbado por sombrios e sinistros pensamentos parecia um réprobo, que traz na fronte o selo da condenação eterna, e debalde se esforçava por ocultar a angustiosa agitação de sua alma. Encaminha­vam-se rio acima para um bonito lugar, chamado Olaria, onde o rio depois de atravessar em carreira pressurosa os mais risonhos chapadões, refletindo à flor do campo todo o esplendor daquele céu deslumbrante, como para descansar de suas correrias pelas campinas vem espreguiçar-se sereno em um extenso e profundo remanso, à sombra de duas alas de fron­dentes e viçosos capões.

Chegados à beira do rio os dois pescadores desprenderam uma pequena canoa, que ali estava amarrada com um cipó a um tronco da margem. Quirino tomou na praia uma grande e pesada pedra, e a colocou dentro da canoa.

– Para que essa pedra? – perguntou Carlito.

– Esta canoinha é muito doida, Carlito; esta pedra é para fazê-la calar mais um pouco na água, e não virar com agente.

Soltaram a canoa e a tangeram rio abaixo pelo remanso de que falamos. Carlito preparou o seu anzol e o lançou na água. Estava em pé no meio da canoa, com a vara em punho e os olhos fitos no rio. Por detrás dele Quirino assentado à popa manejava o remo. Quem os visse então, havia de notar o extremo antagonismo que havia na expressão daquelas duas fisionomias. Carlito com olhar tranqüilo, que revelava a placidez de sua alma tão serena como a torrente mansa sobre que resvalava, tinha a atenção presa aos movimentos da linha de seu anzol, e um meio sorriso como de uma satisfação íntima lhe pairava pelos lábios. Quirino com os olhos torvos e espantados olhava com inquietação ora para uma ora para outra margem; ora apalpava a faca e fitava olhar sinistro e desvairado sobre o adolescente que estava diante dele, ora deixava por instantes cair a fronte sobre o peito em profundo e sombrio abatimento. Seu espírito debatia-se entre os estertores da mais violenta e angustiosa luta.

Aquele mocinho tão novo, tão esbelto e garboso, com a alma tão serena, tão cheia de risonhas visões e doces sonhos de esperança; aquela criança descuidosa, que nenhum mal lhe fizera, que a ele se abandonava com tão sincera e ingênua confiança, ter de cair vítima do seu punhal, ir servir de pasto a esses mesmos peixes que procurava atrair ao seu anzol, e com que esperava regalar-se!... O coração do mancebo fraqueava, e tinha ímpetos de arrojar ao rio a faca que lhe dera Jupira, e dizer ao seu companheiro: – fujamos; Carlito, fujamos; um grande perigo aqui nos ameaça!

Mas para logo surgia ante o seu espírito a linda e voluptuosa imagem de Jupira, que como o anjo do mal conjurava todos aqueles escrupulosos impulsos.

O beijo de fogo, que lhe dera, ardia-lhe ainda nos lábios, e lhe fervia no coração como um filtro peçonhento que lhe queimava o sangue, e lhe escaldava o cérebro em delírios de volúpia. – Oh! pensava ele ainda contemplando com olhos cheios de inveja e de ciúme as esbeltas e bem talhadas formas e o encantador semblante do imberbe adolescente; – oh! este menino!... este menino!... e ela o amava!... por mais que diga que o odeia, esse ódio não pode durar muito... e no fim de contas, se eu o poupar... quem sabe... será ele o feliz amante, que há de vir a gozar de todos aqueles mimos, que eu há tanto tempo cobiço com todo o ardor de minha alma!... oh! não? mil vezes não! já agora, Jupira, ainda que te arrependas mil vezes, ainda que venhas me pedir de joelhos por ele, tem de morrer! é preciso absolutamente, que eu te livre a ti e a mim desse rapazinho que estorva a nossa felicidade... eia! ânimo!... antes que se arrependa...

E a canoa vinha suavemente resvalando à mercê da torrente serena; Carlito, com semblante plácido e risonho, em pé com a vara na mão, refletindo na água límpida do rio os contornos de sua gentil figura, cismava nos sorrisos e beijos de Rosália, à espera que o peixe lhe viesse morder no anzol, e por detrás dele hirto, medonho, sombrio, o vulto de Quirino com a faca em punho se ia erguendo sinistra e vagarosamente.