Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/III/X

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Jupira passara a noite entre penosas insônias e sonhos pavorosos, entregue à mais horrível agitação. Apenas adormecia via a figura de Quirino com os olhos torvos e abrasados, hirtos os cabelos, e nos lábios um feroz sorriso de triunfo, com as mãos e o punhal banhados no sangue de Carlito, vir correndo a ela pedir-lhe o cumprimento de suas promessas. Outras vezes era Carlito que lhe aparecia pálido, triste, aba­tido, com um punhal cravado no coração, e que com voz do­rida vinha acabrunhá-la com o peso de maldições e terríveis imprecações. Mil outras hediondas visões se atropelavam em seu espírito, e os remorsos torturavam-lhe o coração.

Mal despontou a primeira barra do dia que ela ansiosamente esperava, ergueu-se e quis sair; mas seu pai tinha o costume de guardar cuidadosamente todas as chaves das portas de fora, e foi-lhe forçoso esperar, na mais angustiosa impaciência, que despertasse e se levantasse. Apenas pôde sair, foi direta correndo a casa onde Quirino costumava hospedar-se. Já não estava em casa; soube que tinha saído ao romper do dia.

– Ai de mim! – disse ela na mais extrema aflição;– Deus sabe o que terá acontecido... meu Deus!... meu Deus!... será já tarde!

Dali correu imediatamente ao seminário, onde Carlito morava. Um criado disse que tinha saído muito cedo, e que não sabia para onde tinha ido.

– Ai! meu Deus! meu Deus! que será dele!... desgra­çada de mim! – saiu a menina exclamando na maior conster­nação, e dali se foi sempre a correr a casa de Genoveva. Esta e sua filha acabavam de chegar da missa, e perguntando-lhes Jupira se não tinham visto Carlito.

– Esteve conosco ainda agora, lhe disseram, na missa da madrugada, e nos disse que dali ia para o Rio Verde passar o dia e pescar com o sr. Quirino, que estava junto com ele.

Com esta notícia a aflição e angústia da rapariga subiram ao último ponto, cobriu-se de palidez mortal, cambaleou, e foi preciso encostar-se à parede para não ir ao chão.

– Para que banda foram eles, perguntou ela ainda com ar tão inquieto e perturbado que surpreendeu as duas mu­lheres.

– Foram para a banda da Olaria, – respondeu Genoveva; – mas o que tens, minha filha, que estás tão assusta­da?... aconteceu alguma coisa?...

Sem nada responder, com grande espanto das duas mulheres, Jupira de um salto pôs-se da parte de fora, e lá se foi a correr para o lado da Olaria, que distava dali quase meia légua.

Dirigiu-se para o remanso, onde esperava encontrá-los, penetrou pela estreita ourela de mato que bordeja o rio na­quela paragem, e chegou à borda esbaforida, desgrenhada e torva como uma onça malferida. Lançou os olhos pelo rio acima, e viu a canoa boiando serena pela torrente abaixo, em meio dela Carlito em pé com seu anzol na mão pescando tranqüilamente, e por detrás dele Quirino com a faca alça­da... Súbita vertigem cobriu-lhe os olhos de uma nuvem cor de sangue, e antes que ela pudesse soltar um grito, a faca tinha descido três vezes sobre as costas da infeliz vítima, que sem soltar um ai caiu de bruços no fundo da canoa golfando sangue aos borbotões.

Através da caligem que lhe turvava os olhos, Jupira viu aquela horrível cena como em um pesadelo, bateu palmas, e deu um grito, antes um uivo horroroso, com os braços em tremor convulsivo estendidos para o céu.

Quirino assustado olhou rapidamente para aquele lado; mas depois que reconheceu Jupira:

– Está satisfeita? – bradou de longe mostrando a faca ensangüentada, e apontando para o fundo da canoa, onde jazia o cadáver de Carlito estrebuchando e vomitando sangue.

– Bravo! bravo!.. muito bem! gritou a cabocla, com um sorriso de infernal ironia. – Agora venha! venha de­pressa receber o prêmio...

– Espera lá ainda, minha Jupira; preciso dar sepultura a este desgraçado...

Falando assim, Quirino desatava da cintura uma forte e comprida cinta de duas voltas, que trazia de propósito, destinada a atar ao pescoço de Carlito a pedra, que pusera na canoa, e atirá-lo ao fundo do rio.

– Ainda não, moço!... espera.... traze-o cá... quero vê-lo ainda uma vez... coitado... era tão bonitinho!...

Quirino, ainda que um tanto receoso de qualquer fatal contingência, não ousou replicar-lhe; aquela mulher exercia um ascendente irresistível sobre aqueles que a amavam.– Quirino tocou a canoa para a margem.

Jupira contemplou muda, por alguns instantes, o cadáver de seu infeliz amante com os braços cruzados, os olhos em brasa, engolindo lágrimas e soluços, que ninguém poderia dizer se eram de furor ou de angústia, de dó ou de terror, de remorso ou de desesperação, porque era de tudo ao mesmo tempo.

– Está satisfeita comigo? perguntou o mancebo olhan­do para ela com terror e desconfiança.

– Oh! muito! muito! – respondeu-lhe com um sorriso satânico, – agora pode entregar-me a minha faca.

Quirino assombrado restituiu-lhe a faca ensangüentada.

– Bem! podemos agora dar sepultura a este pobrezinho, disse apontando para o meio do rio, e entrando para a canoa.

Quirino tangeu-a para o meio do rio.

– Olha, moço! continuou ela com os olhos fitos no cadáver; – não era tão lindo o meu Carlito!... oh! muito!... muito lindo!... quero dar-lhe ainda um beijo... não tenha ciúmes, moço... é um derradeiro adeus.

Jupira abaixou-se sobre o cadáver que estava de bruços, afogado em sangue, voltou-o de costas, e cobriu-lhe os lábios e as faces de ardentes e repetidos beijos. Transido de assom­bro e de terror, Quirino contemplava aquela cena.

Quando ela levantou-se com os lábios, as faces e o colo manchados no sangue de Carlito, estava hedionda!... Quirino horrorizado estava quase a lançar-se ao rio. Mas ela ime­diatamente ameigando a voz, e abrindo-lhe os braços:

– Agora sou tua, – disse, – abraça-me!

Quirino arrojou-se aos braços dela com o frenesi de uma paixão louca, que o levara a praticar o mais vil e hediondo assassinato. Mas ao mesmo tempo que a ia apertando contra o peito, a faca de Jupira lhe ia atravessando o coração, e nas vascas da morte ele ouvia uma voz rouca e sinistra rosnar-lhe ao ouvido estas palavras:

– Morre também, vil matador! eu não te quero...


Dois dias depois encontrou-se boiando, já a uma légua de distância, uma canoa sem ninguém que a governasse, mas tripulada por uma multidão de urubus, que disputavam entre si os restos de dois cadávares.

Quanto a Jupira, sumiu-se, e nunca mais se soube ao certo o que foi feito dela.

Passados tempos, uns caçadores encontraram em uma grota no seio de uma mata profunda o esqueleto de uma mulher pendurado a uma árvore por um cipó. Presume-se com muita probabilidade que era Jupira que se havia enforcado.