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Historia da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal/V

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LIVRO V



Providencias da corte portuguesa para combater as vantagens obtidas pelos christãos-novos. Revocação do arcebispo do Funchal. Intervenção efficaz e directa de Carlos V no negocio da Inquisição. Tentativa de assassínio contra Duarte da Paz. — Questões vergonhosas entre os conversos e o nuncio na occasião da saída deste de Portugal. Effeitos dessas questões em Roma. Triumpho completo do fanatismo. Bulla de 23 de maio de 1536 estabelecendo definitivamente a Inquisição. Primeiros actos desta. Monitorio do bispo de Ceuta, inquisidor-mór. Procedimento moderado do novo tribunal. — Diligencias dos agentes dos conversos em Roma. O papa começa a mostrar-se-lhes favoravel. — Enviatura do nuncio Capodiferro, e objecto da sua missão. Tendencias da curia romana. Manifestação dessas tendencias no breve de 31 de agosto de 1537. Considerações politicas que as atenuavam. — Procedimento do nuncio. — Enviatura de D. Pedro de Mascarenhas á corte pontifícia. — Escriptos blasphemos afixados publicamente em Lisboa, e consequencias desse facto. O infante D. Henrique substituído ao bispo de Ceuta no cargo de inquisidor-mór. — Negociações de D. Pedro de Mascarenhas em Roma. Caracter e dotes do novo embaixador. Corrupções na cúria romana. — Mudanças no tribunal da fé. — Hostilidades entre o infante e Capodiferro. Processo de Ayres-Vaz. Lucta com o nuncio. — Elrei exige a revogação deste.—Discussões violentas e protrahidas entre o embaixador português e o papa, tanto ácerca da Inquisição como do nuncio. Accordos vantajosos e transtornos inesperados. D. Pedro não podendo obstar ás providencias favoraveis aos conversos, obtem, comtudo, a revocação de Capodiferro. — Bulla declaratória de 4 de outubro de 1539.
 

Ao passo que chegava a Portugal a bulia de 12 de outubro, chegavam tambem as cartas de Santiquatro e de D. Henrique de Meneses. D. João iii via-se a um tempo menoscabado pela corte de Roma, contrariado na sua paixão dominante, a perseguição dos judeus, trahido pelo arcebispo do Funchal, e ameaçado no seu orgulho pela possibilidade de ser elevado ao cardinalato, e de hombreiar com o irmão o proprio homem que o trahira. Eram motivos sobejos para despertar toda a energia do príncipe, aliás instigado, no que tocava á Inquisição, pelos clamores dos fanaticos e hypocritas, que exerciam sobre o seu espirito triste predominio. Na questão do cardinalato importava primeiro que tudo fazer saír de Roma D. Martinho, revocando-o á corte, e elevando assim uma barreira insuperavel ás suas ambições. Pelo que, porém, respeitava aos negocios da Inquisição, era necessario contrapor ás sympathias que os conversos haviam conciliado na curia, ás poderosas protecções que tinham comprado e ás convicções do pontifice sobre a justiça da sua causa uma influencia que, sobrepujando todos esses elementos de resistencia, os vencesse e inutilisasse. A's intrigas e astucias diplomaticas estava provado que podiam os christãos-novos oppor outras intrigas e astucias, ás corrupções outras corrupções e á mascara do zelo religioso a realidade das doutrinas evangelicas de tolerancia e de humanidade. O unico arbitrio que se offerecia para achar uma alavanca poderosa, capaz de alluir e derribar esse conjuncto de obstaculos, era fazer intervir seriamente na questão a omnipotente vontade de Carlos v. Como vimos, já se havia recorrido a este arbitrio, mas frouxamente e com infeliz successo. Ou os christãos-novos tinham sabido dobrar o animo do embaixador hespanhol em Roma, ou o proprio imperador não servira nesse ponto o cunhado com sincera vontade. Todavia, este meio era aquelle em que sobretudo insistia desde muito D. Henrique de Meneses que o proprio arcebispo do Funchal, de boa ou de má vontade, reconhecera como o unico efficaz, e que, segundo parece, já anteriormente se havia resolvido adoptar. A impotência de todos os outros recursos, provada agora de um modo tão significativo, aconselhava, portanto, o governo português a seguir activamente aquelle caminho. Era uma das condições indispensaveis para o facilitar a retirada de Roma de D. Martinho, de um agente desleal, consideração que reforçava os outros motivos, se não mais graves, mais urgentes, que havia para a sua exoneração. Com o pretexto de se obterem informações precisas sobre o estado dos negocios da Inquisição, expediram-se ordens terminantes para voltar pela posta a Lisboa o arcebispo, o qual effectivamente saiu de Roma no meiado de dezembro[1]. Porventura elle não teria obedecido, se não visse transtornados os seus planos pelo cardeal Pucci, o qual, escrevendo nessa conjunctura a D. João iii, lhe dava , gracejando, a certeza de que, na volta, D. Martinho lhe beijaria a mão com capello de cor verde e não de cor escarlate[2]. Pucci descubrira que as esperanças do arcebispo se fundavam numa promessa escripta de Clemente vii, pela qual se lhe assegurava a promoção ao cardinalato, com a obrigação de partir para a Abyssinia como legado pontificio, obrigação a que elle tencionava esquivarse com quaesquer pretextos[3]. Acompanhavam a demissão de D. Martinho instrucções a D. Henrique para se dirigir a Napoles aonde Carlos v havia chegado. Tinha D. Henrique de tractar ahi com o imperador os negocios da Inquisição portuguesa, ácerca dos quaes o principe castelhano havia sido prevenido e instado. O embaixador juncto á corte de Castella, Alvaro Mendes de Vasconcellos recebera novas recommendações para ajudar naquelle empenho o seu collega de Roma, devendo ambos junctos seguir Carlos v de Napoles até áquella cidade, aproveitando todas as conjuncturas de adiantar a pretensão, a qual, para evitar embaraços, se reduzia a obter do papa que, tanto ácerca do perdão como da organisação definitiva do tribunal da fé, se estatuisse o mesmo que se estabelecera em Castella. Nisto estava de accordo o imperador, promettendo ao cunhado fazer todas as diligencias para se conseguir o fim proposto, o que esperava com inteira confiança depois da demissão de D. Martinho, de cuja deslealdade, bem como de tudo o mais que occorrera, estava plenamente instruído[4]. Effectivamente, em resultado de varias conferencias entre o secretario d'estado, Covos, e os dous ministros portugueses, ordenou-se ao conde de Cifuentes, embaixador em Roma, pedisse preliminarmente ao papa a revogação da bulla de 12 de outubro, ao passo que Carlos v escrevia directamente a Pier Ludovico, filho do papa, exigindo delle influísse naquella revogação. A's representações, porém, de Cifuentes replicou o pontifice que, se na materia da Inquisição estava prompto a fazer tudo quanto aprouvesse aos dous príncipes, não o estava na do perdão. Além de insistir nas razões geraes que o leitor já conhece, mostrava-se mais que tudo queixoso da desconsideração com que o governo português tractara as concessões e propostas da curia romana, não respondendo opportunamente cousa alguma, ao passo que os seus agentes se mostravam altivos e descomedidos. A resposta de Pier Ludovico foi analoga á de seu pae; mas dava esperanças de que finalmente o papa faria tudo quanto fosse possivel para contentar os dous monarchas. Antevendo que Carlos v pouco se demoraria em Roma, Alvaro Mendes e D. Henrique de Meneses, animados com aquellas esperanças, souberam convencer o secretario Covos de quanto importava que de Napoles se fizessem todas as diligencias possíveis para mover o animo de Paulo iii, de modo que se chegasse a uma conclusão definitiva nos primeiros dias da residencia do imperador na capital do orbe catholico[5]. Convieram em que, para obter semelhante fim, Carlos v falasse ao nuncio Paulo Vergerio sobre o assumpto com efficacia tal, que este não podesse recusar associar-se aos seus designios. Assim se fez. Numa longa conferencia com os ministros portugueses e o secretario Covos, o nuncio, depois de examinar o estado da questão e os documentos que lhe diziam respeito, comprometeu-se a intervir nella para com a sua corte. Entretanto, o imperador dirigia ao papa uma carta, que devia ser-lhe entregue por Cifuentes, a quem, aliás, se recommendava fizesse a favor daquelle empenho as demonstrações mais energicas. Desse modo se esperava ficassem aplanadas as maiores difficuldades dentro em breve tempo [6].

Emquanto estas cousas se passavam em Napoles, sobrevinha inopinadamente em Roma uma singular coincidencia. Certo dia, em que Duarte da Paz acabava de estar com o papa, recebeu por mão de um aggressor desconhecido quatorze punhaladas, das quaes se acreditou ficaria morto. O precavido converso nunca, porém, se esquecera de que vivia em Roma, e debaixo das vestiduras trazia armas de fina tempera. O crime, como é fácil de imaginar, attribuiu-se a influencias occultas, e o proprio Duarte da Paz, accusando o rei de Portugal e os seus ministros de um assassinio premeditado, pretendia prová-lo em juizo[7]. Todavia, mezes depois, respondendo a uma carta de Santiquatro, em que se alludia a este attentado e á indignação do pontífice, por ter sido commettido quasi diante dos seus olhos, D João iii desculpava-se, attribuindo o delicto a ama vingança particular. Estava persuadido de que, se o crime fosse practicado por ordem sua, o houvera sido de modo que a victima não escaparia[8]. O fanatismo gloriava-se de poder contar com a firmeza do braço dos proprios sicarios, quando julgasse conveniente empregar na execução dos seus designios o ferro do assassino.

O temor e os remorsos deviam dilacerar o coração de Duarte da Paz, vendo que a morte era a recompensa final que lhe reservavam pelas suas villanias. Não se achava, portanto, na situação mais propria de espirito para conservar cordura e audacia durante a nova lucta que se preparava, e na qual, aliás, tinha de entrar com forçada lealdade, suppondo que as provas de odio mortal que recebera vinham d'elrei. Em todo o caso, nas proprias apprehensões achava, digamos assim, um adversario que lhe apoucava a energia. Por outro lado o imperador, ao chegar a Roma, embora alli o levassem negocios de summa gravidade e houvesse de demorar-se apenas treze dias[9], não se esqueceu das suas promessas. Tinham-no convencido de que os fundamentos para haver Inquisição tanto em Castella como Portugal eram identicos, e de que, estabelecendo-a neste paiz com as mesmas condições da de Castella, se faria uma cousa conveniente e justa[10]. Ainda, porém, admittmdo a legitimidade da intolerancia, nem assim se dava semelhança. Em Castella houvera, ao menos, lealdade: longe de se obrigarem directamente os judeus a receberem o baptismo, tinham-se expulsado os que preferiam o exilio ao nome de renegados, e não se trahira a palavra real asselada pela fé de diplomas solemnes. Vendo a questão a uma luz falsa, e tendo vendido a sua influencia ao cunhado a troco de soccorros maritimos de que carecia[11], Carlos v insistiu por tal maneira a favor das pretensões da corte portuguesa, que o papa, colocado numa situação melindrosa, e até certo ponto dependente, para com elle, viu-se constrangido a adoptar uma politica diversa da que inspirara a resolução de 12 de outubro, cedendo, a despeito da propria consciência, aos furores da intolerância[12].

Mas os peiores adversanos da causa dos christãos-novos eram, acaso, naquella conjunctura, elles proprios; eram-no as avaras propensões de uma raça envilecida pela oppressão e pelo desprezo. O leitor está por certo lembrado das offertas pecuniarias feitas pelos chefes da gente hebréa, em virtude das quaes se obrigavam ao pagamento de quantias mais ou menos avultadas, conforme o grau de favor que encontrassem nas resoluções pontificias ácerca das materias da Inquisição. Ou fosse que se esperasse pelos effeitos das novas intrigas que se urdiam, ou fosse pela impressão que produziu o ultimo perdão, é certo que as perseguições tiveram um termo. Elles mesmos confessavam os beneficos resultados da bulla de 12 de outubro. Tendo de partir para Roma, aonde era chamado, o bispo de Sinigaglia exigiu, portanto, o cumprimento dos contractos occultos e simoniacos em que elle proprio tinha intervindo, e das promessas que Duarte da Paz fizera na curia, anteriormente. Com a previsão propria de um agente da corte mais astuta da Europa, o nuncio foi differindo a publicação e a intimação da nova bulla até concluir aquelle negocio. Numa carta que della nos resta, dirigida a pessoa interessada nestas transacções ignobeis (talvez o filho de Paulo iii) nos ficaram vestigios profundos de alguns dos factos que nas trevas acompanhavam as peripecias daquelle drama, e que, se fossem todos conhecidos, explicariam as que parecem inexplicaveis [13]. Consta dessa carta que ás exigencias do nuncio os christãos-novos de Lisboa responderam que estavam promptos a pagarem aquillo que por escripto se haviam obrigado; mas que recusavam cumprir as promessas de Duarte da Paz. As instancias, as ameaças, feitas de modo que ficassem as apparencias salvas[14], não poderam fazer-lhes mudar de resolução. Diziam que lhes faltavam os recursos; que o seu agente procedera sem auctorisação; que quizera indispô-los com o papa[15], promettendo cousas acima das possibilidades dos seus committentes. Invectivavam acremente Duarte da Paz, affirmando que os tinha roubado, do que eram prova quatro mil ducados que mettera no banco em Roma, os quaes pediam a sua sanctidade mandasse alevantar, porque delles lhe faziam presente. Replicava Sinigaglia, defendendo o procurador dos conversos, e ponderando-lhes que, se fosse verdade o que affirmavam, sería isso mais uma razão para se mostrarem bizarros, baldando-lhe por tal modo as damnadas tenções. Lembrava-lhes que o pontifice se julgaria enganado[16], vendo-os ficar satisfeitos com a bulla e recusar o preço della; que, presupposto não se haver por isso de torcer a justiça da sé apostolica, todavia era possivel virem elles a achar de futuro certa frieza no papa e nas pessoas influentes da curia[17]. Propunha-lhes por fim que representassem ao summo pontifice a insufficiencia dos proprios recursos; mas nem sequer este partido acceitaram. Partindo para a corte, que se achava em Évora, Sinigaglia ventilou a materia com os christãos-novos alli residentes; mas achou da parte delles as mesmas repulsas. Vendo o espirito que predominava entre os commerciantes de origem hebréa, com quem especialmente tractara, recorreu a tres letrados que exerciam poderosa influencia entre os conversos, e que por elles eram consultados em tudo o que tocava á lucta com a Inquisição. A estes procurou atemorisar o nuncio com a intervenção de Carlos v, de que já havia noticia. Concordando em que as pretensões de Marco della Ruvere eram justas, elles prometteram convencer os seus clientes da necessidade de vir a um accordo, o qual se tomaria numa conferencia celebrada longe da corte, para o que foi escolhida Santarem. Mas todos estes planos se transtornaram. Emquanto o nuncio tractava de obter letras de cambio pela somma de cinco mil escudos, que os christãos-novos estavam compromettidos a pagar, mestre Jorge de Evora, homem de proverbial avareza[18], que tinha entrada com elrei e que era um dos chefes dos conversos, ou revelou o que se passava, ou, colhido de subito, confessou o que, talvez, elrei descubrira por diversa maneira. A colera de D. João iii subiu ao maior auge. Os tres jurisconsultos que haviam aconselhado o accordo com o nuncio foram obrigados a persuadir o contrario aos seus clientes, tarefa mais facil, dadas as propensões destes. Pro curava-se ao mesmo tempo assustar os christãos-novos com a perspectiva de se renovarem as scenas horriveis de 1506; e da propria boca do cardeal infante D. Affonso se ouviu o brutal gracejo de que, dando dinheiro á corte de Roma, ficariam os conversos habilitados para pedir soccorro ao papa no primeiro tumulto popular que contra elles houvesse[19]. Assim se empregavam todos os meios para que o dinheiro dispendido com mão larga não servisse, naquella conjunctura tão propicia, de obstaculo, talvez insuperavel, aos esforços de Carlos v a favor da Inquisição portuguesa.

Escrevendo para Roma de Braga, onde parara alguns dias na sua volta a Italia, Marco della Ruvere expunha estes successos, o estado dos negocios, e o que havia a fazer. Tinha destinado ir por Flandres, onde esperaria a resposta dos chefes dos conversos, annuindo elles ao pagamento de todas as quantias. Se não o fizessem, era que estavam seguros de outra parte quanto ao futuro, aliás sería preciso suppô-los dementes[20]. A ida a Flandres tinha por objecto falar com Diogo Mendes, o mais rico e respeitado hebreu português, e com a viuva de seu irmão Francisco Mendes, a qual subministrara já a maior quantia para a solução dos cinco mil escudos recebidos. Convinha, portanto, que se esperasse pela sua chegada a Roma sem se tomar nenhum arbitrio novo; porque, se a obstinação dos conversos continuasse, dependendo tudo directa ou indirectamente do papa, cumpria provar-lhes que eram uns loucos se á força de dinheiro haviam procurado assegurar-se de quem não podia salvá-los, em vez de o dar a quem podia. «Então — dizia o nuncio — justa e sanctamente se poderia tirar a mascara[21]». Era de opinião que, se o pontifice désse mostras de querer admittir a Inquisição com o rigor com que se pedia, acabariam todas as hesitações e repugnancias. Desconfiava, por outra parte, Marco della Ruvere que estivessem á espera dos resultados da ida do imperador a Roma, supposto o que, não mudando a politica da curia por esse facto, pagariam promptamente. No que respeitava a Duarte da Paz, advertia que o mais que se podia esperar era que lhe arbitrassem um ordenado fixo, e isto pelas instancias delle nuncio, sem as quaes já o teriam demittido de seu procurador, pelos muitos escandalos que lhes havia dado. Era necessario que elle procedesse honestamente e se abstivesse de excessivas despesas; porque já lhes tinha gasto dez mil escudos. Lembrava que se o agente era largo no prometter, os constituintes eram parcos no cumprir, e que em Roma não deviam nestes negocios fiar-se em promessas vocaes, mas exigi-las por escripto. Pelo que pertencia á execução da bulla de 12 de outubro, accrescentava que varios conversos tinham sollicitado do cardeal infante D. Affonso a sua notificação definitiva aos prelados; mas o infante a havia restituído sem a fazer notificar, por insinuações d'elrei seu irmão, segundo se dizia; que então tinham recorrido a elle nuncio para a mandar, emfim, publicar solemnemente; que, vendo a estreiteza em que se achavam, aproveitara o ensejo para se obrigar a abrirem as bolças, respondendo-lhes que não lhe parecia prudente dar esse passo decisivo, accendendo com elle ainda mais a colera d'elrei, mas que, desempenhando a palavra do seu procurador, e pagando tudo, poderiam mandar por um expresso supplicar a sua sanctidade ordenasse a prompta notificação daquelle importante diploma ; que, além deste, lhes suggerira outro alvitre, sempre supposta a base do prévio pagamento : era enviar a cada bispo transumpto authentico do processo para a publicação da bulla, e escrever elle nuncio ao rei, dizendo-lhe que, tendo sabido como prohibira ao cardeal infante fazer aquella publicação, do mesmo modo que já obstara a que se fizesse pela nunciatura, não podia deixar de communicar isso ao papa, a fim de este dar as providencias. De tal modo, não haveria motivo para elrei os accusar. Os que tractavam do assumpto em Braga approvaram este ultimo conselho, rogando-lhe que não escrevesse para Roma até o fim de fevereiro, para terem tempo de tractar com os chefes dos conversos, e virem a um accordo sobre o negocio fundamental, o do dinheiro. Não se cumpriram, porém, estas bellas promessas, e Marco della Ruvere, perdidas já as esperanças, remettia a 1 de março apenas as letras dos cinco mil escudos, mesquinho resultado de trafico tão indecente[22].

Assim, o excessivo apego ás riquezas, que sempre distinguiu a raça hebréa, ía em auxilio dos esforços que se empregavam para a esmagar. Alvaro Mendes e Santiquatro tinham chegado a ponto de prometter dinheiro ao proprio papa, promessas que se não cumpriram depois de obtida a Inquisição, mas que Pauio iii teve o brio de não recordar[23]. No meio da immensa corrupção daquelle tempo, só o ouro derramado com mãos largas poderia contrastar na curia romana a conveniencia de satisfazer os desejos de Carlos v, tão energicamente manifestados. Imagine-se, porém, qual seria o effeito da carta de Sinigaglia em animos pervertidos. A primeira vantagem que obtiveram os adversados dos christãos-novos, a pedido do imperador, foi a exoneração do cardeal Ghinucci de membro da juncta ou commissão a cujo cargo estava consultar sobre a longa e variada contenda da Inquisição, sendo substituído por Santiquatro, que, protector declarado, e a bem dizer official, de D. João iii, vinha a ser alli ao mesmo tempo juiz e parte[24]. Não tendo de luctar com Ghinucci, que sempre se mostrara favoravel aos conversos, o habil Pucci soube em breve modificar as idéas de Simonetta, que, tempos depois, confessava ter-se deixado illudir nesta conjunctura[25]. Ao mesmo tempo, Alvaro Mendes, que ficara em Roma depois da saída do imperador, continuava a insistir com elle por cartas para que recommendasse a rapida conclusão do negocio[26]. Era impossivel resistir a tal conjunctura de incentivos. A 23 de maio expediu-se uma bulla, pela qual se instituia definitivamente a Inquisição em Portugal, e virtualmente se annullava nos seus effeitos a de 12 de outubro do anno anterior, sem todavia a offender na apparencia. Por ella se nomeiavam inquisidores geraes os bispos de Coimbra, Lamego e Ceuta, aos quaes seria adjuncto outro bispo, frade ou clerigo constituido em dignidade e doutor em theologia ou em canones, escolhido por elrei. Eram estes encarregados de proceder contra todos os que houvessem delinquido em materias de crença, depois do ultimo perdão, e contra quem quer que os seguisse, protegesse ou advogrsse a sua causa, publica ou secretamente, não sendo dos que o haviam feito em virtude do breve de 20 de julho de 1535, e em harmonia com as suas disposições. Resalvava-se, até certo ponto, a jurisdicção dos bispos, auctorisando-os a intervirem nos processos da Inquisição, quando se tractasse de alguma das respectivas ovelhas, ainda que disso se houvesse abstido no começo da causa. Ordenava-se que, durante os primeiros tres annos depois da publicação desta bulla, se adoptassem as formulas de processo civilmente usadas para os crimes de furto e homicidio, seguindo-se tão sómente d'ahi ávante os estylos da Inquisição. Exceptuavam-se, todavia, os delictos perpretrados dentro dos mesmos tres annos, ácerca dos quaes continuaria a subsistir o processo civil. A faculdade concedida aos ordinários de tomarem conhecimento dos actos dos inquisidores era compensada com ficarem estes habilitados para fazerem o mesmo nas causas de heresia intentadas pelos bispos. Durante os primeiros dez annos, os bens dos condemnados ao ultimo supplicio deviam passar aos seus herdeiros mais proximos, ou aos immediatos, se aquelles fossem inhabeis para succeder, e não haveria confiscos. Os inquisidores ficavam revestidos do poder de nomeiarem procurador fiscal, notarios e agentes seculares ou ecclesiasticos, sem dependencia dos respectivos prelados; de fazerem exauctorar os criminosos, sendo clerigos de ordens sacras, por qualquer bispo ajudado por dous abbades[27], ou por outros individuos revestidos de dignidades ecclesiasticas, relaxando depois os culpados aos tribunaes seculares; de removerem todas as resistências com os meios canonicos; de receberem a abjuração dos réus não relapsos e de os admittirem ao grémio da igreja sem dependencia da intervenção dos ordinarios; de exercerem, em summa, todos os actos pertencentes por direito ao ministerio de inquisidores, delegando os seus poderes, com as devidas limitações, em quaesquer sacerdotes, bachareis em theologia, em canones ou em direito e de idade de trinta annos, pelo menos, quando não fossem pessoas revestidas de alguma dignidade ecclesiastica, ficando todos estes ministros e agentes, sem excepção, sujeitos á jurisdicção dos inquisidores pelos delictos que commetessem no desempenho do seu cargo. Creava-se um conselho geral nomeiado pelo inquisidor-mór, e regulava-se o systema das appelações, que deviam subir dos inquisidores delegados para o inquisidor-mór e deste para o conselho. Simulava-se, até certo ponto, o desejo de proteger os christãos-novos, declarando-se nullas e de nenhum effeito quaesquer letras apostolicas ou leis civis que os mandassem considerar a todos como pessoas poderosas para se lhes não revelarem, quando réus, os nomes dos denunciantes e das testemunhas, devendo-se manter ácerca delles a distincção de direito commum entre poderosos e não poderosos, revelando-se a estes ultimos os nomes dos seus accusadores e dos que deposessem contra elles, para poderem impugná-los e defender-se. A bulla terminava abrogando todos os privilegios e resoluções pontificias que obstassem á sua execução[28].

Apesar de ser expedida a 23 de maio, e das instancias que faziam os agentes de D. João iii e de Carlos v, a bulla da Inquisição só se chegou a enviar nos meiados de julho[29], provavelmente pelos embaraços que os numerosos protectores dos christãos-novos em Roma lhe deviam suscitar. A final, D. Henrique de Meneses, que, como vimos, havia muito que insistia na sua exoneração, regressou a Portugal, trazendo comsigo o resultado definitivo de uma negociação que tantas fadigas e desgostos lhe causara. Terminada na chancellaria romana a expedição da bulla, Santiquatro escrevera a elrei nos principios de junho, explicando algumas das provisões della, e manifestando-lhe o pensamento e intenções do papa naquella concessão. Na verdade, Paulo iii creava quatro inquisidores-móres, mas com o intuito de que só exercesse o cargo Fr. Diogo da Silva, bispo de Ceuta, individuo que não fazia temer aos conversos as injustiças e violencias, que aliás esperavam do bispo de Lamego, o qual D. João iii insinuara no anno anterior para aquelle cargo, e cujo nome se incluira na bulla com o do bispo de Coimbra por simples formalidade e para não o vexar com uma exclusão offensiva[30]. Alvaro Mendes e D. Henrique de Meneses tinham-se compromettido a isso com o papa em nome d'elrei. O cardeal recommendava a este a moderação, sobretudo ácerca daquelles que haviam sido violentados a receber o baptismo, e aconselhava-lhe que se contentasse por emquanto do que se lhe [30] concedia, com a esperança de que de futuro se accederia aos postulados que não haviam sido satisfeitos. Intercedia, finalmente, a favor da familia e parentes de Duarte da Paz, a quem o papa fa expedir um breve para poderem sair do reino, breve que elle pedia fosse respeitado. Respondendo a esta carta, D. João iii mostrava-se resignado a acceitar a Inquisição com as restricções impostas aos seus mais largos designios, a realisar as promessas dos embaixadores sobre a nomeiação do bispo de Ceuta, e a respeitar a vida e a liberdade dos conjunctos de Duarte da Paz, embora merecessem, na sua opinião, bem diverso tractamento, pelas culpas desse homem, em cujo regresso á patria protestava que não consentiria jámais[31].

No meio do seu triumpho, a corte de Portugal quiz guardar a principio as apparencias de moderada. A acceitação official do cargo de inquisidor-mór pelo bispo de Ceuta só se verificou a 5 de outubro, e só a 22 se publicou solemnemente em Évora a bulla que instituia o terrivel tribunal[32]. O anno concedido aos conversos que houvessem delinquido contra a fé, para se reconciliarem, estava completo, e, nessa parte, ficavam mantidas as provisões da bulla de 12 de outubro de 1535. Na realidade, porém, isso pouco embaraçava as futuras perseguições. Com os odios accumulados que ameaçavam por toda a parte os christãos-novos, não faltariam delações e depoimentos para se lhes provar a existencia dos delictos de judaismo commettidos posteriormente a essa data, e até era natural que elles existissem, se pôde chamar-se delicto seguir a occultas uma religião perseguida. Pouco importava que a bulla mantivesse a distincção de réus poderosos e de réus não poderosos, para aos segundos se revelarem os nomes dos seus accusadores e das testemunhas do crime. Como a distincção ficava a arbitrio dos inquisidores, é evidente que essa revelação, muitas vezes indispensavel para a defesa, só se daria quando elles não estivessem resolvidos a condemnar o réu, que nem sequer tinha a garantia da opinião publica para oppor a quaesquer irregularidades, por mais monstruosas que fossem, de um processo inteiramente secreto. Ao passo que se expediam ordens aos magistrados civis de todo o reino para protegerem os inquisidores e seus agentes, e mandarem prender quaesquer pessoas por elles designadas[33], o bispo de Ceuta publicava um monitorio em que se estabelecia e regulava o systema de delações ácerca dos crimes contra a pureza da fé. Este monitorio era um tremendo roteiro que assignalava os parceis onde se tornaria facil o naufragio. Os actos ahi especificados, que deviam servir de indicio de heresia, eram tantos, e alguns tão insignificantes e até ridículos, que ninguém se podia considerar seguro de não ser accusado de erro em matérias de fé, quanto mais aquelles que a malevolencia geral trazia vigiados. Não eram só a celebração dos ritos e festas judaicas, a circumcisão eas doutrinas manifestamente oppostas ao catholicismo, que pelo monitorio do inquisidor-mór deviam ser denunciadas dentro de trinta dias por quem quer que soubesse que alguem havia practicado aquellas ou propagado estas depois do perdão de 12 de outubro; era, tambem, um sem numero de actos innocentes em si e que, embora coincidissem com superstições judaicas, os mais puros christãos podiam practicar sem malicia, como ainda hoje subsistem entre o povo usanças cuja origem remonta ás superstições do polytheismo romano, sem que por isso o povo se haja de reputar pagão. O modo de matar as rezes ou as aves, o provar o fio das facas ou cutellos na unha do dedo pollegar, o não comer certas variedades de carne ou de peixe, a altura das mesas em que se tomavam as refeições, a natureza destas, o logar do aposento onde se estava por occasião da morte de qualquer individuo, o porem os paes as mãos sobre a cabeça ou no rosto dos filhos, o renovar as torcidas dos candieiros ou limpá-los á sextafeira, e outros actos semelhantes obrigavam em consciência, e sob pena de excommunhão, quem quer que os visse practicar, ou delles tivesse noticia, a denunciá-los á Inquisição. Não só se ficava obrigado a accusar como hereje todo aquelle que negasse a immortalidade da alma e a divina missão de Jesu-Christo, mas tambem cumpria delatar os que andassem de noite, como as bruxas ou como os feiticeiros, em companhia do demonio, ou que chamassem por este para o haverem de interrogar ácerca dos successos futuros[34].

Antes, porém, de se abrir tão vasto campo ás delações e á perseguição, tinha-se publicado a 20 de outubro um edital em que se marcavam trinta dias para o chamado tempo de graça[35]. Por esse edital eram admoestados todos os que houvessem errado contra a fé a irem confessar suas culpas perante o inquisidor-mór, delatando ao mesmo tempo os delictos alheios, sem exceptuar os dos proprios progenitores ou de pessoas fallecidas. Não se alludindo ahi nem levemente á distincção entre os actos anteriores á bulla de 12 de outubro e os posteriores a ella, e exigindo-se denuncias até contra os mortos, começava-se desde logo por quebrar as terminantes provisões da bulla de 23 de maio, onde se quizera evitar do modo possivel as apparencias de uma contradicção flagrante nas resoluções pontificias. Naquelle edital a Inquisição promettia aos que se reconhecessem culpados, com animo puro e sincero, o perdão do passado a troco de leves penitencias. Deste modo essas expressões de caridade, mansidão e doçura evangelicas, em que o edital abundava, convertiam-se numa cousa irrisoria, visto que, devendo ser os inquisidores os juizes da sinceridade ou do fingimento das declarações dos réus, a garantia que se dava a estes vinha a ser o mero arbitrio dos seus inimigos. Sacrificadores e victimas, todos entendiam de antemão que o tempo de graça era uma simples formula. A humanidade e a tolerancia da Inquisição nesta conjunctura eram assás problematicas, não havendo ninguem tão insensato que fosse fazer contra si proprio uma confissão inutil.

A previsão mais natural; o que parecia inevitavel, depois das tenazes resistencias oppostas ao estabelecimento do tribunal da fé e dos extremos esforços que ultimamente se haviam empregado para o crear, era que desde logo começasse uma dessas epochas de terror e de sangue, um desses accessos de phrenetica intolerancia que tantas vezes ensombram duplicadamente as paginas sempre negras dos annaes da Inquisição. Não ceemos, porém, que succedesse assim, e as instituições mais absurdas, os maiores criminosos têem direito de exigir a imparcialidade da historia. Faltam-nos provas directas da moderação do novo tribunal nos primeiros tempos da sua existencia, e a indole e fins delle impelliam-no para a atrocidade: todavia, as maiores probabilidades persuadem que não se tentou dar á bulla de 23 de maio uma interpretação demasiado desfavoravel aos conversos, ou pelo menos, que o procedimento dos inquisidores não ultrapassou, como aconteceu depois tantas vezes, a méta da legalidade. Lendo-se as allegações feitas em diversos tempos pelos agentes dos christãos-novos perante a curia romana, não se encontram, relativamente ao periodo immediato á nomeiação do bispo de Ceuta, senão accusações vagas, que mais vão ferir as provisões da bulla de 23 de maio do que os seus executores[36]. Entre os membros do conselho geral, instituido immediatamente por Fr. Diogo da Silva, achavam-se caractéres dignos daquelle odioso cargo. Tal era, como adiante veremos, o de João de Mello, inquisidor especial de Évora. Mas havia outros que, sem devermos acreditar fossem modelos de tolerancia, sabíam moderar os impetos do fanatismo pelo sentimento da justiça. Entre estes contava-se Antonio da Motta, que dous annos depois tinha de luctar contra os excessos do sucessor de Fr. Diogo, o infante D. Henrique[37]. Pelo que, porém, respeita ao inquisidor-mór, existe o testemunho insuspeito dos proprios conversos, que, segundo já vimos, o reputavam homem honesto e moderado[38]. Por outra parte, dada a curta intelligencia de D. João iii, o capricho offendido devia ter entrado por grande parte no empenho que elrei mostrara em obter a Inquisição, e a vaidade satisfeita pelo triumpho abrandava-lhe naturalmente a irritação do fanatismo. Accresciam as recommendações do papa e de Santiquatro sobre a necessidade da moderação, e o considerar-se que um proceder demasiado violento daria força ás representações dos agentes dos christãos-novos em Roma contra uma instituição que não podiam tolerar, que era guerreiada pelos poderosos protectores dos mesmos christãos-novos, e que o papa só concedera constrangido pela necessidade de condescender com as repetidas instancias de Carlos v.

Mas, além destas razões, que persuadem não terem sido os primeiros actos do novo tribunal assignalados por excessos de perseguição, havia outras que mais directamente para isso deviam contribuir. Sem deixarem de proseguir nas diligencias em Roma, os hebreus portugueses procuravam minorar o perigo da sua situação, tentando modificar o despeito de D. João iii. O edital do inquisidor-mór, enumerando os actos considerados como indicio de judaismo, tinha-os enchido de terror. Por intervenção de pessoa addicta ao infante D. Luiz, os chefes da gente hebréa, Jorge Leão e Nuno Henriques, proposeram uma transacção que o infante se encarregou de communicar a elrei, favorecendo-a com o seu voto. Ponderavam elles o que é obvio Para o leitor; que os actos apontados como indicio de heresia eram taes e tantos, que seria impossível evitar constantemente o practicar algum desses actos. Culpados e inocentes, todos corriam risco. Elles, porém, sob pena das muletas que se lhes quizessem impor por cada contravenção, compromettiam-se a fazer com que nenhum christão-novo fugisse do reino com familia e cabedaes, se elrei lhes obtivesse do papa a prorogação por mais um anno do praso concedido pela bulla de 12 de outubro de 1535, dandose-lhes assim o tempo necesssrio para se cohibirem de futuro dos actos reputados suspeitos, ficando exemptos de denuncias, pelos que, talvez innocentemente, houvessem practicado depois da epocha do perdão. Os dous chefes declaravam que, sem isto, poucos deixariam de tentar a fuga. Posto que o infante não cresse que Jorge Leão e Nuno Henriques exercessem tanta influencia como suppunham, aconselhava, todavia, ao irmão que viesse a um accordo, ponderando-lhe a perda immensa que resultaria para o paiz da fuga de tantos vassallos ricos e industriosos, e a impossibilidade de obstar a essa fuga, por mais severas que fossem as leis e providencias destinadas a impedi-la[39]. Não moveram as largas ponderações do infante o animo d'elrei a convir na proposta; mas os conselhos daquelle principe, que, pela superioridade da intelligencia e pela energia da vontade, sabia muitas vezes fazer triumphar a sua opinião nos negocios mais graves[40], contribuiram, por certo, poderosamente para a moderação comparativa, da qual nos parece descubrir vestigios durante o tempo em que o bispo de Ceuta exerceu o cargo de inquisidor geral.

Entretanto, passados os primeiros dias de desalento, os agentes dos conversos em Roma preparavam-se para recorrer de novo aos meios que haviam opposto aos esforços dos fautores da Inquisição e á influencia d'elrei, que, aliás, sem o auxilio de Carlos v não teria obtido triumpho tão decisivo. As circumstancias tornavam a favorecê-los. Com a partida do imperador e dos dous ministros portugueses, a pressão immediata e violenta exercida sobre o animo do papa cessava, ficando apenas Santiquatro para proteger a causa da Inquisição. Entre as pessoas que se inclinavam a favor da raça hebréa tinha-se distinguido sempre o cardeal Ghinucci, e a affronta de haver sido expulso da juncta, a cujo cargo estava o exame e solução daquelle intrincado negocio, devia irritá-lo, tornando-o mais afferrado á sua opinião e mais activo em fazê-la prevalecer. Apenas a bulla de 23 de maio foi publicada em Portugal, e chegou a Roma a[40] noticia dos editaes mandados affixar em Évora, os agentes dos hebreus recorreram ao papa com energicas suppilicas. Repetiam por diverso modo as considerações que tantas vezes tinham já offerecido contra o estabelecimento da Inquisição, e accrescentavam outras novas contra o theor da bulla e contra as illegalidades e absurdos dos editaes. Observavam que, expedindo-se aquella a 23 de maio, se havia falseiado, ao menos intencionalmente, o disposto na de 12 de outubro, em que se concedia aos suspeitos e aos réus de heresia um anno para obterem o perdão; que o cardeal Santiquatro, sendo agente de D. João iii, havia substituido o cardeal Ghinucci na juncta encarregada de resolver a questão, ficando assim ao mesmo tempo juiz e parte; que, contra direito divino e humano se expedira definitivamente e se mandara executar a bulla da Inquisição, sem estar abrogada a lei que obstava á saída do reino das familias hebréas; que se deixara ao arbitrio dos inquisidores-móres e á influencia d'elrei a escolha e nomeiação dos inquisidores subalternos e dos officiaes e familiares do tribunal, que, aliás, deviam ser approvados pelos ordinarios, e nomeiados individualmente pelo pontifice. Assignalavam, além disso, como viciosas muitas provisões daquelle diploma. Taes eram estabelecer o processo ordinario só por tres annos, e supprimir os confiscos só por dez; estatuir como facultativo o dever restricto que os bispos tinham de intervirem nas causas da heresia; conceder que tivessem trinta annos os juizes da Inquisição quando o direito canonico lhes exigia quarenta; não providenciar para que os carceres fossem accessiveis, servindo de custodia e não de castigo, e para que os inquisidores não procedessem ás capturas sem regra alguma e a seu bel-prazer: deixar de exigir que fosse bem provado o caracter das testemunhas, e de regular os casos em que se dariam tractos, que, aliás, cumpria fossem moderados e em virtude de resoluções conformes do inquisidor e do ordinario, exceptuando-se delles os que a lei civil exceptuava, como doutores e cavalleiros; finalmente, não ampliar e precisar bem o systema das appelações, o que, na opinião dos conversos, era o ponto capital daquelle complicado negocio[41]. Nalguns dos seus memoriaes ao papa os conversos chegavam a ser eloquentes: Se vossa «sanctidade — diziam elles — desprezando as preces e lagrimas da gente hebréa, o que não esperamos, recusar prover ao mal, como cumpre ao vigario de Christo, protestamos ante Deus e a vossa sanctidade, e com brados e gemidos, que soarão longe, protestaremos á face do universo, que, não achando logar onde nos recebam entre o rebanho christão, perseguidos na vida, na honra, nos filhos, que são nosso sangue, e na propria salvação, tentaremos ainda abster-nos do judaismo, até que, não cessando as tyrannias façamos aquillo em que, aliás, nenhum de nós pensaria, isto é, voltemos á religião de Moysés, renegando o christianismo, que violentamente nos obrigaram a acceitar. Proclamando solemnemente a força precisa de que fomos victimas, pelo direito que esse facto nos dá, direito reconhecido por vossa sanctidade, pelo cardeal protector e pelos proprios embaixadores de Portugal, abandonando a patria buscaremos abrigo entre povos menos[41] crueis, seguros, em qualquer eventualidade, de que não será a nós que o Omnipotente pedirá estreitas contas do nosso procedimento». Quanto aos editaes, ponderavam-se os absurdos que nelles se descobrem á simples leitura, e apontavam-se, além disso, outras disposições ahi contidas inteiramente contrarias não só ao direito commum, mas ainda ao espirito e á própria letra da bulla de 23 de maio[42].

Estas allegações eram fortificadas por outras diligencias que se faziam, diligencias mais ou menos illegitimas, mas que os costumes devassos do tempo até certo ponto desculpavam. Tinha chegado a Roma o nuncio Marco della Ruvere, cujas idéas moraes o leitor já conhece e os christãos-novos deviam por experiência propria conhecer ainda melhor. O seu despeito contra elles por questões de dinheiro estava modificado, e a razão disso facil é de suppor. O que é certo é que o bispo de Sinigaglia foi encarregado de peitar Ambrosio Ricalcati, secretario particular do papa, e, segundo parece, alguma outra pessoa influente, para inclinarem o animo de Paulo iii a proteger de novo a causa daquelles que pouco antes entregara aos odios dos seus perseguidores[43]. Não se limitava o prelado italiano a dar estes passos occultos. Elle proprio expunha ao pontifice com vivas cores (no que não cremos lhe fosse necessario exaggerar ou mentir) o que havia inconveniente, injusto e anti-christão nas ultimas concessões feitas ao fanatismo por motivos politicos[44]. Temia o pontífice indispor contra si os dous principes , mas incommodavam-no as instantes supplicas dos conversos, e faziam-no vacillar as suggestões dos que o rodeiavam. Adoptou um arbitrio: nomeou os cardeaes Ghinucci e Jacobacio para examinarem se a bulla de 23 de maio devia ser modificada. A nomeiação de Ghinucci era symptoma evidente de que a politica da curia romana tomava novas direcções, nem o era menos ser chamado ás conferencias o ex-nuncio em Portugal. O resultado foi entenderem os dous cardeaes que a bullia tinha sido indevidamente concedida e convencerem disso Paulo iii, que não duvidou de manifestar aos cardeaes Simonetta e Pucci o seu arrependimento. Debalde Santiquatro forcejava por desvanecer os remorsos do pontifice, e conservar Simonetta nas idéas que lhe inculcara. Arrastado pelos argumentos de Ghinucci e Jacobacio, este confessou, com phrases grosseiras mas sinceras, haver sido illudido, e escusando-se de entender mais naquelle negocio, declarou que ao papa tocava remediar o mal que se tinha causado[45].

Nesta situação a corte pontificia resolveu enviar novo nuncio a Portugal. Foi para isso escolhido o protonotario Jeronymo Ricenati Capodiferro, cujo breve de nomeiação se expediu a 24 de dezembro de 1536, mas que só veio a partir em fevereiro de 1537[46]. Achava-se já então encarregado dos negocios de Portugal em Roma Pedro de Sousa de Tavora; mas, ou fosse porque esperava ser substituido[47], ou porque nos faltem correspondencias suas, ou, finalmente, porque os conversos soubessem torná-lo propicio ou pelo menos indifferente, não consta que elle procurasse contrariar energicamente as novas tendencias da curia. Era o fim principal da missão de Jeronymo Ricenati satisfazer aos clamores dos christãos-novos, embora a presença de um agente pontificio na corte de D. João iii fosse tambem necessaria para outros objectos assás graves. Deram-se ao nuncio cartas de crença redigidas por Ghinucci e Jacobacio, em que Paulo iii recommendava a elrei o ouvisse ácerca das matérias da Inquisição, e ao mesmo tempo escreveu-se aos infantes D. Luiz e cardeal D. Afonso para que, sobre aquelle particular objecto, favorecessem as diligencias do representante pontificio com a sua influencia no animo do irmão[48]. As instrucções recebidas por Capodiferro na occasião da partida versavam sobre diversos pontos que tinha de tractar, mas eram em parte relativas ao assumpto do novo tribunal da fé. Vinha incumbido de asseverar a elrei que, apesar das queixas dos conversos, nada do que estava feito se mudaria, mas que, por descargo de consciencia, o papa ordenava a elle nuncio que emquanto residisse em Portugal, examinasse todos os processos da Inquisição, para verificar se a bulla de 23 de março se cumpria á risca, e se as promessas de moderação particularmente feitas por elrei se realisavam. Suppondo que não, devia proceder conforme as circumstancias, e sobretudo obstar a que tivessem a menor ingerencia naquelle negocio os que haviam combatido a bulla de perdão, porque não se devia presumir que estes taes procedessem por zelo da justiça e da religião, mas sim por odio e vingança. Entre os excluidos indicavam-se expressamente o doutor João Monteiro e um certo mestre Afonso[49], cujo valimento com elrei o papa extranhava, por ser homem de vida escandalosa e turbulento, do que dera sobejas provas em Castella durante a revolta dos communeros, e que já nas cortes de Évora de 1535, segundo as imformações obtidas em Roma, o povo requerera a elrei affastasse de seu lado. Era agora o papa quem insistia nisto, pedindo-lhe que o mandasse recolher ao convento a fazer penitencia. Accrescentava-se nas instrucções a Capodiferro que se esforçasse em persuadir com bons termos elrei da necessidade de se mostrar cauteloso e severo na escolha dos juizes e officiaes da Inquisição, para que, em vez de se punirem os maus e de se deixarem em paz os bons, não succedesse vir aquelle tribunal a servir só para satisfação das malevolencias e vinganças dos christãos-velhos. Entretanto, mandava-se expressamente ao nuncio que tomasse conhecimento de qualquer causa em que se practicasse injustiça, e quando isso não bastasse, a suspendesse e avocasse a si, para o que se lhe facultavam os devidos poderes[50]. Dizia-se-lhe tambem que, se achasse resistencia, désse disso conta para Roma, porque assim haveria razão sufficiente para abolir a Inquisição. Ultimamente, parecia ao papa dever-se revogar a lei que prohibia a saída do reino aos conversos, lei suscitada de novo em 1535, o que os tornava de peior condição, talvez, que os escravos. Recommendava, portanto ao seu nuncio que a este respeito não poupasse instancias com o rei; que lhe dissesse francamente ser opinião geral que tanto apego á Inquisição não era da parte delle zelo da fé, mas sim intenção de arruinar aquelles desgraçados; que lhe pintasse tal procedimento como capaz de os tornar peiores que judeus, trazendo-lhes á lembrança o captiveiro do Egypto, e lhe advertisse que, se procedia assim com o pretexto de obstar a que fossem fóra do paiz professar o judaismo, melhor era se tornassem judeus por maldade propria do que por tyrannia delle, a quem não era licito violentar-lhes as vontades, que Deus fizera livres e que mais facilmente se dobrariam com a brandura e caridade do que com a violencia, a qual em nenhum caso podia compadecer-se com a verdadeira justiça[51].

Taes eram as instrucções dadas ao protonotario, instrucções evidentemente redigidas com intuito hostil á Inquisição, e cujo conteúdo os christãos-novos de certo não ignoravam. Em harmonia com a ultima parte dellas, estes dirigiram a elrei uma extensa supplica, em que ponderavam tudo quanto havia tyrannico e atroz na lei de 14 de junho de 1532, revalidada em 1535, e pediam a liberdade natural de que gosavam os outros vasallos da coroa, não só de saírem do reino, mas também de venderem seus bens de raiz e de levarem comsigo os proprios cabedaes[52]. Porventura a supplica era feita sem a minima esperança de deferimento; mas esse mesmo facto servia para combater a Inquisição, porque tornava mais monstruosa a instituição e dava maior plausibilidade á crença de que a mente d'elrei não era manter a pureza e integridade da fé nos proprios estados, mas sim verter o sangue de uma parte dos seus subditos mais opulentos, para se apoderar das suas riquezas. O estado da fazenda publica auctorisava esta crença. Não era possivel occultar a miseria do erario; porque já por esse tempo, afóra a enorme divida interna representada pelos padrões de juro, os emprestimos levantados em Flandres eram tão avultados, em relação áquella epocha e aos recursos do paiz, que os juros anuaes desses emprestimos subiam a cento e vinte mil cruzados. Vinham ensombrar este quadro e tornar ainda mais temeroso o futuro, não só as despezas inevitaveis das guerras de Africa, da India e da colonisação e defesa do Brazil; mas tambem o genio desperdiçado d'elrei, que, não contente de augmentar as difficuldades economicas com a manutenção de frades e com obras dispendiosas de conventos e mosteiros, taes como as de Thomar e Belem, desbaratava a fazenda do Estado com mercês de dinheiro, verdadeiramente pródigas, feitas a cortezãos e affeiçoados[53]. Conforme o que era de esperar , a supplica não teve resultado. Transmittida então por copia para Roma e inserida num memorial dirigido a Paulo iii, em que os conversos, queixando-se da dureza com que eram tractados pelo seu soberano em materia de tão evidente justiça, pediam protecção ao pae commum dos fiéis, essa supplica indeferida abonava as diligencias que se faziam para annullar os effeitos da bulla de 23 de maio[54].

Recebendo as instrucções que vimos, Capodiferro recebera tambem um breve com poderes para proceder á suspensão absoluta ou limitada dos inquisidores, se elles recusassem consentir-lhe a inspecção dos seus actos e a modificação das suas decisões, em conformidade com o pensamento que movera o pontifice a enviá-lo a Portugal. O papa tinha, porém, encarregado vocalmente o nuncio de pedir a D. João iii, buscando para isso mover tambem o animo dos infantes D. Luiz e D. Affonso, que sobreestivesse no exercicio da Inquisição, debatendo-se de novo na curia a conveniencia ou inconveniencia de se conservar aquelle tribunal, e mandando-se um embaixador especial para tractar o assumpto, mas consentindo ao mesmo tempo que saíssem do reino quatro christãos-novos para advogarem em Roma a causa destes. Se D. João iii recusasse formalmente ou protrahisse a resolução definitiva com dilações e argucias, Jeronymo Ricenati devia proceder vigorosamente, intromettendo-se em todos os processos, e reduzindo á obediencia pela compulsão canonica os ministros do Sancto-Officio que se mostrassem rebeldes. Se, em consequência disso, elrei viesse a um accordo, usaria de moderação e procuraria haver-se de modo que o monarcha se désse por satisfeito, e ao mesmo tempo os christãos-novos não tivessem queixa da sé apostolica, falando sempre a favor delles, cada vez que sollicitassem a sua protecção[55].

Tal era a politica da corte de Roma. O leitor não póde ter deixado de notar as phases por que passou até esta conjunctura o negocio da Inquisição. Concedido a principio sem grande resistencia e só com as restricções que convinham ao predominio da curia, o terrivel tribunal fora supprimido á força das diligencias e do ouro dos conversos, e concedido de novo, não porque as convicções ou as circumstancias mudassem, mas sim porque o seu restabelecimento se casava com as conveniencias politicas, e os christãos-novos se mostravam remissos em cumprir os contractos pecuniarios feitos com Sinigaglia. Embora o papa houvesse invocado para o supprimir as doutrinas immutaveis de caridade, tolerância e justiça promulgadas no evangelho: essas doutrinas eram condemnadas pela voz imperiosa de Carlos v, e a curia romana não hesitou em condemná-las tambem. Agora as cousas mudavam. Os christãos-novos entendiam melhor outra vez os seus verdadeiros interesses, e as doutrinas evangelicas readquiriam preponderancia em Roma. Pôr na téla da discussão um assumpto já debatido até a saciedade, se não trazia mais luz aos espiritos, trazia, sem duvida, novos e avultados proventos aos árbitros e aos mantenedores do combate. Dir-se-hia que Roma, com o dedo no pulso da gente hebréa, lhe calculava os alentos para, sem deixar de se alimentar do seu sangue, não a reduzir a inutil cadaver. Nisto dava provas de maior prudencia do que D. João iii, o qual cego pelo fanatismo e aconselhado pela falta de recursos, sonhava, talvez, no avultado dos confiscos que de futuro lhe devia trazer o exterminio daquella raça infeliz, sem attender a que, transigindo com ella, mas conservando-lhe sempre diante dos olhos o phantasma da Inquisição, teria achado um systema de espoliação perpetua. Das duas politicas a mais franca era a d'elrei; mas a de Roma era, sem contradicção, a mais sagaz.

Fosse porque D. João iii soubesse conciliar a benevolencia do protonotario; fosse porque, como cremos, á indole do inquisidor-mór repugnassem as perseguições violentas, e os actos da Inquisição não dessem sufficiente motivo aos encarecimentos dos christãos-novos, é certo que, entrando em Portugal, o nuncio não usou dos largos poderes que trazia. Energicas representações chegavam, porém, a Roma poucos dias depois da partida de Capodiferro, tanto contra o segundo edital do bispo de Ceuta, como ácerca da nenhuma solução que tivera a supplica relativa á abrogação das leis de 14 de junho de 1532 e de 1535. O papa dirigiu então ao seu nuncio novas e mais apertadas recommendações para que procedesse vigorosamente, recommendações cujo resultado parece ter sido nenhum[56] . Não desanimavam todavia os conversos. Na falta de uma perseguição demasiado violenta, com que contavam, e da qual se não encontram vestigios positivos, aproveitavam uma circumstancia, grave em si, mas que, dada a comparativa moderação do restaurado tribunal, perdia parte da sua importancia. Como vimos, o papa tinha declarado pelo breve de 20 de julho de 1535 que ser procurador de qualquer réu de judaismo ou subministrar soccorros aos encarcerados por tal delicto não significava cumplicidade, nem era motivo de se perseguirem os que assim obrassem, nem finalmente auctorisava elrei a pôr-lhes obstáculo á livre saída do reino[57]. Apesar, porém, das determinantes resoluções do pontifice, tinha-se continuado a insistir na praxe contraria[58]. Era sobre isto que os christãos-novos alevantavam vivos clamores. Entendeu a curia romana que devia manifestar o espirito de hostilidade que, ao menos na apparencia, a animava contra a Inquisição, provendo de novo ácerca de um objecto em que, aliás, materialmente ella interessava; porque se, á vista da praxe estabelecida em Portugal, se prohibisse a saída do reino aos que iam tractar em Roma das matérias que tocavam ao tribunal da fé, ou se reputassem fautores de heresia os que para alli enviavam grossas sommas, com o intuito de sustentar a lucta, esse facto redundaria em detrimento da mesma curia. Assim, expediu-se no ultimo de agosto um breve, em que, repetindo-se a doutrina do de 20 de julho de 1535, se dava ás disposições delle a interpretação que se devia reputar genuina, contraria á opinião daquelles que — dizia o papa — querendo ser mais atilados do que cumpria, affirmavam que ess'outro breve se referia unicamente aos advogados e procuradores em juizo dos que se achavam encarcerados, e não aos que de outro qualquer modo ou em outra qualquer parte, advogavam e protegiam, sobre questões de Inquisição, os christãos-novos, tanto collectiva como individualmente. Declarava por isso o pontifice que o breve de 20 de julho era extensivo a todos os que trabalhassem de qualquer modo em vindicar a innocencia, não só dos réus presos, mas tambem dos simplesmente accusados ou diffamados, quer estes residissem dentro, quer fóra do paiz, quer fossem seus parentes e amigos, quer não, que era licito a todos proteger judicial ou extra-judicialmente os conversos, patrocinando-os, aconselhando-os, fazendo sollicitações e dispendendo dinheiro a favor delles em Portugal, em Roma ou em outra parte, comtanto que o individuo que assim procedesse não estivesse accusado ou publicamente diffamado do mesmo crime. O pontifice fulminava as penas de suspensão e excommunhão contra aquelles prelados, inquisidores e magistrados que, pelo simples facto da protecção dada aos réus de judaismo, dentro ou fóra do reino, perseguissem alguém canonica ou civilmente, e recommendava a elrei interviesse com a sua auctoridade para se cumprirem á risca as provisões deste breve[59].

Apesar de todas estas manifestações, o estado das cousas em Portugal relativamente á Inquisição não parece ter mudado. Além de nos faltarem vestigios de que a perseguição houvesse tomado o incremento que os vagos queixumes dos christãos-novos poderiam fazer acreditar aos espiritos prevenidos, as providencias do papa, energicas na apparencia, eram, talvez, modificadas pelas ordens secretas que se davam ao nuncio. A politica habitual da corte pontificia, e a gravidade de outros assumptos, que então se tractavam entre os dous governos e que se prendiam com os negocios geraes da Europa, obrigavam o papa a contemporisar com D. João iii, visto que já nas instrucções dadas a Capodiferro se havia recommendado a este que attendesse constantemente á justiça dos conversos e a contentá-los nas suas supplicas, mas que não attendesse com menor cuidado a propiciar o animo d'elrei[60]. Desde os começos do seu pontificado, Paulo iii pensara em fazer uma liga com Carlos v e com os venezianos contra a Turquia, e trabalhava activamente em reduzir estes ultimos a esse accordo. As guerras do imperador com Francisco i de França traziam, porém, embaraços insuperaveis á realização da empreza. Esforçava-se o papa em pôr termo a taes guerras, e uma tregua celebrada entre os dous príncipes nos fins de 1537 animava-o a proseguir com redobrada efficacia nas suas diligencias. Não foram estas baldadas. Assentou-se em que houvesse uma conferencia dos dous soberanos na cidade de Niza no Piemonte, para se tractar da paz, conferencia de que resultou a prorogação das treguas por dez annos. Com a suspensão das armas tinha-se entretanto celebrado um convenio entre o papa, o imperador e a republica de Veneza para se enviar contra os turcos uma poderosa armada, e nesta um exercito de perto de sessenta mil homens. Esses armamentos extraordinários geravam em muitos espiritos, e talvez no do proprio Paulo iii, as esperanças de se estenderem de novo até Constantinopla os limites da Europa christan. Todas ellas, porém, vieram depois a desvanecer-se pela traição ou pela covardia de André Doria, almirante da frota, que fugiu, depois de haver recusado atacar, numa occasião altamente vantajosa, o almirante turco Barbaroxa, deixando-o depois destruir ou tomar varias galés e navios que não tinham podido acompanhar o almirante christão na sua inexplicavel fuga[61].

Taes eram os acontecimentos cujas phases levavam o papa a recommendar ao nincio que procedesse com destreza, para favorecer os conversos sem alienar absolutamente o animo de D. João iii. Dependia elle, até certo ponto, do rei de Portugal na realisação dos seus dous principaes designios, o congraçar o imperador com o rei de França e o colligir os recursos necessarios á expedição contra os mussulmanos, para a qual devia contribuir com uma parte dos materiaes de guerra, gente e navios. Com este ultimo intuito, resolvera impor duas decimas nos rendimentos do clero português, e esperava remover as resistancias áquella contribuição extraordinaria (resistencias que, aliás, eram infalliveis) cedendo parte della a beneficio do poder civil. Para obter, por outro lado, que D. João iii interviesse na reconciliação de Carlos v com Francisco i, tinha enviado credenciaes e instrucções a Capodiferro, ordenando-lhe proposesse o assumpto a elrei, a quem, afóra isso, escrevera[62]. Não pertencendo, porém, á materia deste livro essas negociações, não as seguiremos no seu progresso e resultados, senão quando servirem, como aqui, para illustrar os successos que pertencem á nossa narrativa. Baste saber-se quão urgentes eram os motivos que obrigavam o papa a contemporisar com a corte de Lisboa, e quanto é provavel que as instrucções particulares ao nuncio nem sempre fossem accordes com as demonstrações externas favoraveis aos conversos.

Emquanto estas cousas se passavam, disputava-se na juncta creada em Roma sobre a conveniencia de alterar ou não a bulla de 1536, pela qual se restabelecera a Inquisição. O anno de 1538 passou-se nestas controversias e nas intrigas obscuras que deviam acompanhá-las. A falta que se encontra por esta epocha de documentos relativos ao assumpto está mostrando que nem as violencias dos inquisidores se tornavam mais exaggeradas do que o haviam sido a principio, nem os hebreus portugueses (o que era consequencia desse mesmo facto) sollicitavam com excessivo fervor a resolução definitiva da juncta. Havia, porém, afóra este, outro motivo para aquella temporaria bonança; triste motivo do qual haviam de resultar maiores males. Era a corrupção do nuncio; corrupção que as em que se lhe ordenava favorecesse os conversos, mantendo para com elrei um procedimento mais duplice do que prudente, de certo modo facilitavam. Sem embaraçar a acção dos inquisidores contra qualquer réu, Capodiferro, auctorisado pelo ultimo breve e pelas instrucções que com elle recebera para rever os processos, contentava-se com absolver os que a Inquisição condemnava. Não eram, porém, a tolerancia christan e os impulSos de humanidade que o moviam: era a cubiça. Abraçara as tradições do seu antecessor, Marco della Ruvere, e entendera que, assim como o ouro assegurava a este a impunidade em Roma, pelos mesmos meios podia sem perigo locupletar-se. Applicando aquelle systema a todas as dependencias ecclesiasticas, imagine-se até que ponto Capodiferro sería benigno para com os judaisantes, que, pouco a pouco, animados pelo favor do nuncio, íam perdendo o temor que a principio lhes incutira o restabelecimento do tribunal da fé, e se tornavam menos cautelosos em disfarçar as suas occultas crenças. Se acreditar-mos as queixas que o proprio D. João iii dirigiu, tempos depois, para Roma, o castigo dos crimes religiosos e da corrupção do clero tinha-se tornado impossivel com a residencia de Jeronymo Ricenati em Portugal. Os empenhos e o dinheiro faziam tudo. Choviam os breves, os perdões, as dispensas. Os preços variavam; porque a somma era graduada, talvez, na razão inversa da influencia da pessoa que sollicitava o despacho. Capodiferro sabia ser serviçal quando eram poderosos os protectores; mas a veniaga espiritual devia subir de quilate quando a valia do sollicitador era pequena[63]. O nuncio não fazia, porém, senão exaggerar o espirito interesseiro da corte de Roma. Lá, tambem, a benevolencia das pessoas influentes não se obtinha de graça, e, no sentir de alguns, nem o proprio Paulo iii era exempto do vicio commum[64]. Dissimulava elrei com Capodiferro, porque a complicação dos negocios pendentes com a curia romana a isso obrigava. Resolvido a substituir o seu embaixador Pedro de Sousa de Tavora por D. Pedro Mascarenhas, que de passagem tinha a tractar materias de ponderação na corte de Castella e na de França, ordenara em dezembro de 1537[65] a partida do novo agente. Era um dos principaes fins da missão do D. Pedro evitar a imposição das duas decimas nas rendas ecclesiasticas do reino; porque, apesar do seu zelo pelas cousas da religião, o governo português combatia sempre com energia as extorsões da curia. Chegado a Roma depois dos meiados de 1538, por causa dos negocios que o haviam retido na corte de França, a questão das duas decimas e da escusa de írem ao concilio (de que então se tractava com calor) senão todos os prelados portugueses, ao menos aquelles que elrei entendesse, deviam absorver, d'envolta com outros negocios graves, as attenções do embaixador[66]. Entretanto não se descuidara de examinar o estado da contenda e quaes eram as vantagens que os christãos-novos haviam obtido na juncta encarregada de pesar os aggravos de que elles se queixavam. As cousas tinham chegado a maus termos. A preponderância dos adversarios da Inquisição nos conselhos do pontifice, preponderancia que já se manifestara um anno antes nas providencias expedidas em 1537, não havia diminuido. Ghinucci, um dos cardeaes a quem o papa confiava o exame dos negocios mais graves, restituido á juncta, fazia ahi uma guerra implacavel ás pretensões da corte de Portugal, de accordo com Duarte da Paz e com os outros agentes dos christãos-novos. Fora tal o ardor que o cardeal mostrara na contenda, que delle, por assim dizer, estava tudo pendente. As primeiras diligencias do novo embaixador dirigiram-se todas a tirarlhe o negocio das mãos, e com tal arte ou energia se houve, que alcançou fazê-lo substituir pelo cardeal Simonetta, aquelle mesmo que, tendo sido favoravel á expedição da bulla de 25 de maio de 1536, depois se arrependera eximindo-se de entender nos males della provindos. Posto que gosasse da reputação de homem honesto, Simonetta era pobre, e ao mesmo tempo tão influente como Ghinucci nas materias de maior monta. Fazendo-lhe dar aquelle encargo, D. Pedro Mascarenhas esperava tirar proveito dessas duas circumstancias para os fins que se propunha. Tal era o estado das cousas nos princípios de 1539, quando factos inopinados vieram exacerbar de novo a lucta, por tanto tempo dormente[67].

Era em fevereiro desse anno. A corte achava-se em Lisboa, e o bispo titular de Ceuta na sua diocese de Olivença. Segundo parece, os trabalhos do tribunal da fé, cuja actividade estava de algum modo annullada pela pressão que o nuncio exercia sobre elle, não eram assás importantes para exigirem a presença do inquisidor-mór em Évora ou na capital. Certa manhan, porém, uma proclamação singular appareceu affixada nas portas da calhedral e das outras igrejas de Lisboa. Affirmava-se nella que o christianismo era um embuste, e annunciava-se a vinda do verdadeiro Messias. A linguagem desse papel sedicioso, sem nome de auctor e sem assignatura, revelava ou um excesso violento de fanatismo judaico, ou a intenção de irritar os ânimos contra os conversos. Ao lerem-se aquellas blasphemias , a agitação foi geral. Emquanto as justiças ecclesiasticas e civis e os agentes da Inquisição diligenciavam por todos os modos descubrir o réu ou réus daquelle attentado, elrei mandava prometter dez mil cruzados de premio a quem os denunciasse. Com estas providencias socegou o povo, entre o qual vogavam já as idéas sanguinarias, cuja explosão produzira, havia trinta e tres annos, tão horríveis scenas. Grande numero de christãos-novos procurava salvar vidas e fazendas fugindo escondidamente do reino para Africa[68]. Ao mesmo tempo, o bispo de Ceuta recebia ordem para delegar os seus poderes no bispo do Porto, em cuja severidade elrei, segundo parece, confiava mais do que na de Fr. Diogo da Silva. Sem que, porém, recusasse obedecer, o inquisidor-mór ponderou ao monarcha a possibilidade de ser aquelle attentado obra dos inimigos dos conversos, e a prudencia com que cumpria proceder em tal caso[69]. Concedendo os poderes que se lhe pediam, o bispo de Ceuta ousou fazê-lo com as limitações que suppunha convenientes, embora se lhe tivesse pedido uma delegação mais ampla. Conduzidas com destreza as indagações que se faziam, chegou-se finalmente a descubrir o culpado. Era um christão-novo, que ninguem até ahi reputara como tal. Ao menos assim se disse. Levado aos carceres da Inquisição, confessou ser auctor daquelles escriptos, de cuja doutrina estava persuadido, protestando constantemente que só elle commettera o crime. Procuraram convencêl-o do erro; mas contra a sua pertinacia todos os argumentos e persuações saíram baldados. Julgado na instancia inferior, recusou appelar para o conselho geral da Inquisição. Era um fanatico ou um martyr. Relaxado, porém, ás justiças seculares, e posto a tormento (o que a Inquisição não fizera) para se descubrir se tinha effectivamente cúmplices, o animo esmoreceu-lhe. Negando até o ultimo suspiro que alguém se houvesse associado com elle para a perpetração do delicto, reconheceu que o havia hallucinado uma van crença. Assim como esperava o Messias, assim contava tambem com a insensibilidade no meio dos mais atrozes tractos, e a dor desenganava-o da vaidade das suas illusões. A luz, porém, que lhe illuminara emfim o espirito vinha tarde para o salvar da vindicta dos homens. Pereceu no meio das chammas, e os que o acompanharam no derradeiro trance affirmaram que morrera christão e arrependido[70].

As circumstancias deste successo são dignas de reparo, porque vem confirmar todos os anteriores indícios da moderação comparativa com que o tribunal da fé procedia nos primeiros tempos do seu restabelecimento, e de que essa moderação era devida, ao menos em grande parte, ao caracter do inquisidor-mór. As suas suspeitas sobre a possibilidade de haver naquellas manifestações blasphemas uma astúcia diabolica, para excitar perseguições contra a gente hebréa, não só provam que Fr. Diogo da Silva não era um fanatico, mas indicam tambem que, supremo juiz do tribunal da fé, conhecia por experiencia as calumnias e os artificios que se inventavam para fazer condemnar os christãos-nos. Vemos, tambem, que o miseravel judeu, réu de blasphemias publicas contra o christianismo e victima da propria cegueira, só depois de entregue á auctoridade secular recebeu tractos para delatar suppostos cumplices, signal evidente de que, ou fosse devido á influencia do nuncio ou á do inquisidor-mór, ou, o que é mais provavel, á de ambos, os actos da Inquisição naquella conjunctura não eram assignalados por demasiada crueldade. Recusando, emfim, conceder ao bispo do Porto[71] tão amplos poderes como elrei pretendia, Fr. Diogo da Silva dava ainda outro documento da sua tolerancia, mostrando temer-se desse homem, que subsequentemente veremos figurar como um dos campeões mais ardentes dos rigores inquisitoriaes.

Mas um inquisidor-mór tolerante e illustrado; um nuncio que, fosse por que motivos fosse, posesse obstáculos á condemnação definitiva dos implicados no crime de judaismo; um tribunal, emfim, cujas abobadas não rcsoassem de continuo com os gritos dos atormentados, e onde a polé e o potro jazessem no pó e esquecidos, eram cousas monstruosas aos olhos dos fanaticos, sobretudo depois do ruidoso acontecimento que escandalisara e irritara o povo da capital. Duas providencias urgiam: obter do papa maior liberdade para o arbitrio dos inquisidores, restringindo a acção do legado apostolico, e substituir um mquisidor-mór pouco energico por outro, cujo espirito não fosse accessivel á piedade, nem demasiado escrupuloso no que tocava aos preceitos da caridade e tolerancia evangelicas. Para se tomar a primeira, recommendava-se a D. Pedro Mascarenhas que trabalhasse por alcançar as necessarias exempções[72]. Realisar a segunda era mais facil. Como a bulla de 23 de maio de 1536 auctorisava elrei para escolher um quarto inquisidor geral, além dos tres bispos de Ceuta, Lamego e Coimbra, e como só o primeiro tinha exercido esse cargo , nada mais havia do que pôr á frente da Inquisição, em logar delle, um individuo de maior confiança e de mais solta consciencia. Foi o que se fez. Allegando a sua provecta idade e pouca saude, e a necessidade de administrar a pequena diocese de Olivença, Fr. Diogo da Silva pediu ser substituido por pessoa mais habilitada do que elle para exercer o mister de inquisidor geral. Esta supplica era evidentemente resultado de uma insinuação regia[73]; porque o bispo de Ceuta não tardou a ser eleito arcebispo de Braga, dignidade mais laboriosa que essa de que se exonerava. Tinha-a então o infante D. Henrique, irmão d'elrei, mancebo de vinte e sete annos, que na idade de quatorze fora promovido a prior de Santa Cruz de Coimbra, e na de vinte e dous a metropolita bracharense; tão bem sabia a hypocrisia daquelle tempo conciliar as demonstrações do zelo religioso com a quebra de todas as leis da decencia e da disciplina ecclesiastica. Foi escolhido o infante para substituir o bispo de Ceuta e reanimar a Inquisição de um lethargo, que não condizia nem com a sua indole nem com os fins para que fora creada[74]. Não podendo exercer elle proprio o officio de supremo inquisidor, D. João iii mostrava, ao menos, bons desejos, nomeiando para o cargo um membro da sua familia[75].

O despeito d'elrei pelas blasphemias affixadas nas portas das igrejas de Lisboa tinha sido legitimo, e justa a punição do culpado, posto que repugnem á humanidade os tormentos e o atroz supplicio que lhe foram applicados. Mas o substituir a um ancião respeitavel um mancebo, ainda na idade das paixões violentas, no tremendo cargo de inquisidor-mór era condemnavel manifestação de fanatismo. A escolha de D. Henrique offendia a maxima do direito canonico que requeria para o exercicio de funcção de tal ordem a idade de quarenta annos, e sophismava as intenções do pontifice, que, nomeiando inquisidores geraes, na bulla de 23 de maio, tres prelados dos mais notaveis de Portugal, e deixando a elrei a designação do quarto, não quizera por certo que, sendo inquisidor-mór só um delles, tivesse a preferencia sobre todos tres o de nomeiação regia, facto tanto mais escandaloso, quanto era sabido que se designara em primeiro logar o bispo de Ceuta para dar garantias de imparcialidade aos christãos-novos, e que o quasi imberbe arcebispo de Braga era contado entre as pessoas mais adversas a elles[76].

Nomeiado inquisidor-mór o infante, expediram-se ordens a D. Pedro Mascarenhas para que assim o communicasse ao pontifice, dando as razões, ou antes os pretextos, que para isso houvera. Longe de deverem os christãos-novos receiar uma recrudescencia de perseguição, no entender da corte de Lisboa, o moço arcebispo, ao mesmo tempo que ía restabelecer a conveniente severidade para com os maus, era para os bons, pelas suas virtudes e elevada jerarchia, fiador de paz e segurança. Por esta nomeiação, porém, tornava-se mais urgente a necessidade de soltar os braços á Inquisição e, sobretudo, de tirar os poderes de revisão final concedidos ao nuncio, visto que seria absurdo haver em Portugal quem podesse alterar as decisões de um inquisidor-mór irmão do proprio monarcha e que se considerava como primaz das Hespanhas. Para fundamentar melhor as suas pretensões, elrei transmittia ao embaixador a relação circumstanciada dos attentados contra a fé que os christãos-novos estavam practicando para que a apresentasse ao papa. Mas, ou porque esses factos fossem de pura invenção, ou porque, como elrei affirmava, os conversos tivessem sido trahidos e denunciados por alguns de seus proprios irmãos, cujas traições não convinha se houvessem de suspeitar ou descubrir, é certo que se recommendava a D. Pedro Mascarenhas pedisse ao pontifice inviolavel segredo ácerca daquellas revelações, e ordenava-se-lhe que rasgasse as respectivas notas, logo que lh'as tivesse communicado[77].

As difficuldades com que o agente português em Roma tinha de luctar eram grandes, assim porque a curia mostrava claras tendencias para favorecer os christãos-novos, como por outras circumstancias. Irritavam o papa as resistencias e os artifícios que empregava a corte de Portugal para evitar a extorsão das duas decimas nas rendas ecclesiasticas, ou para, ao menos, ter quinhão na presa[78]. Por outro lado, nomeiando-se o infante inquisidor-mór, tinha-se previsto e calculado uma collisão com o nuncio, que désse fundamento plausivel a expulsar este[79], e Capodiferro não podia ignorá-lo nem deixar de augmentar a irritação da sua corte prevenindo-a contra D. Henrique. Entretanto, posto que homem de poucas letras, D. Pedro Mascarenhas era uma intelligencia superior, que sabía appreciar as cousas e os homens, e sair com vantagem das luctas em que se empenhava. De indole, segundo parece, recta e desinteressada, tinha a qualidade de alguns estadistas, que, collocados em logares eminentes, no meio de uma sociedade e de uma epocha pervertidas, se aproveitam da corrupção para realisarem os seus intuitos, sem se corromperem a si proprios; estadistas, cuja triste e suprema crença deve ser um profundo desprezo do genero humano. Residira já em Roma tempo sufficiente para avaliar bem a curia pontificia, e a idéa que fazia della era extremamente desfavoravel. Na sua opinião, para bem negociar com Paulo iii não havia outro meio senão fazer-lhe crer que ganhava no negocio[80], e por isso tinha aconselhado a elrei, na questão das decimas, que não posesse obstaculo a uma extorsão que só recahia sobre o clero, comtanto que parte da presa revertesse em beneficio do fisco, arbitrio que fora acceito, embora a transacção não chegasse a concluir-se, como depois veremos, com todas as condições que o embaixador desejava[81]. Assim entendera tambem desde logo que sería impossivel tirar-se ao nuncio o direito de revista nos processos da Inquisição, por ser prerogativa grandemente rendosa, e de que o papa se não despojaria, senão por mais avultados lucros[82]. A sua regra para prognosticar a solução dos negocios em Roma era saber quem dava mais. Dotado do talento de physionomista, tantas vezes util na vida aos que o possuem, lia no rosto do papa qualidades de espirito que lhe repugnavam profundamente

mas nessa mesma repugnancia tinha incentivo para sempre estar prevenido em tudo quanto com elle tractava[83]. Convencido de que onde reina a venalidade só a corrupção póde dar o triumpho, obtinha da sua corte os meios de corromper, e empregava esses meios como quaesquer outros. Tentava tudo e a todos. Nem a propria reputação de Simonetta, cuja probidade severa parecia excluir quaesquer esperanças, o fez recuar. Acaso não cria nella. A influencia deste prelado e a de Ghinucci eram as que mais temia. Importava-lhe comprá-los. Recebidas de Lisboa as sommas necessarias, tentou Simonetta por intervenção de Santiquatro. Repellida a offerta pelo pobre velho, esperou confiado que alguma precisão instante lhe trouxesse o arrependimento da honestidade. Não tardou este. Num apuro pecuniario, Simonetta lamentou-se de ter perdido a offerta espontanea do embaixador; mas a offerta não tardou a ser renovada por diverso canal, e foi acceita. Ha o que quer que seja infernal nas ironicas desculpas com que D. Pedro Mascarenhas narra ao seu principe a prostituição daquellas cans. «Entre os cardeaes — diz elle — Simonetta era tido pelo mais severo na distribuição da justiça. Como tal o collocou o papa no logar que occupa
como tal o consulta e a Ghinucci em todos os negocios mais ou menos graves. Estes foram os trances que passei com elle. O que fez não se toma em Roma por maldade, nem se extranha, porque é o costume da terra. Não me espanta, por isso, o valimento que teve aqui Duarte da Paz, tendo-lhes dado a comer tantos cruzados e portugueses[84]». Depois de referir a triste victoria que obtivera, annunciava outras mais ou menos faceis. «Trabalho — proseguia elle — por amansar Ghinucci, não para me servir, mas para não me empecer. Está mais pacifico, e promessas não faltam. Se lhe podesse fazer devorar alguns cruzados, faria bom serviço a vossa alteza. Não desespero disso, porque sei os usos de Roma. Comecei a encetar os dous mil cruzados que vossa alteza me mandou dar para taes obras, e não creio que me fundisse mal a despesa, nem que damne no porvir. Fie-se vossa alteza da minha má consciencia, crendo que sou menos escaço da propria fazenda do que da fazenda real[85]». Com um agente destes, o negocio da Inquisição teria naquella conjunctura ganhado muito, se, como dissemos, a questão das duas decimas não absorvesse quasi inteiramente as attenções de D. Pedro Mascarenhas, e não lhe repugnasse conforme se deprehende da sua correspondência, tractar de um assumpto enredado de interminaveis debates juridicos, que a sua alta mtelligencia devia condemnar, embora não ousasse manifestá-lo.

O principal, ou, pelo menos, um dos principaes fins com que o infante se collocara á frente do tribunal da fé tinha sido, conforme vimos, dar aso a collisões que tornassem necessaria a remoção de Capodiferro. Apenas revestido da dignidade de inquisidor-mór, D. Henrique nomeiou novos membros para o conselho da Inquisição. Foram estes Ruy Gomes Pinheiro, depois bispo de Angra, e o augustiniano Fr. João Soares, tambem posteriormente elevado á cadeira episcopal de Coimbra[86]. A escolha de Fr. João Soares era a luva que desde logo o infante arremessava ao nuncio, ou, para melhor dizer, á corte de Roma, onde aquelle frade era assás mal visto. Nas instrucções dadas por ordem de Paulo iii a um dos successores de Jeronymo Recinati, a indole, as opiniões e os costumes do novo membro do conselho geral são descriptos de modo não demasiadamente lisongeiro. «O confessor d'elrei, Fr. João Soares — diz-se ahi — é um frade de poucas letras, mas de grande audacia e em extremo ambicioso . As suas opiniões são pessimas, e elle publico inimigo da sé apostólica, do que não duvida gabar-se, como refinado hereje que é. Todos o conhecem por tal, menos o rei, por cujo temor, e porque, com pretexto da confissão, obtem delle a solução de muitos negocios, todos o acatam. E' homem perigoso e de vida dissoluta. O paço serve-lhe de convento [87] ». O doutor João de Mello, um dos primeiros membros do conselho nomeiados pelo bispo de Ceuta, e que mais uma vez substituira o inquisidor geral nos seus impedimentos, achava-se então delegado da Inquisição em Lisboa. Creada desde logo pelo infante uma Inquisição permanente na capital, João de Mello, que se distinguia pelo seu espirito intolerante, e que delle continuou a dar provas, foi collocado á frente do novo tribunal. Esta nomeiação feria mais particularmente Capodiferro, porque naquela conjunctura um successo, talvez de antemão preparado com esse intuito, tinha feito romper as hostilidades entre o inquisidor e o nuncio. Ayres Vaz era um medico do Paço, christão-novo[88], cujo irmão Salvador Vaz entrara como pagem no serviço de Jeronymo Ricenati logo depois da chegada deste a Lisboa. Ganhara o nuncio extrema affeição ao pagem, e tanto o pae como o irmão do moço Salvador se haviam tornado intimos e commensaes de Capodiferro. Não limitava Ayres Vaz os seus estudos á medicina: tinha-se dedicado tambem á astronomia, sciencia cujos cultores naquella epocha facilmente cahiam nos desvarios da astrologia judiciaria, e Ayres Vaz deixou-se embuir da mania de propheta. Em geral, na Europa a astrologia suppunha-se uma cousa seria. Em Roma dominava mais que em parte nenhuma esta superstição, e, segundo a phrase expressiva de um escriptor contemporaneo, raro era o cardeal que para comprar uma carga de lenha não consultava astrologos e feiticeiros. O proprio papa tinha fé implicita na influencia dos astros e nas predicções astrologicas[89]. Ayres Vaz começara por fazer predicções á rainha D. Catharina: depois, subindo mais alto, fizera predicções politicas a elrei. Entre outras cousas, por occasião de um eclipse prophetisara a morte de um principe, e a prophecia tinha-se realisado no mais velho dos dois filhos que restavam a D. João iii de todos os que até ahi tivera[90]. Offerecendo ao monarcha novos vaticinios, Ayres Vaz, provavelmente mal visto já pela triste predicção da morte do príncipe, annunciava prosperos successos, mas confessava que as illações tiradas do aspecto dos astros não tinham absoluta certeza; porque Deus, os arcanos de cuja mente não ê dado ao homem perscrutar, muitas vezes annullava as influencias sideraes. Com este correctivo os vaticinios astrologicos podiam ser e eram loucura, porém não impiedade. Entretanto, uma copia do papel, dirigido pelo pobre medico a elrei sobre taes assumptos, foi cahir nas mãos do inquisidor João de Mello. Chamado por este ao seu tribunal, Ayres Vaz confessou ser auctor daquelle escripto, posto que ahi houvessem introduzido alguns periodos que não eram seus. Assignou-lhe o inquisidor um dia para vir defender-se do crime de heresia que commettera. Na conjunctura aprasada apresentou-se Ayres Vaz no tribunal, rodeiado de livros, prompto a mostrar os fundamentos scientificos dos seus vaticinios e a orthodoxia das suas opiniões. Era difficil o primeiro empenho, mas facil o o segundo, visto que elle submettera tudo aos decretos inescrutaveis da Providencia, e para se defender podia invocar o exemplo do chefe supremo da igreja. Subitamente, porém, um notario apostolico entrou no aposento e, interrompendo a solemnidade do acto, entregou ao inquisidor um papel. Era uma intimação pela qual o nuncio avocava a si o julgamento daquella causa e ordenava que o inquisidor fosse assistir a elle, levando comsigo os theologos que deviam disputar com Ayres Vaz, entre os quaes figurava Fr. João Soares. Tinha o astrologo preparado este desfecho, mas o notario antecipara a hora. O physico pretendia primeiramente dar uma severa licção aos theologos. Teve, porém, de retirar-se, porque o inquisidor, cujas esperanças eram outras , fingiu obedecer sem resistencia aos preceitos do legado apostolico[91].

Passavam-se estas cousas nos meiados de junho, quando a nomeiação do infante para substituir o bispo de Ceuta estava já resolvida. Contava, por isso, João Mello com o desforço. Foi o primeiro passo para elle collocarem-no á frente da Inquisição de Lisboa; mas o seu orgulho exigia-o mais completo. Aos autos do interrompido processo ajunctaram-se os votos dos theologos mestre Olmedo, Fr. João Soares, Fr. Jeronymo de Padilha, Fr. Luiz de Montoia e Fr. Francisco de Villafranca. Eram frades mais ou menos influentes na corte. O escripto fora unanimemente julgado por elles heretico. Revestido o infante da nova magistratura, um dos seus primeiros actos foi, portanto, ordenar a prisão de Ayres Vaz, que os officiaes do cardeal D. Affonso, arcebispo de Lisboa, arrastaram aos carceres do Aljube. A lucta estava encetada. O nuncio, que debalde tentara obstar á prisão, mandou intimar o infante D. Henrique para que lhe entregasse o processo, e o cardeal D. Affonso para que soltasse o preso; mas o promotor da Inquisição deu por suspeito o nuncio, que recusou a suspeição. Posto que esse tractasse o infante de pseudo-inquisidor, o infante appelou para a sancta sé, appelação que Capodiferro igualmente rejeitou. Os textos de direito canonico e dos praxistas voavam de parte a parte[92]. Era um drama em que o excesso do ridiculo só se temperava pela terrivel perspectiva de uma fogueira para o pobre astrologo, se, na refrega entre o agente do papa e os infantes, estes, que tinham a força material, não cedessem ás ameaças dos interdictos, cousa pouco provavel, visto que o intuito da nomeiação de D. Henrique fora causar um escandalo que désse em resultado a saída de Ricenati.

E o escandalo aproveitou-se. Elrei, que o fanatismo tornava instrumento cego destas vergonhosas contendas, escreveu uma carta ao seu ministro em Roma para que exigisse do papa o desaggravo que consistia na revocação do nuncio. A narrativa do successo, como se pôde suppor, foi exaggerada naquella carta, e os factos carregados com sombrias cores. Queixava-se D. João iii, sobretudo, de haver Capodiferro procedido naquelle caso sem o prevenir e de ter inhibido officialmente o infante de usar do seu officio, negando a legitimidade de uma nomeiação feita por elle rei. Ordenava a D. Pedro que dissesse ao papa, como advertencia propria, que, se não retirasse o nuncio, este seria expulso, até para evitar alguma commoção popular; e rompendo, emfim, um silencio que D. João iii dizia ter guardado por excesso de delicadeza para com o pontifice, accusava o delegado apostolico de todo o genero de corrupções e de ser pelo seu procedimento immoral em Lisboa o opprobrio da corte de Roma[93].

Tal era o estado a que as cousas tinham chegado; taes as tristes consequencias dos erros commettidos por um principe ignorante e fanatico, dominado por frades e por hypocritas, e que tomara por principal mister de rei perseguir a porção mais rica e mais industriosa dos proprios subditos, embora tragando affrontas, arruinando o paiz, abrindo o campo a todo o genero de immoralidades, calumniando o christianismo e desobedecendo aos preceitos da tolerancia e da caridade evangelicas. Se Capodiferro, movido por paixões cegas, desacatara dous prelados e principes, não tinha elle, por paixões igualmente ignobeis, envilecido de antemão o episcopado sollicitando a Inquisição, tribunal que, sendo uma verdadeira delegação pontificia, cerceava numa das suas funcções mais importantes a auctoridade dos bispos? A fonte d'onde dimanava o poder do inquisidor geral era a mesma d'onde derivava a do nuncio. Se a bulla de 23 de maio de 1536 attribuia ao primeiro a magistratura superior no julgamento dos que deslisavam da fé, o breve de 9 de janeiro de 1537 e as instrucções officiaes que se lhe haviam dado por occasião da sua vinda a Portugal auctorisavam o segundo para proceder como procedera, e ainda para ír mais longe. Podia ter sido violento e descortez mas não exorbitara do seu direito; e, se a dignidade real fora, indirectamente humilhada naquelle conflicto, D. João iii só tinha a queixar-se de si, que preparara os elementos de tantos desconcertos.

Se, porém, elrei deferia á cúria romana a resolução da contenda, o nuncio não se esquecia de ordenar com vantagem a propria defesa. O mensageiro por quem enviou os documentos que o favoreciam chegou com seis dias de antecipação ao correio mandado pela corte de Lisboa. Assim, os dous protectores de Capodiferro, o cardeal Farnese e o seu mentor, o secretario de Paulo iii, Marcelo Cervino, bispo de Neocastro (elevado depois ao pontificado com o nome de Marcello ii) poderam inteirar-se de tudo e prevenir-se para a lucta antes de D. Pedro Mascarenhas receber a noticia do successo e as instrucções que se lhe remettiam. Estavam Marcello e Farnese vendidos a Capodiferro, que repartia com elles das suas rapinas[94], e por isso exposeram o negocio perante o papa a uma luz desfavoravel a elrei e seus irmãos. Tinham, porém, que contender com duro adversario. D. Pedro, recebendo de Paulo iii commanicaÇão official do successo, obteve por Ghinucci (que, para nos servirmos da sua expressiva phrase, parece já tinha amansado) copia dos documentos enviados por Jeronymo Ricenati, e com elles se preparou para o combate. Não tardaram, porém, a chegar os que elrei lhe remettia, e que, concordando em geral com os do nuncio, eram, todavia, mais completos. Tendo consultado habeis jurisconsultos, o embaixador pediu uma audiencia ao papa. Contava com a opposição, e ía precavido para lhe contrapor a astucia. D. Pedro não falava italiano, e o papa tirava disso vantagem nas discussões diplomáticas. Quando lhe convinha, entendia o português; quando lhe não convinha, succedia o contrario. Vice-versa, embora o embaixador invocasse em qualquer occasião as suas anteriores palavras, se tinha mudado de parecer argumentava com a ignorancia de D. Pedro, para affirmar que o percebera mal e que tal cousa não dissera. Contra esta má fé, adoptara o ministro o arbitrio de lhe apresentar escriptas em italiano as materias mais arduas, com o pretexto de não o constranger a decifrar o português. Remediava assim, em parte, o mal. Da carta d'elrei levou vertidos os periodos que deviam ser communicados ao pontifice. Ao chegar perante este, achou ali Farnese e Marcello, circunstancia nova em taes audiencias. Apressou-se o papa a explicar-lh'a. Eram elles que tinham de tractar do assumpto, e podiam assim ficar desde logo inteirados da materia. Persuadido de que intentavam confundi-lo, o ministro português dissimulou, agradecendo ao pontifice os seus desejos de abreviar o negocio e pedindo-lhe que fizesse juiz da contenda o proprio Farnese, que, como prelado e principe, não podia deixar de entender com que respeito cumpria fossem tractados taes principes e prelados como os infantes de Portugal. Apresentando então o original e a versão da carta d'elrei, e lida esta ultima por Marcello, observou o papa que toda a questão se resumia em dous pontos : em se pedir que o nuncio fosse revocado e em se enumerarem os seus erros; que, pelo que respeitava ao primeiro, a solução era facil, porque elle tinha como regra não conservar em qualquer corte um agente que não agradasse ao respectivo soberano; mas, pelo que tocava ao segundo, era necessario appreciar o procedimento de Capodiferro, porque a fórma da revocação dependia desse facto, honrando-o se estivesse innocente, punindo-o se estivesse culpado. A isto accrescentou que as pessoas a quem mandara examinar a questão e os documentos enviados pelo nuncio achavam que elle tivera fundamento para se offender da desobediencia dos infantes, visto que, como eclesiásticos, tinham mais restricto dever de respeitarem o pontifice do que o soberano; que em não reconhecer D. Henrique por inquisidor-mór eslava a razão da parte do nuncio, supposto o defeito de idade; que, ainda quando o não houvera, nem elle papa, nem elrei deviam consentir em que o infante exercesse tal cargo ; elrei, porque, sendo o impetrante da Inquisição, não era decente nomeiar seu proprio irmão juiz de causas em que interessava ; elle papa, porque tinha que dar contas a Deus e ao mundo da concessão daquelle tribunal. Concluiu o pontifice por declarar que, se ao embaixador restavam outros cargos contra Jeronymo Ricenati, os désse por escripto, para se verificar a sua exacção e punir-se o nuncio no caso de estar culpado[95].

As ponderações de Paulo iii eram ao mesmo tempo razoaveis e astutas. Mostrava-se prompto a revocar Capodiferro; mas, desde que este era accusado, cumpria averiguar a verdade das accusações. Sem isto, tornava-se arduo escolher o modo da revocação. A prompta acquiescencia do pontifice aos desejos da corte de Portugal ficava assim em vans palavras emquanto se não dirimisse a questão da culpabilidade. Accusando officialmente o nuncio, o proprio D. João iii se envolvera num dedalo de discussões interminaveis.

Apesar, porém, do terreno vantajoso em que o papa se collocara, o embaixador combateu com destreza as suas objecções. Recordou-lhe que a nomeiação do infante fora já virtualmente approvada por elle papa, quando, pouco havia, se lhe communicara esse facto; porque, pedindo ao mesmo tempo elle embaixador que se tirasse ao nuncio o direito da revisão, para não ficar superior ao infante, e se esclarecessem alguns pontos obscuros da bulla de 23 de maio, sua sanctidade se limitara a dizer-lhe que transmittisse a Ghinucci, Simoneta e Santiquatro, dos quaes se compunha a commissão encarregada deste negocio, os apontamentos sobre as reformas pedidas, declarando-lhe que, sendo seu representante o nuncio, nenhum desar havia para o infante em lhe reconhecer superioridade, o que era necessario por emquanto para os christãos-novos se persuadirem de que tinham recurso contra os inquisidores; que, usando de tal linguagem, sua sanctidade approvara virtualmente a nomeiação. Em seu entender, os infantes tinham mostrado todo o respeito á sé apostolica dissimulando a insolencia de Capodiferro, que, por excesso de paixão, se mostrara indigno do cargo que exercia, e sustentou que a revocaçâo se podia verificar independente do processo. Fazendo allusões pungentes á corrupção dos ministros pontificios, desmascarou Marcello e Farnese, provando pelas declarações contradictorias dos dous que nem os proprios documentos remettidos pelo nuncio tinham sido apresentados senão em extracto aos jurisconsultos a quem Paulo iii incumbira o exame juridico da materia, e ajunctando ás exprobações a ironia, perguntou a Marcello se o extracto fora feito e traduzido pelo procurador dos christãos-novos, por cuja intervenção a corte de Roma recebera os papeis enviados pelo seu representante em Lisboa. Substituindo assim a aggressão á defesa, obrigou o papa a mostrar-se agastado contra Marcello e Farnese, ordenando-lhes que entregassem o exame da materia aos cardeaes Ghinucci e Del Monte, traduzindo-se os documentos vindos de Portugal por quem o embaixador entendesse. Entretanto, na questão de ser o infante inquisidor-mór, negou que as suas palavras tivessem significado a approvação de um facto que elle reputava odioso, embora D. Pedro Mascarenhas sustentasse a validade da nomeiação e previsse fataes consequencias da colera d'elrei. Pelo que tocava á revocação do nuncio, declarava que, se D. João iii insistisse nella, dando-se tempo para se lhe escolher successor, o faria retirar, mas sem demonstrações de desagrado, no qual só poderia incorrer Capodilerro se lhe fosse provada culpa. O pontifice, que a principio titubeiara diante da aggressão do embaixador, accendendo-se gradualmente, concluiu tambem por fazer graves recriminações. O que elrei não queria, quanto a elle, era que houvesse nuncio em Portugal; que não descansara sem expulsar Sinigaglia, e que procurara pôr obstaculos á enviatura de Capodiferro. Declarava, porém, que, se era esse o alvo a que se tendia agora, o mais conveniente sería falar claro; mas que se lembrassem de que, se a sancta sé enviava delegados aos paizes catholicos, era para o melhor serviço da igreja, e para poupar aos povos o incommodo e a despeza de irem sollicitar em Roma os despachos e graças apostolicas de que tantas vezes careciam[96].

Esta explosão iracunda do papa subministrava a D. Pedro Mascarenhas ensejo para lhe dizer duras verdades. Não era homem que o desaproveitasse. Ou porque de feito se doesse da linguagem severa do supremo pastor ácerca das intenções do seu soberano, ou porque lhe conviesse fingi-lo, o embaixador repelliu com mostras de indignação a idéa de haver em elrei pensamento reservado ácerca dos nuncios, ou sequer malevolencia pessoal contra Jeronymo Ricenati. Quando, porém — observava elle — a corte de Portugal repugasse a uma nunciatura permanente no paiz, não era isso extranhavel, porque havia duas razões para semelhante repugnancia. Era a primeira ser a nunciatura cousa nova e insolita : era a segunda o mau procedimento dos representantes da sancta sé. D'antes, os papas enviavam só legados extraordinarios em casos urgentes. Clemente vii fora quem estabelecera um nuncio residente, D. Martinho de Portugal; mas este, ao menos, era português. Depois viera Sinigaglia, antes como colleitor das meias annatas, que se deviam das igrejas, do que como nuncio. Protrahindo a sua residencia até a morte de Clemente vii, Marco della Ruvere só se retirara quando fora substituido por Capodiferro. A historia da nunciatura em Portugal era asquerosa, no entender do embaixador. Sinigaglia, abusando dos poderes de que estava revestido, tinha sido um verdadeiro tyranno, e o papa fallecido tê-lo-hia, por certo, punido, se vivera, ou o paiz o repelliria do seu seio. Capodiferro seguira o exemplo do antecessor; mas, achando o caminho aberto, progredira com mais rapidez, até chegar ao extremo de insultar a familia real[97]. Na sua opinião, os nuncios eram o flagello do reino; porque offendiam a justiça, damnificavam as fortunas e corrompiam a religião, bastando attender a que tres quartas partes dos individuos de vulto em Portugal se podiam considerar membros do corpo ecclesiastico, uns como sacerdotes, outros como minoristas, outros como commendadores das ordens militares. A bem dizer, estendia-se a todos e a tudo a jurisdicção do nuncio, «em quem — observava o ministro português — com pouco trabalho e dinheiro achamos recurso para nossas culpas, fiados no que, e na facil exempção do castigo, os malfeitores se abalançam a perpetrar os maiores delictos». Se o pontifice continuasse a mandar esses delegados permanentes, aconselhava-o como christâo (porque o que dizia era nessa qualidade e não na de embaixador) a que fosse severiíssimo na escolha, de modo que os seus representantes cuidassem mais no serviço da igreja do que em se enriquecerem, como até então haviam feito. Ainda assim, affirmava que, se qualquer nuncio se conservasse durante seis mezes em Portugal, por mais virtuoso que fosse, tornar-se-hia tão mau como os passados, sobretudo se tivesse o direito de revisão nos processos do tribunal da fé. Os lucros que d'ahi provinham á nunciatura eram taes, e a liberdade dos christãos-novos tamanha, que não só homens, mas até pedras, por assim dizer, se corromperiam. «A prova disso — accrescentava maliciosamente o embaixador — tinha-a sua sanctidade no valimento de que gosava em Roma o procurador dos conversos, d'onde se podia conjecturar qual seria a influencia que os mesmos conversos exerceriam sobre o nuncio em Portugal, onde estavam tão perto deste, e elle tão longe do papa, sobre quem recahia a infamia de todos esses abusos, ao passo que o proveito era dos seus delegados[98]

O desassombro com que D. Pedro falara produzira o effeito que desejava. Paulo iii collocou-se na defensiva. Deplorou que taes factos se practicassem, promettendo providencias, e admirando-se de que, no meio de tantos desconcertos, não tivesse havido quem se queixasse para Roma. A resposta, porém, do embaixador foi peremptoria. Ninguém se queixava, porque a persuação geral era que todas as representações dirigidas á curia romana neste sentido seriam inuteis. Assim, as cousas teriam continuado indefinidamente no mesmo estado, se o núncio não houvera commettido a imprudência de entrar em lucta com os infantes, suscitando com tal procedimento a animadversão d'elrei[99]. Era uma triste confissão a que D. Pedro Mascarenhas fazia. A corte de Portugal tolerara as demasias e prevaricações de Capodiferro, e continuaria a tolerá-las, se uma questão de orgulho não a tivesse revocado ao sentimento do proprio dever e ao zelo, um pouco tardio, da moralidade e da justiça.

Depois desta tempestuosa audiencia, Paulo iii partiu para Tivoli e Frascati, d'onde só voltou a Roma a 5 de setembro, saíndo de novo para Loreto passados quatro dias. Debatia-se entretanto a questão do nuncio e dos infantes entre os cardeaes Ghinucci e Del Monte e os advogados escolhidos pelo embaixador para sustentarem a causa dos principes. Se os factos que Capodiferro allegava nas suas informações eram exactos, elle nem os injuriara, usando de um direito que ao mesmo tempo era um dever seu, nem deixara de guardar respeito ao soberano e a seus irmãos, mandando rogar antecipadamente a D. Joãoiii por um dos seus proprios validos, cujo testemunho invocava, que não o compellissem a usar dos poderes que lhe haviam sido commettidos. Por estas e outras circumstancias a discussão protrahia-se, e o embaixador não podera, durante os quatro dias que o papa se demorou em Roma, alcançar nova audiencia. Com a audacia, porém, que o caracterisava, D. Pedro Mascarenhas penetrou, emfim, alta noite e quasi á força no sacro palacio, poucas horas antes da partida do papa para Loreto. Estava convencido de que a repugnância do pontIfice a ouvi-lo procedia de querer evitar emquanto podesse a revocação do nuncio, e queixou-se amargamente da desconsideração com que eram pospostos os negocios mais urgentes delrei seu amo. O despeito de Paulo iii pela intrusão do embaixador converteu-se em explicações e desculpas. Quiz depois convencê-lo da conveniencia de ficar em Roma para convalescer de uma doença que padecia; Mas D. Pedro Mascarenhas recordou-se naquelle momento de uma promessa de romagem ao sanctuario do Loreto, promessa para cujo cumprimento achava a conjunctura propicia. Posera o papa a mascara da benevolencia; elle punha a da devoção. Vieram, emfim, a um accordo. D. Pedro ficaria em Roma ainda um dia para ver certas notas que Ghinucci e Del Monte deviam transmittir-lhe sobre a reforma da Inquisição, e depois iria encontrar-se com o papa em Viterbo, onde tambem estaria Santiquatro, e d'onde se expediria para Portugal um correio com as resoluções ahi tomadas[100].

Supposta a astucia da corte de Roma, sería licito suspeitar que as annunciadas communicações de Ghinucci e Del Monte eram um meio a que se recorria para suscitar embaraços ao embaixador, distrahindo-lhe a attenção com um negocio não menos importante que o da revocação do nuncio, e, além disso, complexo e difficil. Entretanto, o mais provavel é que os protectores dos conversos instassem pelas modificações da bulla de 23 de maio, que os mesmos conversos pediam, antes que Capodiferro saísse de Portugal e elles ficassem entregues sem protecção ás perseguições de que era annuncio nada equivoco a mudança de inquisidor-mór. Fosse o que fosse, é certo que os dous cardeaes effectivamente apresentaram a D. Pedro Mascarenhas os pontos sobre que o papa resolvera deferir favoravelmente ás supplicas dos christãos-novos. Debatida a materia, depois de examinada pelos advogados da coroa escolhidos pelo embaixador, a questão veio a cifrar-se em duas resoluções importantes, ácerca das quaes os cardeaes declararam positivamente que o papa não cederia. Era a primeira, que nos processos por heresia se communicassem aos réus, não sendo estes pessoas poderosas, os nomes das testemunhas de accusação: era a segunda, que do conselho geral da Inquisição houvesse recurso sempre para a sancta sé. Conhecendo que todas as diligencias para mover Ghinucci e Del Monte eram baldadas, porque se limitavam a dizer que não eram senão interpretes da decisiva vontade do pontifice, o embaixador pediu que, ao menos, se lhe désse espaço para communicar á sua corte aquella resolução, e receber instrucções. Nem isso, porém, pôde obter. Os cardeaes respondiam a todas as ponderações de D. Pedro que não estavam auctorisados para conceder semelhante mora, e que o conhecimento que lhe haviam dado daquelle assumpto fora pura formalidade, visto serem as deliberações tomadas negocio de consciencia para o pontifice, e não assumpto de controversia diplomatica[101].

Duas causas urgentes chamavam, portanto, D. Pedro Mascarenhas á conferencia promettida para Viterbo, onde effectivamente foi alcançar o papa e onde encontrou já Santiquatro. Alli, em Montefiascone e em Orvieto, perseguindo com instancias incessantes o pontifice, pôde obter que a minuta da nova bulla ácerca da Inquisição fosse revista pelos cardeaes Santiquatro e Jacobacio de accordo com Del Monte; e posto que não viessem a modificar-se nas conferencias as resoluções adoptadas, o embaixador chegou com a propria insistencia e com o favor de Santiquatro a alcançar que a expedição definitiva da bulla declaratoria se não verificasse antes de se enviar copia della a D. João iii[102]. Entretanto, esta concessão não foi feita sem condições assás restrictas. A primeira era entender-se que os tres annos concedidos aos christãos-novos, para serem julgados nos casos de heresia segundo as formulas estabelecidas para os processos crimes ordinarios, ficavam in petto (mentalmente) prorogados desde logo, visto estar a expirar esse praso marcado na bulla de 23 de maio de 1536: a segunda era que a resposta d'elrei deveria chegar impreterivelmente até 15 de novembro, alliás expedir-se-hia a bulla declaratoria: a terceira consistia em intimar elrei os inquisidores, logo que chegassem as cartas do embaixador, para não innovarem a fórma do processo até ulterior resolução: a quarta e ultima vinha a ser que, dada a hypothese de não chegarem essas cartas senão depois de haver expirado o praso dos tres annos, se porventura se tivesse vesse já prendido algum christão-novo e começado a processar com as formulas ordinarias da Inquisição, ficaria o processo suspenso até final resolução sobre a materia. Por outra parte, os tres pontos em que o papa declarava estar firmemente resolvido a não ceder eram que o infante fosse demittido do cargo de inquisidor-mór; que se estabelecesse de modo positivo o recurso para Roma, que, finalmente, se posesse como regra communicarem-se os nomes das testemunhas de accusação aos réus, não sendo estes pessoas poderosas, reservando para si o pontifice designar quaes deviam ser incluidos nessa categoria. O embaixador obrigou-se ao cumprimento das quatro condições, sob a pena que o papa lhe quizesse impor. A mais certa garantia, porém, destas convenções, no sentir de Paulo iii, era o direito que tinha de acabar com a Inquisição, se ellas não fossem cumpridas[103]. Entretanto, para que a primeira condição podesse effectivamente realisar-se, expediu-se de prevenção um breve ao nuncio, estatuindo que, apenas expirasse o praso dos tres annos relativo á ordem do processo dos réus de heresia, continuasse a seguir-se o mesmo systema, emquanto se não chegava a accordo definitivo sobre aquelle assumpto[104].

Communicando a elrei estas resoluções, D. Pedro Mascarenhas expunha com franqueza a sua opinião e o estado verdadeiro das cousas. Tinha feito quanto humanamente era possivel para combater as intentadas declarações. A discussão placida, as scenas violentas, em que de parte a parte se descera até as injurias grosseiras[105], tudo fora inutil para com o papa e Del Monte. Não esperava, portanto, que as ponderações enviadas de Portugal tivessem mais força que as suas e as do cardeal protector. Se quizessem allegar, para se não revelarem os nomes das testemunhas, as vinganças dos christãos-novos contra ellas, cumpria provar o perigo com factos e não com vagas declamações; porque os christãos-novos provavam com documentos indubitaveis as perseguições que lhes faziam e as demonstrações de malevolencia que lhes davam; e não se contentando de apresentar esses documentos na Róta ou ao papa, tornavam-nos publicos pela imprensa. Espraiando-se em elogios ao infante D. Henrique e á sancta intenção com que elrei o posera á frente do tribunal da fé, aconselhava, todavia, que elle proprio resignasse o cargo. Estava persuadido de que o pontifice não cederia nesse ponto, e de que isso devia custar tanto menos, quanto era certo que se tinha obtido a revocação do nuncio, principal fim da nomeiação do infante. Quanto ás appelações para Roma, suppunha que ainda se poderia vencer não se tractar desta materia na bulla declaratoria, conservando-se a questão irresoluta, como se deixara na de 23 de maio de 1536, sem se affirmar nem negar a existencia do direito de appelaçâo, maiormente attendendo a que ainda faltavam sete annos para acabar o praso em que os confiscos eram prohibidos, questão talvez a mais grave para os conversos, e na qual, sobretudo, lhes importaria depois poderem appelar para Roma. No que, porém, tocava á revelação dos nomes das testemunhas, o embaixador promettia a elrei suscitar taes embaraços com as objecções, quando se tractasse de definir quaes eram os réus poderosos , que, por fim, de excepções em excepções, viriam a conceder tanto ou mais do que se desejava, ficando quasi todos os christãos-novos directa ou indirectamente incluídos nellas e, por consequencia, annulladas as vantagens que os mesmos esperavam tirar por esse lado da bulla declaratoria[106].

No meio destas questões sobre o futuro modo de proceder da Inquisição, tinham acaso esquecido as discordias do nuncio com os infantes, ventiladas a principio com tanto fervor? Desde que o papa accedia á revocação de Jeronymo Ricenati, a contenda tomava um caracter benigno, e a necessidade de estampar na fronte do delegado apostolico o ferrete das suas corrupções tornava-se menos urgente. Ao mesmo tempo o papa, que resolvera mandar julgar a causa de Ayres Vaz pelo cardeal D. Affonso conjunctamente com o nuncio, advertido de que seria impossivel fazer concorrer os dois adversarios a esse acto, irritados como estavam um contra o outro, buscara a solução da difficuldade em ordenar que o réu, solto sob fiança, viesse justificarse na curia romana. Sem deixar de transmittir á sua corte este expediente, o ministro português ponderava, todavia, a inconveniencia de consentir num facto que abriria exemplo para os christãos-novos evitarem o castigo, facilitando-se-lhes saírem de Portugal para Roma. Usando de uma metaphora vulgar, mas energica, D. Pedro Mascarenhas fazia sentir as consequencias de um arbitrio que o papa considerava ou fingia considerar como natural e simples[107].

Entretanto, um incidente inesperado esteve a ponto de annullar ou, pelo menos, de retardar nos seus effeitos os esforços do embaixador. A larga negociação sobre as duas decimas que elle tinha conduzido a termos vantajosos fora transtornada em Portugal pelo clero, que, com approvação do poder civil, viera a um accordo com o nuncio. Não nos dilataremos com um assumpto que não pertence ao objecto deste livro. Baste saber-se que esse facto foi communicado ao ministro português quando concluira com Paulo iii um contracto em que, a troco de composição ou resgate comparativamente moderado, se remia aquella extorsão, ou, para melhor dizer, em que o papa cedia ao rei o direito de a converter em proveito proprio. Mas a desvantagem politica da inopinada transacção ainda era maior que a economica. D. Pedro, estribado nas terminantes instrucções que recebera de Lisboa, tinha certificado o papa de que elrei cortara todas as relações diplomaticas com o nuncio depois da affronta feita a seus irmãos, e resolvera não tornar a renová-las por caso algum. O pacto feito em Lisboa sobre as decimas, cujo conteúdo Capodiferro transmittira para Roma, desmentia, porém, solemnemente essa affirmativa. Por outro lado, o embaixador tinha já alcançado mandar-se expedir o breve de revocação, independente de ulteriores exames sobre o procedimento do delegado apostolico; mas, á vista da boa harmonia que esse facto indicava existir agora entre o governo português e o nuncio, repugnava ao papa enviar o breve, tanto mais que se tornava necessario dar tempo a Ricenati para realisar os ajustes que fizera. Tal era a situação difficil em que os erros da corte de Portugal collocavam o seu ministro, cujo despeito se manifesta de modo nada equivoco na respectiva correspondencia[108]. A' força, todavia, de perseverança, ajudada pela activa cooperação de Santiquatro, e tendo tido a arte de persuadir Paulo iii de que a transacção, feita em Lisboa, nem era segura, como aliás o era a celebrada com elle, nem daria provavelmente os resultados vantajosos que se esperavam, D. Pedro Mascarenhas chegou a obter a acceitação de um termo medio entre os dous contractos, obrigando-se a pagar em Roma, dentro de breve praso, a somma convencionada, e fazendo com que finalmente se expedisse o breve de revocação ao nuncio, designando-se-lhe o termo para sair de Portugal até 1 de novembro, visto haverem desapparecido, com os ajustes definitivos sobre o resgate das decimas, todos os pretextos plausiveis para ulteriores demoras [109].

Mas o papa, se, por um lado, fazia concessões importantes, temperava, por outro, o contentamento do embaixador com uma resolução que não menos lhe contrariava as pretensões. Posto que houvesse convindo em retardar a expediçâo da bulla declaratoria relativa á Inquisição , tinha-o feito no presupposto de que se dilataria a saída do nuncio até se appreciar devidamente de que lado estava a razão na sua contenda com os infantes, e até se lhe poder enviar successor. Agora, porém, que as circumstancias mudavam, entendia que não lhe era permittido abandonar os conversos, visto que, além de ser chegada a epocha em que cessavam para elles as garantias do processo civil ordinario nos julgamentos da Inquisição, ía sair de Lisboa o unico homem que, pela auctoridade de que estava revestido, podia ampará-los efficazmente contra os odios e perseguições injustas dos seus figadaes inimigos. Nesta parte, Paulo iii mostrava-se firme, e a perseverança e insistencia do embaixador e de Santiquatro luctaram em vão com a sua inabalavel vontade. Ou consentirem na conservação do nuncio ou na expedição da bulla declaratoria. Deixava ao arbitrio delles a escolha entre estas duas soluções[110].

D. Pedro Mascarenhas teve, portanto, de ceder. Ao passo que se redigia o diploma pontificio, pelo qual se aclaravam as disposições da bulla de 23 de maio, e se determinavam melhor os limites da acção dos inquisidores em relação aos conversos, o ministro português recebia o maço fechado da correspondência do pontifice para Capodiferro, onde se continha o breve de revocação. Remettendo-o para Portugal, D. Pedro Mascarenhas demittia de si qualquer responsabilidade ácerca do modo por que esse breve fora redigido, visto que se lhe dera fechado[111]. Desconfiava de tudo quanto partia da corte de Roma, e por isso avisava o seu governo de que, fossem quaes fossem as palavras do breve, a declaração feita pelo papa, de que os poderes de Ricenati como delegado apostolico cessariam desde o momento em que o recebesse, e de que a sua demora em Lisboa não passaria além de 1 de novembro, tinha sido categorica, e Santiquatro tomara della por escripto uma nota que enviava. Não deviam, portanto, em caso algum consentir-lhe o menor acto de jurisdicção, nem admittir que se conservasse no reino mais um dia além do praso marcado. Pelo que, porém, dizia respeito á bulla declaratoria, consolava elrei, não só com as vantagens obtidas a troco de ceder neste ponto, e com a consideração de que mais tarde ou mais cedo ella viria a conceder-se, ainda que se lhe obstasse agora, mas tambem com a esperança de se poder annullar de futuro. Na sua opinião, cumpria enviar a Roma para tractar deste assumpto, como varias vezes tinha aconselhado, um jurisconsulto habil, a quem se pagasse bem, para se não tentar a receber dos agentes dos christãos-novos alguma compensação da parcimonia com que fosse retribuido pelo governo. Ponderava que, sendo a bulla declaratoria resultado das grossas peitas, que obrigavam a curia romana a tanta sollicitude, recebido o dinheiro o negocio se tornaria mais facil, e os argumentos contra essas providencias achariam mais desembaraçados os ouvidos daquelles mesmos que as reputavam indispensaveis emquanto não tinham bem seguro o preço das suas venalidades[112].

Como acabamos de ver, os resultados das negociações com o embaixador português, resumidos na sua expressão mais simples, eram, quanto á saída do nuncio, que se lhe assignalasse o curto praso de um mez incompleto para a verificar, e quanto á nova bulla relativa á Inquisição, que se estatuisse a communicação dos nomes das testemunhas de accusação aos réus de heresia, e que se estabelecesse positivamente o direito de appelaçâo. Eram os dous pontos em que o papa não cedera, bem como em não reconhecer a idoneidade do infante arcebispo para exercer o cargo de inquisidor geral, objecto que não devia ser considerado na bulla e que, por assim dizer, ficava pendente. Mas, se o enviado de D. João iii podia vir a estes accordos com o papa, a chancellaria apostolica podia falsificar tudo, como o embaixador parece que previa. Foi o que ella fez. Esse breve que se lhe entregara fechado, a fim de o transmittir ao nuncio por intervenção do seu governo, dando-se assim a certeza a este de que fora expedido, encerrava na verdade a revocação de Ricenati, mas advertindo-se-lhe que a partida fosse quando commodamente o podesse fazer, e asseverando-se-lhe que a sua vinda sería summamente grata ao pontifice, que se queria aproveitar das suas virtudes de prudencia e de lealdade[113]. Quaes estas fossem sabe-o o leitor. A bulla declaratoria, longe de abranger os dous unicos pontos concordados, era amplissima, e dirigida exclusivamente a proteger os christãos-novos. Se, como o embaixador português affirmava, esse diploma custara caro, é preciso confessar que a mercadoria justificava a elevação do preço. Expedida immediatamente depois do breve, a bulla estatuia que em qualquer causa crime sobre materias de fé, sendo o réu de origem judaica, se procedesse conforme as condições e regras que se estabeleciam agora. Eram ellas: que o inquisidor-mór não podesse delegar a sua auctoridade senão por impedimento absoluto e em individuo que tivesse todos os requisitos canonicos; que os inquisidores ordinarios não fossem vitalicios, nem recebessem salarios ou emolumentos pagos pelos bens dos réus, prestando juramento no acto da posse de bem servirem, sendo punidos, e resarcindo as partes lesadas pelas injustiças e abusos que practicassem; que os accusadores e testemunhas, sendo achados em falsidade, fossem tambem punidos e reparassem o damno; que não se lhes indicasse previamente o que e por que modo deviam depor; que ninguem fosse preso sem sufficientes indicios, e que os carceres servissem para retenção e não para castigo; que não se dessem tractos sem fortes motivos, ouvidos primeiramente os réus, e que esses tractos não excedessem os que se davam nos outros crimes; que não se procedesse contra os christãos-novos só por delação dos encarcerados, feita no meio dos tormentos ou, ainda, fóra delles; que os nomes dos accusadores e testemunhas de accusação fossem communicados aos réus, não se reputando estes por poderosos só por serem christãos-novos, tanto mais que se devia attender a quanto a Inquisição era protegida por elrei; que no caso, porém, de se dar a hypothese de um réu poderoso assim o declarassem por escripto e de commum accordo o inquisidor-mór e o respectivo prelado diocesano, dando-se ao réu vista da declaração para a contrariar; que se podessem pôr suspeições aos inquisidores, promotor, notario e mais officiaes da Inquisição; que em caso nenhum houvesse distincções odiosas, nas prisões, na ordem do processo e nos castigos, entre os christãos-velhos e christãos-novos; que as commutações das penas em dinheiro se não consentissem sem acquiescencia dos sentenciados; que em todos os casos se admittisse a reconciliação dos réus, não sendo relapsos, ainda depois de julgados; dos sacerdotes até serem degradados das ordens, e dos seculares até o momento do supplicio, embora se allegasse que os movia não o arrependimento mas o medo; que a sentença, em virtude da qual alguem fosse relaxado ao braço secular, se publicasse antes de cumprida, logo que se requeresse a sua publicação; que, interposta appelação para a santa sé das sentenças interlocutorias injustas ou de algum outro aggravo, quer fosse do inquisidor-mór, quer dos menores, quer do conselho geral, o negocio ficasse parado até haver resolução pontificia; que não se prégassem sermões escandalosos incitando os povos contra os conversos, devendo sobretudo evitar semelhantes abusos os prégadores e os parochos. Emfim, ordenava-se expressamente que em todas as duvidas que recrescessem, tanto ácerca da intelligencia desta bulla, como de tudo o mais que dizia respeito ás attribuições da Inquisição, se recorresse á sé apostolica. As cautelas de direito para que as precedentes providencias não fossem burladas, e a imposição das penas canónicas contra os que as menoscabassem punham o remate a tão importante documento[114].

Esta bulla era uma nova victoria que a tolerancia alcançava, embora para a obter se houvesse derramado profusamente o ouro. Ás concessões nella contidas a benevolencia da curia romana acrescentou pouco depois outra não menos importante, posto que a occasião de a aproveitar ainda estivesse remota. Faltavam sete annos para terminar o praso em que a condemnação dos réus de heresia não podia ser aggravada pelo perdimento dos bens. Apesar disso, passou-se uma bulla secreta aos christãos-novos, pela qual os confiscos nos crimes religiosos ficavam perpetuamente abolidos. Era uma prevenção a que podiam soccorrer-se terminados os sete annos, se nessa conjunctura as circumstancias lhes fossem menos propicias[115].

Tal era o estado da contenda nos fins de 1539. No proseguimento da narrativa veremos como essa victoria dos perseguidos não passava de um clarão fugitivo, de uma van esperança, e como a indomável pertinacia dos seus adversarios, a traição dos seus proprios irmãos e a má fé da curia romana e dos delegados pontificios vinham dentro de pouco tempo tornar inuteis tantos esforços e sacrificios.

Notas

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  1. É o que resulta das duas cartas de Santiquatro a elrei de 10 e de 16 de dezembro de 1535. na G. 20, M. 7, N.° 1; e da carta de Alvaro Mendes, embaixador juncto a Carlos v, de 27 de dezembro de 1535, na G. 2, M. 5, N.° 3.
  2. Cartas de Santiquatro, cit.
  3. Carta de Santiquatro de 17 de dezembro de 1535, no Corpo Chronol., P. 1, M. 56. N.° 111.
  4. Carta de Alvaro Mendes de 27 de dezembro de 1535 (l. cit.), e carta de D. Henrique de Meneses, de Napoles, a 17 de janeiro de 1536, no C. Chronol., P. 1, M. 56, N.° 128.
  5. Carta de A. Mendes de 27 de dezembro, l. cit.
  6. Carta de D. H. de Meneses de 17 de janeiro de 1536, l. cit.
  7. Carta de Alvaro Mendes, de Napoles, a 3 de fevereiro, extractada nos apontamentos de Fr. Luiz de Sousa (Ann. de D. João iii, p. 397)
  8. «Acerca das feridas que la lhe foram dadas (a Duarte da Paz) afirmay tambem a S. S. que nunqua em tal cuidey, nem foy em minha sabedoria, e crede vós também e o afirmay a S S., que se eu tal cousa cuidara se fizera de outra maneira e que lhe ficara pouquo luguar pera suas malicias, e certo que eu receby muyto desprazer de tal lhe ser feyto tanto em presença do Sancto Padre, como dizês, e que o que me foy dicto depoys de seu ferimento foy dizerem-me que um clerigo com que ele tinha debates lhe fizera ou mandara fazer aquele ferimento»: Minuta da carta d'elrei a Santiquatro, depois de junho de 1536, na G. 2, M. 1, N.° 28 — O que vai em italiano está riscado.
  9. De 5 a 18 de abril: Pallavicino, istoria de Conc. di Trento, L. 3, c 19.
  10. Memoriale (Symm., vol 31, f. 42 e seg.).
  11. Corpo Chronol., P 1, M. 57, N.° 31: — V. de Santarem, Quadro Elem., T. 2, p. 75.
  12. Memorial, l. cit.
  13. Esta carta, que se acha no Codice do Vaticano 6210, a p. 21, foi transcripta na Symmicta (vol. 2, f. 232) com a data de 1 de março de 1550, quando do proprio contexto se conhece pertencer ao anno de 1536, porque, entre outros indicios, o nuncio allude não só á ida de Carlos v a Roma, como cousa que ainda se esperava, mas tambem ao casamento do infante D. Duarte, que se dizia D. João iii ter em mira fazer, e que effectivamente se realisou em 1537. Duarte da Paz é alli denominado constantemente il commendatore. Escripta com interrupções, vê-se que foi começada a redigir em janeiro, e só se fechou no 1.° de março.
  14. «ne con metterli timore, servato il decoro»: Ibid.
  15. «havea ció fatto per ruinarla con Nostro Signore»: Ibid.
  16. «che Nostro Signore si reputeria ingannato»: Ibid.
  17. «dubitavo nel futuro ritrovassero sua santitá e tutti gli altri fredi»: Ibid.
  18. «piú mísero che la miseria»: Ibid.
  19. «Il cardinal... li disse: quando si fará un'altra unione contro di voi, anderete ai papa, che vi proveda»: Ibid.
  20. «che siano li maggiori asini del mondo»: Ibid.
  21. «si potra trovar qualche modo, si sono asini, di farli-lo conoscere, et si per danari si sono voluti assicurar da chi non può, il medesimo taccino con chi può, che in tal caso potra cavar la maschera giusta e santamente»: Ibid.
  22. Ibid.
  23. Consta isto de uma carta de Santiquatro para elrei de 23 de dezembro de 1538, no Corpo Chronol., P. 1, M. 63, N.° 83. Destes tractos occultos nasceria o escrever D. Henrique de Meneses cousas offensivas para o papa, que lhe trouxeram vivos desgostos antes da sua partida, desgostos a que allude Santiquatro numa carta a elrei de 2 de maio de 1535: Corpo Chronol., P. 1, M. 47, N.° 29, no Arch. Nac.
  24. Memoriale, l. cit.
  25. Ibid.
  26. Carta de Alvaro Mendes, de Roma, a 22 de abril (quatro dias depois da saída do imperador) em Sousa, Annaes, Doc. pag. 397.
  27. A palavra abbatibus falta na bulla impressa.
  28. Bulla Cúm ad nihil magis de 23 de maio de 1536: M. 9 de Bullas, N.° 15, no Arch. Nac. — Collectorio das Bullas da Inquis., f. 1 v. e segg.— Symm., vol. 32, f. 1 v.
  29. Carta de Santiquatro de 20 de julho de 1536, em Sousa, Annaes, p. 398.
  30. 30,0 30,1 Minuta de uma carta de D. João iii, em resposta a outra de Santiquatro de 2 de junho de 1536, que não encontrámos: G. 2, M. 1, N.° 28. Apesar da longa disputa entre Fr. Pedro Monteiro e Fr. Manuel de S. Damaso, exposta na Verdade Elucidada, não é absolutamente claro se o Fr. Diogo da Silva, frade menor, bispo de Ceuta, inquisidor-mór em 1536, e depois arcebispo de Braga, era ou não o mesmo Fr. Diogo da Silva, frade minimo, inquisidor em 1532. Apesar dos esforços de Fr. Manuel de S. Damaso, talento bem superior ao do seu adversario, o que elle alcançou provar foi que em 1532 e em 1536 tinha havido duas nomeiações diversas; que na 1.ª bulla da Inquisição se fala de um frade minimo não bispo, emquanto na 2.ª se fala de um frade franciscano bispo de Ceuta, e que Fr. Pedro Monteiro confundira estes dous factos. Ambos os contendores Erro de citação: Código <ref> inválido; o nome "p186" é definido mais de uma vez com conteúdos diferentes
  31. Minuta da Carta de D. João iii em resposta a outra de Santiquatro de 2 de junho, l. cit.
  32. Collectorio das Bullas do Sancto-Officio, f. 1 a 6.
  33. Circular de 20 de novembro de 1536, no Collectorio, f. 147.
  34. Monitorio de 18 de agosto de 1536, no Collectorio, f. 5 e segg.
  35. Este edital, que se acha vertido em latim na Symmicta (vol. 32, foi. 70 e segg.), não foi publicado no Collectorio, onde se encontram os outros documentos anslogos. A contradicção em que elle eslava com o espirito e letra na bulla de 12 de outubro, e da própria bulla da Inquisição, explica sufficientemente essa suppressão.
  36. Veja-se nomeiadamente o Memorial: Symmicta. vol. 31, fol. 42 e segg.
  37. Doc. na Symmicta, vol. 32, f. 252 v. e segg. Deste documento, que adiante havemos de aproveitar, se conhece que o conselho geral teve desde o principio maior numero de membros do que esses que mencionam Sousa e Monteiro (Aphorismi Inquisitor., p. 13: — Memor. da Acad. d'Hist., T. i, N.° 25), os quaes os reduzem a quatro. Porventura foram desde logo os mesmos seis, de que sabemos era posteriormente composto. O proprio Antonio da Motta nos diz, falando de si naquelle documento: ego in tempore episcopi septensis semper fui de consilio. Et quia videbam (1539) quod dominus infans D. Henricus non servabat in his formam bullæ, prout ego cum aliis ei multoties diximus». Estes deputados do conselho, que ousavam resistir ás illegalidades do infante (ou dos inquisidoros, como elle depois declarou, provavelmente por medo) devemos suppor que tinham anteriormente procedido melhor do que os outros seus collegas.
  38. A falta de processos nos cartorios da Inquisição, relativos a estes primeiros tempos, seria uma prova decisiva dessa moderação, se uma grande parte dos mesmos processos não houvessem desapparecido antes de serem recolhidos á Torre do Tombo, ou se acaso se podesse demonstrar que elles se faziam e archivavam então com a mesma regularidade que depois de 1540.
  39. Carta do infante D. Luiz a elrei (sem data), na G. 2, M. 2, N.° 34.
  40. 40,0 40,1 «Apresso il re, nelle cose grandi, possono assai l'infante D. Luigi per autoritá che si ha presa da se quasi violentamente, etc.»: Instruzione al coadjutore Erro de citação: Código <ref> inválido; o nome "p198" é definido mais de uma vez com conteúdos diferentes
  41. 41,0 41,1 Inquisitio non debuit concedi, etc. (Symmicta, vol. 2, f. 271). Rationes quibus S. D. N. motus (Ibid. vol. 32, f. 145 e segg.) Este ultimo arrazoado é de Erro de citação: Código <ref> inválido; o nome "p201" é definido mais de uma vez com conteúdos diferentes
  42. Rationes erga edictum, etc. Ibid. f. 75 e segg — Memoriale quoddam, etc. Ibid. f. 90 e segg.
  43. Em carta do embaixador Pedro de Sousa de Tavora de 20 de janeiro de 1538 (Corpo Chronol., P 1, M. 60, N.° 76), escripta parte em cifra, falando da prisão de Micer Ambrosio, secretario do papa, pelo excesso da sua venalidade, diz o agente português: «E antre as outras (peitas) ho bispo de Senegalha lhe apresentou logo quando vêo de Portugal (segue em cifra). Também entendi que (cifra) agora (cifra) não sabendo (cifra) ho mandava commetter por parte dos mesmos (cifra) cada ano (cifra) cruzados, ou mais, para que os favorecesse e estas (cifra) as mãos (cifra); por onde não creo que tenha muito contentamento (cifra) porque quem aquillo commette a outrem he sinal que não duvidará para sy também tomar o que lhe derem».
  44. «Quia jam præfatus dominus nuntius eratin curia, et sanctitatem suam de omnibus supradictis, pro justitia et veritate, ut creditur, informa verat». Memoriale, l. cit f. 48 v.
  45. «So stato gabbato: proveda sua santità»: Ibid. f. 50.
  46. M. 25 de Bullas N.° 4 e 52, no Arch.—Symmicta, vol. 32, f. 68 e vol. 33, f. 159 v.
  47. Corpo Chronol., P. 1, M. 58, N.° 43.
  48. Litteræ Pauli iii Joan. regi, Cardinali Portug, et infanti Alois., 7 februar. 1537, na Symm., vol. 32, f. 65 e segg.
  49. Era provavelmente o mesmo que offendera a corte de Roma nas suas prédicas a favor da intolerancia e do fanatismo. Vide ante p. 156 e seg.
  50. O breve destes poderes, datado de 9 de janeiro de 1537, acha-se inserto em duas copias authenticas no processo de Ayres Vaz: processos da Inquisição de Lisboa, N.os 13:186 e 17:749, no Arch. Nac.
  51. Instruzione di S. S. per il signore nuncio G. Capodiferro, etc. 33, f. 149.
  52. Supplicatio regi facta, etc. Symm., vol. 32, f. 98 v. e segg.
  53. Sousa, Annaes, Append. de Doc. p. 401, 404 e segg.
  54. Supplicatio, etc. Symm., l. cit.
  55. Ordo tenendus a nuntio in Regno Portugaliæ etc. vol. cit, f. 68.
  56. Memoriale, l. cit. f. 51 v. e seg.
  57. Vide ante p. 128.
  58. Memoriale, l. cit.
  59. «patrocinium, defensionem, auxilium, opem, consilium et favorem, tam in partibus illis, quam in romana curia, et extra eam, ubique locorum praeslare, ac pecunias et alia ad eorum defensionem necessária subministrare»: Breve Dudum a nobis ult. aug. 1537, Symm., vol. 32, f. 120 e segg.
  60. «Dirigendo semper unum oculum ad gratificandum regi, dexterum vero ad justitiam, et ad procurandum ne quis istorum miserorum justam habeat causam de sanctitate sua et apostolica sede conquerendi»: Ordo tenendus etc. l. cit.
  61. Ranke, Die Roemischen Paepste, 1. Band, 3. Buch. — Pallavicino, Istoria dei C. di Trento, L. 4. cap. 5, 6.— Fleury, Hist. Eccles., L. 138, § 52 e segg.
  62. Carta de Pedro de Sousa de Tavora a elrei, de Roma, a 15 de novembro de 1537: G. 2, M. 5, N.° 26, no Arch. Nac.
  63. «... da estada do nuncio aquy creceo tanto a ousadia nos máos e tanta segurança de poder errar sem castigo e tanta certeza de perdões dos erros por qualquer emformação que seja deles, per preços muy desonestos e inormes e outros muy baratos, e em todos com craro fim e respeito do interesse proprio sem lembrança nem da rezão da cousa, nem do escandalo dela, nem da diminuição da jurdição dos prelados a que totalmente são cerradas as portas per esta via de poder castigar nenhum máo, nem governar suas prelacias, tantas são as dispensações e os perdões e as bullas que por dinheiro e amizade se alcanção em casa do nuncio indistinctamente em todo caso, crime e pena, etc.» — Minuta da carta de D. João iii a D. Pedro de Mascarenhas de 4 de agosto de 1539, na Correspond. Orig. de D. Pedro Mascarenhas, na Bibliotheca da Ajuda.
  64. Na carta de Pedro de Sousa de Tavora de 15 de novembro de 1537, acima citada, o embaixador português aconselha a elrei que se mostre liberal não só com Santiquatro, que já pedia claramente, e até com termos asperos, a recompensa dos seus serviços, e além delle com o secretario e o camareiro do papa e outros, mas até com o proprio Paulo iii. As phrases do embaixador são assas significativas: «E do papa principalmente V. A. se devera lembrar, pois lhe pode fazer muitos prazeres e também desgostos; e quando não al, ao menos das cousas da India enviar algo que se lhe possa dar, que elles tudo tomão.
  65. A rubrica da minuta das instrucções a D. Pedro Mascarenhas (Correspond. Orig. na Bibliot. da Ajuda) diz que D. Pedro partiu a 29 de dezembro de 1538. É que se contava o novo anno do dia de natal. Assim 29 de dezembro de 1537 vinha por esse calculo a cahir em 1538.
  66. Temos a minuta (Correspond. Orig. de D. Pedro Mascarenhas, f. 45) da resposta a uma carta de D. Pedro Mascarenhas, escripta de França a elrei a 30 de março de 1538. Nesta resposta, que devia ser dos fins de abril ou principios de maio, apesar de se ordenar ao embaixador a maior brevidade na sua partida para Italia, tambem se lhe manda traotar varios assumptos com Francisco i. Assim, elle devia estar em França ainda em junho. A 1.ª carta que nos resta de D. Pedro Mascarenhas, datada de Roma, é uma de 24 de dezembro de 1538 (Corpo Chronol., P. 1, M. 63, N.° 86) sobre as duas decimas.
  67. Carta de D. Pedro Mascarenhas a elrei, de Roma, a 27 de fevereiro de 1539, no Corpo Chronol., P. 1, M. 64, N.° 36.
  68. Carta de Sebastião de Vargas a elrei, datada de Mequinez, em abril, em quo diz que passavam muilos christãos-novos pelos rios de Mamora, Larache e Salé para as terras de mouros, deixando as fazendas a pessoas que depois lh'as passavam: Corpo Chronol., P. 1, M. 64, N.° 86.
  69. «se deve muito olhar a emtenção com que hos tais escritos se puseram, se per ventura se fez per inclinar V. A. e seus oficiaes e os do padre santo e os povos contra hos christãos novos, e per pessoas de pouca prudençia, ou se ho fezeram herejes»: Carta do bispo de Ceuta a elrei, de 21 de fevereiro: Cartas Missivas, M. 3, N.° 61 no Arch. Nac.
  70. Carta do Bispo de Ceuta, cit. — Minuta da Carta de D. João iii a D. Pedro de Mascarenhas de 19 de março de 1539, na Correspond. Orig. de D. Pedro de Mascarenhas, na Biblioth. da Ajuda.
  71. Era D. Fr. Balthasar Limpo.
  72. Minuta da carta de 19 de março cit. — Carta de D. Pedro Mascarenhas de 21 e 20 de junho de 1539, l. cit. f. 93 v. e 95.
  73. O proprio bispo de Ceuta o dá a entender na carta a elrei, de 10 de junho (Collectorio das Bullas da Inquisição, f. 9), dizendo que pede a exoneração «por minha idade... e fraca disposição... e por outros justos motivos; como tambem por me parecer que sirvo V. A. em lhe lembrar isto
  74. Carta regia de 22 de junho de 1539, no Colleclorio f. 9 v. e seg. —Sousa, Historia Genealog., T. 3, p. 265 e seg.
  75. Isto que alguem supporia invectiva nossa, di-lo o proprio D. João iii. «Se este carego (o de inquisidor-mór) fora de principe secular com muy grande gosto me empregara nele»: Minuta da carta a D. Pedro Mascarenhas, na G. 13, M. 8, N.° 6, no Arch. Nac.
  76. «ut clarius loquamur, cúm ipsis novis christianis suspeclissimus sit»: Informatio quod inf. D. Henricus, elc.: Symm., vol. 32, f. 185.
  77. Minuta da carta a D. Pedro Mascarenhas, na G. 13, M. 8, N.° 6.
  78. Esta negociação complicada, de que ainda teremos de falar, entreteve quasi exclusivamente no 1.° semestre de 1539 o embaixador Mascarenhas, cujos habeis esforços foram em parte frustrados pela impericia dos ministros de D. João iii. Consulte-se a sua curiosa correspondencia, de que existe grande parte na Bibliotheca da Ajuda e algumas cartas na Torre do Tombo.
  79. «esta emleição... do infante... senão pera com elle poder mylhor deytar desse Reyno o nuncyo»: Carta de D. Pedro Mascarenhas de 21 de setembro de 1539, na sua Correspond. Original, f. 132 v. e 133.
  80. «tudo o que V. A. quiser negocear bem com este papa ade ser pondolhe seu enteresse diante»: Carta de D. Pedro Mascarenhas de 21 de junho, na Correspond. Orig., f. 93.
  81. «tudo se fará como lhe nom tocarem no seu emteresse. E V. A. deste pam de seu compadre deixe ao afilhado levar a parte que quiser, comtanto que a de V. A. non seja mays pequena, e nom queira ser mais piadoso da fazenda ecresiastica do que he seu proprio dono e vigairo unyversal»: Ibid.
  82. «tirando o nuncio nom aver demtender nella (na Inquisição): ha quall se nom fará emquanto ahi ouver nuçio nesse Reino em vida deste papa, porque lhe vay nisso seu emteresse, o que elle nom allarga senão por outro tall ou maior»: lbid.
  83. «guardará (o papa) o primeyro que tem feyto pela composyçam que tem recebida, senom ouver outro tanço mayor sobre mim»: Id. Ibid. f. 101 v. — «Com esta mando a V. A. huma medalha em que o papa está tirado pelo natural bem ao proprio para que veija a filosomia deste pryncepe com quem negocéa, a esperança que de sy promete, e quanta resão tenho de deseyar que V. A. m'acupe em qualquer outro serviço por mais trabalhoso que seya, e m e tire daqueste, em que o não posso servir sem doença da alma e do corpo»: Ibid.
  84. O português era uma moeda de ouro daquelle tempo.
  85. Carta de D. Pedro Mascarenhas de 20 de junho de 1539, na Correspond. Orig., f. 104 e v. Numa carta posterior (2 de dezembro de 1539) falando da morte de Simonetta, o embaixador mostra a sua magoa, accrescentando uma ponderação singular: «E o pior foy perder V. A. aquelle servidor que já estava comprado»: Ibid. f. 199 v.
  86. Sousa, de Orig. Inquisit., p. 13. Ruy Gomes e Fr. João Soares intitulavam-se effectivãmente do conselho e deputados da sancta Inquisição a 22 de agosto de 1539; Processo de Ayres Vaz, Process. da Inquis. de Lisboa, N.° 17:749, no Arch. Nac.
  87. Instruzzione data al Coadjutore de Bergamo: Symm., T. 12, p. 42 e seg.
  88. Nem do processo de Ayres Vaz, nem dos documentos diplomaticos relativos a esta questão consta que elle fosse christão-novo. Consta, porém, que o era de uma carta de D. Christovam de Castro, a f. 280 da Correspond. Orig. de D. Pedro Mascarenhas.
  89. Ranke, Die Roemischen Paepsle, I Band, 3 B (Paulo iii) Mendoza, Ibi.
  90. O principe D. Philippe, fallecido a 29 de abril de 1539, com seis annos de idade.
  91. Todas estas particularidades são extrahidas do Processo original de Ayres Vaz, N.os 13:186 e 17:749 dos Processos da Inquisição de Lisboa, l. cit.
  92. Processo de Ayres Vaz, l. cit.
  93. Minuta de carta a D. Pedro Mascarenhas, sem data; Correspond. Orig., f. 67 v. e segg.
  94. «por Farnês e por Marcello, que elle (Capodiferro) tem comprados com seus presentes»: Carta de D. Pedro Mascarenhas a elrei de 10 de setembro de 1539.— Correspond. Orig., f. 243 e segg.
  95. Ibid.
  96. Ibid.
  97. «nos quays (dous annos) se portara de maneira em seu oficio tyrynisando este reino com seus poderes que se o papa vivera mais, nom somentes ho revogara mas ho castigara como suas culpas mereciam, ou a mesma terra o nom podera lá sofrer, e que este que S. S. agora la tinha segira as pisadas do seu antecessor, senam quanto por achar o caminho aberto ho andara mais depressa»: Ibid.
  98. Ibid.
  99. Ibid.
  100. Ibid.
  101. Carta de D. Pedro Mascarenhas a elrei de 19 de setembro de 1539 (Correspond. Orig., f. 252). Esta carta comida da tinta e difficil de ler (bem como a de 10 do mesmo mez) acha-se em extracto assas nitido a f. 150 do codice.
  102. Ibid.
  103. Carta de D. Pedro Mascarenhas de 21 de setembro, na Correspond. Orig., f. 181.
  104. Breve ao nuncio de 22 de setembro, na Symm., vol. 31, f. 418 v.
  105. «nunca passou nenhum dia em que Santiquatro e eu nom combatessemos com ho Papa e com Monte a tu por tu, sofrendo alguas vezes más palavras e disendo outras semelhantes»: Carta de D Pedro Mascarenhas de 21 de setembro, l. cit.
  106. Ibid.
  107. «para que o usso nom salte da armada»: Ibid.
  108. Veja-se a longa carta de D. Pedro Mascarenhas datada de Perugia, com a mesma data da antecedente, na Correspond. Orig., f. 173 e segg.
  109. Carta de D. Pedro Mascarenhas de 4 de outubro, na Correspond. Orig., f. 193. — Carta de Santiquatro de 1 de outubro, ibid. f. 239.
  110. Ibid.
  111. «porque eu, senhor, não vy o breve nem sey que se nele mais contem»: Ibid.
  112. «E tambem tenho por sem duvyda que esta gente dá boa composiçam por esta decraratorya, e que ysto he o que faz dar tanta pressa. E tambem creo que depois de recebida se ouvyrâo mylhor as rezões por parte de V A.»: Ibid.
  113. «Usum virtutis prudentiæ et fidei tuæ... quando primum cum tuo commodo poteris ad nos redire matures, venturus nobis admodúm gratus»: Breve de 3 de outubro de 1539, copia juncta á Correspond. Org. de D. Pedro Mascarenhas, f. 162.
  114. Bulla Pastoris aeterni, 4 id. octobr. 1536, na Symm., vol. 39, f. 123 v. e segg.
  115. Memoriale, na Simm., vol. 38, f. 56 v. — Esta bulla, de que não se encontra outro vestígio senão a menção que della faz o Memoriale, devia ser pouco posterior á de 12 de outubro; talvez dos fins de 1539, ou principios de 1540.